A palavra “anistia” sempre soou familiar à esquerda brasileira. Foi bandeira das campanhas pela volta de exilados e pela libertação de presos políticos da ditadura militar – entre eles, Leonel Brizola, “o irmão do Henfil” da música O bêbado e o equilibrista, que virou um hino da época. O movimento exigia uma “anistia ampla, geral e irrestrita” que veio em 1979, mas em termos diferentes dos esperados: além de beneficiar vítimas, também absolveu agentes do Estado que cometeram crimes e até hoje deixam dinheiro público a herdeiras.
Décadas depois, o pedido de anistia seria apropriado pela direita, mas, desta vez, em um contexto muito diferente do original: para defender acusados de tentar um golpe de Estado após as eleições de 2022.
Os dois momentos, separados por quase meio século, estão ligados em uma coincidência familiar. O último presidente da ditadura, João Figueiredo, assinou a Lei da Anistia com o argumento de que ajudaria a “pacificar o país”. Em 2025, seu neto, o influenciador Paulo Figueiredo, um dos denunciados por conspirar contra a democracia, também pede uma nova anistia “ampla, geral e irrestrita”.
A disputa em torno do termo se materializa nas ruas de várias cidades do país no 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, data marcada por manifestações bolsonaristas nos últimos anos e que, em 2025, tem um significado político ainda maior em meio ao julgamento de Jair Bolsonaro e outros réus pela tentativa de golpe.
A tônica dos atos deve ser o pedido de anistia para os militantes que invadiram e depredaram prédios públicos de Brasília em 2023, contrariados com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, e também para o próprio Jair Bolsonaro. A oposição promete colocar o projeto em votação no Congresso nos próximos dias em uma retaliação à possível condenação do ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma das versões do texto pretende perdoar atos antidemocráticos desde 2019, quando foi aberto o inquérito das Fake News no STF, o que permitiria que Bolsonaro, inelegível por oito anos após duas condenações na Justiça Eleitoral, pudesse ser candidato em 2026.
Bolsonaristas querem aprovar projeto que isentaria Bolsonaro e os demais envolvidos em tentativa de golpe e invasão a Brasília dos crimes
7 de setembro e anistia: esquecimento permitiria repetição
“Anistia é uma palavra de origem grega que significa ‘esquecimento’, da raiz que veio dar em ‘amnésia’”, diz o cientista político João Feres, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). “Era usada na Grécia Antiga com o sentido de apagar crimes políticos, extinguindo a pena e o próprio crime, como se nunca tivesse existido”. Mas, continua Feres, isso não quer dizer que os gregos anistiavam todos os crimes contra o Estado. “Pelo contrário, condenavam vários criminosos à morte ou ao exílio, o famoso ostracismo.”
Porém, o “esquecimento” de alguns fatos históricos pode ter moldado o cenário que vivemos hoje. Para o professor, a Lei da Anistia de 1979 permitiu uma “transição pacífica ao custo de esquecer crimes hediondos e manter cúmplices do regime autoritário em posições públicas das quais deveriam ter sido banidos.”
“Na verdade, o esquecimento permite que aquilo que foi feito seja repetido. O 8 de janeiro aconteceu porque os militares não foram punidos. Nem pela morte de militantes, pelo extermínio indígena, o roubo contra o erário e a supressão de direitos sociais”, complementa Marcelo Uchôa, conselheiro da Comissão de Anistia no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O Brasil foi condenado em cortes internacionais por não punir torturadores, como nos casos da Guerrilha do Araguaia e do jornalista Vladimir Herzog. Mesmo assim, a maioria dos agentes da ditadura nunca foi responsabilizada criminalmente por causa da anista. Para os pesquisadores, a impunidade abriu espaço para que o bolsonarismo tentasse repetir a lógica de ruptura.
“O mesmo grupo que saiu impune da anistia em 1979 é o que tentou o golpe em 8 de janeiro”, afirma Uchôa. “Em vez de chamar de PL da Anistia, melhor dizer PL da Impunidade. Porque seria uma anistia para aqueles que tentaram golpear o Estado, matar presidente, matar vice-presidente, matar ministro do Supremo, fazer uma intervenção com as Forças Armadas. Ou seja, romper a estabilidade institucional e aplicar uma ditadura no país.”
A justiça de transição, que é o conjunto de medidas adotadas por uma sociedade após um período de violência sistemática de direitos, foi falha e lenta no país, avalia Uchôa. A Lei sobre Mortos e Desaparecidos é de 1995, a Lei de Reparação e de Anistiados é de 2002, a Comissão da Verdade só terminou em 2014. “Essa demora toda, na transição, fez com que gerações sequer soubessem que existiu uma ditadura no Brasil.”
O 8 de janeiro de 2023 só aconteceu porque os militares envolvidos na ditadura de 1964 não foram punidos, defende pesquisador.
Tese de anistia a bolsonaristas é contestada por juristas
Em sua definição, anistia é perdão dado por lei a crimes, infrações administrativas e outras situações. No entanto, crimes considerados hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo não poderiam receber anistia. Esses ilícitos atacam elementos considerados essenciais da democracia e, portanto, são alvo de vedação. Por esse motivo, alguns juristas, como Lenio Streck, defendem que qualquer atentado contra a democracia, como o 8 de janeiro, também não seja passível de anistia.
Além disso, há um precedente recente: o caso Daniel Silveira. Em 2023, o ex-deputado federal foi condenado pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo. Bolsonaro aplicou indulto ao aliado, que em seguida foi invalidado pelo Supremo.
“Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea que nem mesmo o Congresso Nacional, por emenda, pode suprimir”, argumentou o ministro Luiz Fux na época.
Na versão do PL que deve ser analisada no Congresso, juristas também apontam o risco de que a anistia se estenda até a facções criminosas, porque a minuta inclui perdão a “dano contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado, incitação ao crime, apologia de crime ou criminoso, organização criminosa, associação criminosa ou constituição de milícia privada”.
Uchôa acredita que a anistia de 1979 só foi possível pela Constituição da época, gestada na ditadura, e dificilmente passaria na de hoje. “Passou antes porque estávamos numa ditadura. Agora as coisas são diferentes. Pode ser que haja remissão de penas lá na frente, mas anistia, francamente, não acredito. O STF não aceitaria. Nem a sociedade civil”, afirma Uchôa.
Desde a Independência, cerca de 80 anistias já foram concedidas no Brasil, de acordo com levantamento da Agência Senado. A primeira ocorreu poucos dias após a independência mesmo, em 18 de setembro de 1822, com o perdão concedido àqueles que se opunham ao país sair do domínio de Portugal.