Com a chegada do linhão de Tucuruí, a população de Roraima espera o fim de décadas de apagões recorrentes e das contas de energia elétrica estratosféricas, além da promessa de se livrar das termelétricas, que forneciam a maior parte de energia do estado.
Em setembro de 2025, finalmente o extremo norte do país foi conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), passando a receber energia elétrica das fontes que compõem essa extensa malha de transmissão – movida sobretudo a energia hidrelétrica.
O tema é tão importante em Roraima, que mesmo o governador Antonio Denarium, negacionista e defensor do garimpo, fez questão de fazer propaganda do linhão, embora o projeto seja federal. Já na assinatura da ordem de serviço de instalação do linhão, em agosto de 2023, na cidade de Parintins (AM), o governador buscou capitalizar o evento, que contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de vários políticos da região Norte.
Nas mídias sociais do governo estadual, termos como “energia limpa e estável” foram destacados no início dos testes para interligação em setembro deste ano. Em nível federal, a interligação de Roraima ao SIN foi apresentada pelo ministro de Minas e Energia (MME), Alexandre Silveira, com ênfase na transição energética. Ou “o maior projeto de descarbonização da Amazônia”, de acordo com nota enviada à Pública pelo MME.
Também os senadores Chico Rodrigues (PSB), Mecias de Jesus (Republicanos) e Hiran Gonçalves (PP) – considerados parlamentares pró-garimpo – fizeram postagens reivindicando o protagonismo na chegada do linhão de Tucuruí. O ex-senador Romero Jucá (MDB), que já atribuiu uma derrota eleitoral no estado aos apagões, comemorou nas redes dizendo ter trabalhado “pelo projeto desde o começo”.
Mas nenhuma autoridade citou dois fatos que contrariam esse discurso exageradamente positivo. O primeiro é que o linhão só vai suprir 55% da energia do estado – o restante continuará sendo fornecido por termelétricas; o que nos leva ao segundo ponto: os contratos para fornecimento de energia assinados antes da chegada do linhão continuam valendo, como reconhece o próprio Ministério em nota enviada em resposta ao pedido de detalhamento do projeto feito pela Agência Pública.
Segundo o MME, os contratos da Roraima Energia – a distribuidora de energia que ficou com a concessão estadual depois da privatização da Eletrobras – com as termelétricas, também empresas privadas, serão mantidos. Isso porque, segundo o MME, foram fechados “já com a previsão da chegada do linhão” para substituir as termelétricas à óleo diesel e a importação de energia elétrica da Venezuela, que segundo o Ministério tiveram os contratos encerrados em 2019.
- Reduzir o uso de combustíveis fósseis através de uma transição energética para fontes de energia renováveis e não poluentes é o ponto principal para controlar o aquecimento global e as mudanças climáticas, o foco da COP.
- Também é um dos mais polêmicos, já que os países produtores de petróleo e gás, como o Brasil, não querem abrir mão dessa commodity. O greenwashing do uso do gás, como está acontecendo em Roraima, atua no sentido oposto do que é necessário para essa transição.
Para reforçar a suposta “transição” para energias renováveis, o Ministério destaca que essas fornecedoras oferecem energia gerada “a gás natural, biomassa e soluções híbridas”, sem fazer distinção entre energias renováveis e aquelas provenientes de combustíveis fósseis, como o gás – o que aponta para a prática do greenwashing, que é a divulgação de informações maquiadas para mascarar políticas que não estão de fato alinhadas ao desenvolvimento sustentável.
A Pública teve acesso ao contrato assinado pela Roraima Energia com o fornecedor mais importante de energia elétrica de Roraima, a Azulão Geração de Energia S/A – UTE Jaguatirica II, controlada pela Eneva. Até a interligação com o SIN, a Jaguatirica II atendia mais da metade do consumo de Roraima, com capacidade para quase 80%. Mas mesmo agora com a esperada redução de consumo da energia fornecida pela Eneva, o contrato da usina permanece intacto até 27 de junho de 2036, como apurou a Agência Pública através de documentos obtidos pela Lei de Acesso à Informação.
Isso porque o acordo, chamado “Contrato de Disponibilidade”, funciona assim: a Eneva recebe uma parcela fixa que corresponde a mais de 400 milhões anuais todos os meses, apenas por “manter a usina de pé” , mesmo que ela não produza nada. A outra parte do pagamento, a parcela variável, depende da produção real demandada. Portanto, mesmo que a parcela variável diminua com a chegada do linhão, a parcela fixa integral continua garantida no contrato.
