Imagine que você assa um bolo e, antes de servir, você pega quase metade dele e joga no lixo, sem pena. Ou que você chega ao fim do mês e de cada R$ 100 de salário conquistado, joga R$ 40 fora, sem uso. No âmbito cotidiano privado, a ideia pode parecer loucura ou inimaginável, mas essa é a realidade do tratamento e distribuição de água no Brasil – hoje, a cada cinco litros enviados às casas, dois vão direto para o ralo. Com tudo que se perde, seriam abastecidas nada menos que 50 milhões de pessoas – mesma quantidade de gente das regiões Norte e Sul somadas. E, acredite, já é assim há anos.
Os motivos variam. Vazamentos, fraudes, falhas de medição, etc. De acordo com o mais recente estudo do Instituto Trata Brasil (ITB), as perdas atuais das concessionárias de água são de 40,31%. O considerável “aceitável”, seria de 25%, ou seja, um quarto de tudo que se produz, ainda assustador. A redução da marca atual para a meta de 25% representaria uma economia coletiva de R$ 34,6 bilhões até 2033, graças à redução de custos operacionais e de obras emergenciais. Para se ter uma ideia, com esse valor seria possível construir 19 novas Unidades Básicas de Saúde no país.
Por que isso importa?
- Diante de crises hídricas e épocas de estiagem, é possível que a população atribua a dificuldade de acesso à água ao clima ou mesmo à densidade populacional, mas os dados mostram que há problemas estruturais de gestão que envolvem política e administração pública.
O Brasil é frequentemente apontado por sua disponibilidade de água no cenário mundial, mas no que diz respeito à gestão hídrica, considerando as perdas da operação, o país ocupa a 86ª posição entre 139 nações, abaixo de quatro vizinhos sul-americanos: Equador, Bolívia, Chile e Argentina. O levantamento do ITB ajuda a lançar luz sobre a gravidade silenciosa enfrentada. Em Alagoas, estado com o maior volume de perdas no país, de cada 10 litros de água captada, tratada e distribuída, sete vão para o ralo. Na ponta oposta está Goiás, única unidade federativa na casa dos 25% de perdas.
Os dados, comparando o retrato do saneamento básico no país entre 2019 e 2023, mostra que a região Sudeste, maior centro econômico nacional, vem na contramão da evolução, aumentando suas perdas em 2,5 pontos percentuais. Em outras palavras, mesmo onde há mais investimentos e tecnologia, a situação tem piorado.
A Portaria 490/2021, do Ministério do Desenvolvimento Regional, define como meta para os municípios atingirem marcas de perdas operacionais inferiores a 25% até 2034. Essa seria uma condição para acesso a recursos federais. A dificuldade de que esse objetivo seja cumprido esbarra na prática: atualmente apenas 13 das 100 maiores cidades do país seriam consideradas aptas se a regra já estivesse valendo hoje – ao todo, são 5.570 municípios.
Perdas e mais perdas: mas por que tanta água vai pro ralo?
Segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública, esse cenário é consequência de baixo investimento, ineficiência técnica e um modelo econômico que continua a priorizar o volume vendido, em vez da eficiência no uso da água.
O coordenador do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) Amauri Pollachi avalia que o desperdício é resultado de uma falta de prioridade estrutural no combate às perdas, abandonado em nome da redução de custos e da maximização do lucro: “Se você reduz investimentos, atuação, atenção, a disponibilidade de gente capacitada, as perdas acabam crescendo. A rede envelhece, a pressão aumenta, o desgaste aumenta — e o desperdício só piora”.
Para o ecologista e presidente do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), José Galizia Tundisi, o problema é essencialmente técnico, mas sua persistência revela também falhas de gestão e lentidão política. “Precisa ter a vontade política do setor público de resolver o problema das perdas e juntar o investimento que tem que ser feito para poder resolver tecnicamente o problema”, afirma Tundisi.
“[O cenário] esbarra na lentidão e na falta de acesso à tecnologia. Um município de 50 mil habitantes, no interior, não tem técnicos competentes para fazer o trabalho. Nem curso técnico de tratamento de água [às vezes] existe”, avalia, antes de apontar como o problema passa à margem da percepção coletiva. “A verdade incômoda é que nós perdemos água e não percebemos essa perda. A população não percebe essa perda e os políticos não percebem a necessidade de uma legislação mais consistente para resolver esse problema”, complementa.
