Uma carta ao meu pai

Eu vou precisar ficar uns dias sem falar com vocês, você disse por videochamada, com um olhar preocupado. Um olhar sem esperança, que eu nunca havia visto antes.

Essas foram suas últimas palavras. Minutos depois, você foi intubado. Três semanas depois, seu coração parou de bater. No atestado de óbito: covid-19.

Quando o médico deu a notícia, eu vi o meu mundo desabar. Do meu lado, parecia que por alguns segundos a mamãe tinha perdido a alma. Quando a alma dela voltou ao corpo, havia desespero.

Eu não senti desespero. Não num primeiro momento. Não senti tristeza também. A tristeza veio depois. O que eu senti foi ódio. 

Ódio a quem ativamente lutava contra a vacina e o isolamento social, a quem negligenciava a pandemia, porque era só uma “gripezinha”, a quem debochava das mortes e às pessoas que andavam por aí sem máscara, que seguiam dizendo que não era nada sério, que o mundo não podia parar. Naquele momento eu queria socar tudo o que via.

A mamãe me contou que juntos, já no leito do hospital, vocês viram o início da vacinação pela TV. Uma vacina que chegou propositalmente tarde demais para você.

Eu sinto muito que você não tenha tido esse direito. Me dói da forma mais profunda pensar que você poderia estar vivo se tantas propostas de vacina não tivessem sido negadas. Me dói saber que a sua morte, como a de milhares de pessoas, poderia ter sido evitada.

Eu sinto muito, pai, mas eu não consigo não sentir ódio. E eu sei que você sempre foi contra esse sentimento. E que sempre me ensinou a ter empatia mesmo em relação ao ser humano mais horrível.

Mas eu tenho dificuldade em não odiar. Sempre tive. Ainda mais depois que você se foi.

Você sabe que o meu pensamento político, a maior herança que você me deixou, sempre se baseou na indignação e na raiva. Seu ser-político também surgiu dessa indignação, mas caminhava em direção à esperança – a esperança de uma justiça. Isso era tão bonito em você, pai. 

E a justiça foi feita hoje, pai. Ele foi condenado. Mas não pelas pelas 700 mil mortes. Não pela pandemia.

Você acredita que ele conseguiu ser ainda pior? Pois é. Ele e outros tantos tentaram dar um golpe de estado. Fizeram um atentado à democracia. Uma longa história, talvez eu te conte em outro momento. 

Mas eu queria te contar em primeira mão, pai, ele foi condenado! Você estaria tão feliz. Eu estou tão feliz. 

Sei que isso não trará você de volta. Nada pode te trazer de volta. Já estamos há quatro anos e meio sem você. Dói todos os dias. Mas seguimos vivendo. Vivemos também por você.

Eu ainda sinto sua presença. Não de uma forma metafísica. De uma forma política. Enquanto eu seguir existindo, você também vai existir em mim.

Pai, eu ainda não abandonei o ódio. Mas hoje eu abracei a justiça. E que leveza é ver o mundo a partir da crença de que a justiça existe. Que leveza é começar a entender o mundo pelo seu olhar. 

Obrigada, pai.

Sair da versão mobile