Localizada na região do Bom Intento, zona rural de Boa Vista, a termelétrica é alimentada pelo gás extraído do Campo Azulão, em Silves, no Amazonas, sede da Eneva e lar de 1066 indígenas, segundo o IBGE. A maior parte deles é da etnia Mura, mas também há indígenas Sateré-Mawé e Munduruku que apontam para os impactos ambientais no território e falhas no licenciamento da empresa, sem consulta prévia aos indígenas, como determina convenção internacional assinada pelo Brasil.
Também foi registrada a presença de indígenas isolados, o que motivou uma solicitação do MPF, no ano passado, para interditar o acesso à região do Campo Azulão, hoje também com exploração de gás em Itapiranga, município vizinho. O argumento de que o fornecimento de energia para Roraima seria interrompido acabou suspendendo o embargo na época. Em maio deste ano, foi determinada a paralisação imediata das atividades nos poços que se sobrepõem ao território indígena, mas a usina segue funcionando enquanto a disputa continua na Justiça.
Para o cacique Jonas Mura, a transição energética não passa de discurso, enquanto as ações que afetam o meio ambiente continuam a todo vapor. “As empresas de combustível fóssil e os bancos que financiam essa destruição são os verdadeiros motores da crise [climática]. Eles falam de transição, mas continuam sugando a vida da Terra“, disse à reportagem.
Para completar a forma enganosa com que a chegada do linhão tem sido anunciada como solução para o abastecimento de luz em Roraima, especialistas ouvidos pela reportagem destacam que, além da energia do linhão chegar à extremidade final já com um potencial elétrico reduzido, a rede de distribuição de energia – de responsabilidade da Roraima Energia – não consegue aproveitar toda a energia do linhão por falta de manutenção e modernização da estrutura de distribuição, a cargo da Roraima Energia.
“O que a gente avalia como negativo é que a nossa rede de distribuição é muito antiga e precisa de revitalização”, observa o professor de Eletrotécnica do Instituto Federal de Roraima (IFRR), Paulo Soares. Ele lembra que, mesmo com uma fonte segura e de grande potencial como a energia vinda de Tucuruí, falhas na infraestrutura local podem comprometer o fornecimento. Segundo nota técnica conjunta da EPE e do ONS (2025, p. 5-6), a limitação física da Subestação Boa Vista impede o uso pleno dessa energia, restringindo a importação a cerca de 55% da demanda máxima até que sejam feitos reforços na rede.
O professor Rubem César Rodrigues Souza, titular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e professor visitante na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) considera “simplista” dizer que a questão energética de Roraima está resolvida com o linhão. Ele destaca a falta de visão de futuro do atual projeto para o estado que mais cresce no Brasil (com 3,07% de aumento populacional, a maior variação entre todos os estados) e o consumo de energia em franca expansão.
Linhão não é a “solução definitiva” para a energia de Roraima
“Não existe solução definitiva porque ela já começa não atendendo a tudo e o mercado é sempre crescente. Então como vai fazer daqui pra frente? Vai esperar outra situação emergencial para vir outra solução paliativa ou nós vamos começar a trabalhar agora para criar soluções que sejam mais adequadas às potencialidades que têm no estado?”, indaga, citando como exemplo a energia solar, que não está sendo incentivada no atual modelo, embora os índices solares de Roraima estejam entre os maiores do Brasil.
Nos últimos 10 anos, as emissões líquidas de Roraima cresceram, em média, quase 6% ao ano, indicando o aumento da pressão sobre as florestas e o avanço de atividades poluentes. Por isso, para os especialistas, a necessária transição energética deveria focar, além do linhão, o aproveitamento da energia solar, que cresce ainda em ritmo bem abaixo de seu potencial, de acordo com o gerente de transição energética do instituto Arayara, John Fernando de Farias Wurdig. Além de barreiras regulatórias que inibem o uso da energia solar, Wurdig aponta que o estado não tem um plano de transição energética para o abandono de combustíveis fósseis, “principalmente as usinas a óleo e gás”, caras e poluentes.
Por enquanto, nenhum abatimento nas tarifas foi anunciado pela Roraima Energia depois da interligação do estado com o SIN; sobre o aproveitamento reduzido da energia de Tucuruí por causa da falta de manutenção e investimentos na rede de distribuição, a empresa respondeu por nota, informando apenas que “realiza continuamente investimentos no sistema de distribuição” e que, desde a privatização em 2018, já foram investidos “mais de 550 milhões de reais”.