A presidente executiva do ITB, Luana Pretto, explica que para que o país avance para reduzir as perdas para níveis abaixo dos 25% seria necessário realizar a modelagem hidráulica dos sistemas de distribuição para compreender seu funcionamento, setorizar a rede – “para que a identificação dos vazamentos ocultos seja mais assertiva” – e, enfim, adotar controles de vazão e pressão. Em outras palavras, modernizar estrutura e gestão de um país com proporções continentais em que ainda não falta água. Ainda.
No maior estado do país, perdas sem redução, mas lucros em alta
O dia era 17 de novembro de 2025. Nas imagens, em um vídeo publicado nas redes sociais, um cano jorra água na região do Riacho Grande, em São Bernardo do Campo (SP). A tubulação foi rompida próximo ao km 30 da Via Anchieta. O áudio registra a reclamação de um morador: a estrutura já havia rompido uma semana antes e chegou a ser reparada pela Sabesp. “Um remendo meia-boca”, reclama ao denunciar o cano voltando a estourar no mesmo local em que a população registrou outro grande vazamento no dia 9 de novembro.
Em São Paulo, o sistema Cantareira passou a operar em nível crítico. Bairros periféricos passaram a enfrentar longas horas sem água. Como explicar para a população, então, que não “falta” água no estado?
Um terço de tudo que é tratado e fornecido em São Paulo é perdido. Segundo a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), as perdas atuais da Sabesp são de 32% de toda a água limpa com a qual lida – o índice é praticamente o mesmo de uma década atrás.
A crise hídrica no estado expõe a contradição central do modelo adotado após a privatização da Sabesp, em 2024. As perdas continuam no mesmo patamar, enquanto o lucro da companhia dispara. A empresa registrou R$1,96 bilhão apenas no segundo trimestre de 2025 — 64% a mais em relação ao ano anterior, como já mostrou a Pública.
Foram 19 trilhões de litros de água perdidos em São Paulo entre 2017 e 2024, 844 bilhões de litros por ano. Em outras palavras, apenas com o que vem sendo perdido para o ralo, seria possível manter toda a população da capital paulista abastecida, sem interrupções – com cada habitante mantendo o gasto médio diário já praticado, de 150 litros.
Os números impressionam, mas não parecem apressar. A companhia não vem cumprindo as metas de redução de perdas assumidas antes da privatização. Em 2021, o previsto pela própria companhia era de chegar a uma perda de 247 litros por ligação até 2024 com reduções gradativas, mas a meta não foi cumprida e, no ano passado, o desperdício até subiu, chegando a 262 litros.
Para o coordenador do Ondas Amauri Pollachi, o problema vem das medidas de contenção adotadas no país, que, em geral, têm caráter mais paliativo do que preventivo: “O que se faz no Brasil é atuar por espasmos. Faz-se um investimento, se consegue um resultado positivo e depois se abandona. É como fazer uma grande reforma na sua casa e nunca fazer manutenção”.
Em resposta à Pública, a Sabesp afirmou estar “intensificando seus investimentos em tecnologias de ponta para aprimorar a detecção e o reparo de vazamentos” e que desde a desestatização, em 2024, “a Sabesp já investiu R$ 1 bilhão em ações como troca de tubulações, inovação tecnológica na pesquisa e reparo de vazamentos, combate a fraudes e regularização de áreas informais”.
Os números da Sabesp diferem levemente dos registrados pela Arsesp e pelo ITB e a companhia justifica o cenário destacando que o estado se encontra em condição melhor que o restante do país. “O objetivo é diminuir o índice de perdas totais da empresa, hoje em 29,40%, abaixo da média nacional – que é de 40,31%. A empresa esclarece ainda que a perda por vazamentos é de 19%, sendo os demais 10% referentes especialmente a gatos e fraudes (quando a água é consumida, de forma irregular)”.
Sobre o vazamento no Riacho Grande, em São Bernardo do Campo, a empresa informou que “para realizar o reparo, foi necessário produzir a peça adequada na oficina de manutenção estratégica da Companhia. Enquanto a peça era fabricada, a empresa direcionou a água de volta para a represa”. A Sabesp afirmou ainda que o episódio não afetou o abastecimento da região e que o reparo foi concluído.
“Isso mostra claramente que a empresa está atuando na obtenção direcionada para a maximização do lucro. […] Na zona central de São Paulo, por exemplo, para fazer manutenção é preciso trabalhar de madrugada ou fim de semana. Isso significa pagar hora extra. E aí vem a pergunta que sempre fazem: ‘Isso aumenta custo, então por que fazer?’. É uma lógica que condena o sistema a continuar vazando” conclui Pollachi.