A assessoria de comunicação da Roraima Energia confirmou à Agência Pública que está em processo de transferência de controle acionário, justificando a mudança pela “intenção do Grupo Oliveira no desinvestimento no setor de distribuição”. A concessionária, contudo, afirmou não ter informações sobre o prazo para a conclusão da transição.
Conforme apurado pela reportagem com funcionários, a compradora é a Âmbar Energia, empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista, que deve assumir o controle até o fim do ano. Esta é a segunda distribuidora que os irmãos Batista compram do Grupo Oliveira, que anteriormente também vendeu a Amazonas Energia.
A Agência Pública tentou insistentemente entrevistar representantes da Eneva e da Roraima Energia, mas todos os pedidos foram negados. Ao longo da reportagem vamos colocar os links para as notas enviadas em respostas pontuais à reportagem, que poderão ser atualizadas se houver nova manifestação.
A equipe da Pública também entrou em contato com a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e com a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) para apurar por que os contratos com as termelétricas permanecem ativos na integralidade após a interligação de Roraima com o SIN e se há previsão de revisão tarifária.
Questionada especificamente sobre os contratos que garantem o faturamento da Eneva até 2036, a área técnica da Aneel não apresentou os valores já pagos. Sobre a principal questão da reportagem, as alterações contratuais e reequilíbrios após a chegada do linhão, a nota enviada pela Aneel informa apenas que “esse processo de adaptações contratuais se encontra em curso, não havendo ainda um produto resultado”.
Até o fechamento da reportagem não houve retorno da EPE. Caso a resposta seja enviada, o material será atualizado.
Ou seja, apesar do anúncio de autoridades federais e estaduais em consonância com a Eneva e a Roraima Energia, de que o estado estaria passando “por uma transição energética”, o fato é que a população vai continuar atrelada a contratos pré-linhão que fornecem energia proveniente de combustível fóssil não renovável, fato que greenwashing nenhum pode apagar.
Um levantamento divulgado em dezembro de 2024 pela ONG Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) revelou que, em 2023, as 67 termelétricas fósseis conectadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN) lançaram 17,9 milhões de toneladas de gás carbônico (CO₂), o principal responsável pelo aquecimento global. O volume supera o total de emissões de carbono de São Paulo, a maior cidade do país.
Marketing verde: o que a Eneva propagandeia e o que esconde
Na tentativa de se apresentar como empresa que apoia a transição energética mesmo com o uso de combustível fóssil, a Eneva faz como 10 entre 10 empresas de energia “suja”: investe em publicidade. A empresa lançou em agosto a campanha “Energia para todo o Brasil, segurança para todos os Brasis”, em que faz um paralelo entre a celebrada diversidade do povo brasileiro – apesar das denúncias de indígenas afetados pela própria empresa no Complexo de Azulão – e a diversidade de fontes de energia.
O vídeo de lançamento da campanha foi veiculado no intervalo do Fantástico, dia 17 de agosto passado, e junto com outras peças publicitárias, passou a ser divulgado em diversos meios de comunicação – sobretudo de estados do Norte e do Nordeste – e nas redes sociais. Com imagens de brasileiros e natureza de diferentes regiões do país, o áudio celebra a diversidade do país e da “matriz energética múltipla” da Eneva, que traz “estabilidade, acessibilidade e desenvolvimento”, exaltando o gás como energia supostamente limpa e renovável, o que pode ser considerado uma “lavagem verde”.
Um relatório internacional inédito, lançado pelo Instituto Arayara (Brasil) e pela organização alemã Urgewald, denuncia o avanço da Eneva e da Petrobras sobre áreas sensíveis da Amazônia e revela a rota financeira que sustenta a destruição fóssil na América Latina. Disponível em inglês e intitulado “The Money Trail Behind Fossil Fuel Expansion in Latin America and the Caribbean”, o trabalhado rastreia bilhões de dólares em investimentos que alimentam a exploração de petróleo e gás em regiões de alta biodiversidade – muitas delas dentro da floresta amazônica.
As duas companhias brasileiras são chamadas de “Bandeirantes do Petróleo”. A Petrobras, estatal, é a campeã continental em captação de recursos para petróleo e gás; já a Eneva, privada, é apontada como a nova bandeirante da Amazônia, por liderar 72% de toda a área de exploração fóssil da região.
O principal acionista da Eneva é o BTG Pactual – que tem como um dos fundadores o ex-ministro da Fazenda Paulo Guedes – um dos protagonistas da agenda de privatizações do setor de energia no governo de Jair Bolsonaro (PL). Conforme o levantamento, entre 2022 e 2024, a Eneva captou US$2,72 bilhões em financiamentos, sendo 75% deste montante fornecido por bancos brasileiros. O BTG é o banco que mais destina recursos à companhia. Segundo o relatório, 71% de todo o investimento fóssil do BTG entre 2023 e 2024 foi direcionado à Eneva.
Com esse investimento, a empresa vem se tornando uma das principais fornecedoras privadas de energia do país. E, de acordo com o que foi apurado pela Agência Pública, não vai perder dinheiro com a “transição” energética em Roraima.
Na prática, contratos bilionários da Roraima Energia seguem em vigor
Conforme o contrato obtido pela Pública, a Roraima Energia paga à empresa Azulão Geração de Energia S/A – UTE Jaguatirica II, controlada pela Eneva, não só pela energia que a usina entrega, mas também por manter a estrutura pronta para funcionar sempre que o Operador Nacional do Sistema (ONS) identificar necessidade.
Esse tipo de acordo, chamado “Contrato de Disponibilidade”, divide a remuneração da Eneva em duas partes, que terão impactos distintos com a chegada do linhão.
A parcela fixa, ponto central do contrato, é paga mensalmente apenas por manter a usina em funcionamento, ou seja, por garantir a disponibilidade e cobrir o “nível de inflexibilidade contratual” (o mínimo de energia que a usina se compromete a manter disponível). Assim, mesmo com a necessidade de energia termelétrica reduzida após a chegada do linhão, a Eneva continuará recebendo 429,3 milhões de reais por ano “independentemente do despacho da usina” conforme o que está definido na subcláusula 7.2.1.
Já a parcela variável, só é paga quando o ONS (Operador Nacional do Sistema) determina que a usina gere energia acima do piso mínimo. Embora não seja possível prever o valor da redução de fornecimento com a chegada do linhão, dados da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) já apontam uma queda de 20,4% [veja boletim informativo] no custo total de geração no estado no comparativo de janeiro a agosto de 2024 com o mesmo período de 2025, um mês antes da interligação, já indicando menor fornecimento das térmicas.
Em nota, a empresa afirma que a Jaguatirica II continua operando mesmo depois da entrada em operação do Linhão de Tucuruí “porque o Operador Nacional do Sistema (ONS) exige a manutenção de parte da geração local para assegurar estabilidade ao sistema elétrico de Roraima” – o sistema de backup – capaz de dar suporte à expansão de energia solar, eólica e hídrica, consideradas intermitentes. Mas não fala em percentual de redução do fornecimento de energia pela interligação de Roraima com o SNI.
O professor do IFRR, Paulo Soares entende que mesmo mantendo fontes de backup, isso não pode ser confundido com dependência permanente. “Ter térmicas em operação é altamente oneroso, porque exige transporte de combustível a longas distâncias. Além disso, são fontes finitas, que se esgotam rápido, enquanto a demanda só cresce”, alerta, ressaltando que “nenhuma matriz energética é segura se tiver uma única fonte, é preciso manter alternativas”.
O mais adequado, conforme avalia Soares, seria reduzir ao mínimo a utilização dessas térmicas. “O ideal mesmo é que se faça uma expansão e se invista muito nas renováveis, para que as térmicas façam cada vez menos no sistema”, observa.
No caso da Eneva, como aponta o professor, o transporte do combustível, feito de caminhões, do complexo de Azulão, nos municípios de Itapiranga e Silves no Amazonas, para Roraima, atravessa 1.054 km. O que representa um grande consumo de óleo diesel, como pontua o ativista Tallon Macuxi, engenheiro eletricista e consultor de Mercado Livre de Energia.
“Esse gás natural é retirado de outras usinas de exploração, ou seja, a gente precisa gastar com o combustível dos caminhões que vão trazer esses gases. Então acaba que o diesel que não é utilizado para gerar energia é utilizado para transporte desse gás, que também, infelizmente, mesmo que seja menor proporção em relação ao diesel, ainda emite gás poluente”, avalia.
A Jaguatirica II é a maior fornecedora de energia termelétrica, mas não está sozinha quando se trata de receber sem necessariamente produzir. Outros contratos de geração térmica, de acordo com informações obtidas pela Pública por Lei de Acesso à Informação, também se estenderão por mais de uma década. A UTE Monte Cristo movida a diesel, combustível ainda mais poluente do que o gás, por exemplo, tem receita anual garantida de R$ 11,8 milhões até 2028.
Já as usinas menores, como Bonfim, Cantá, Pau Rainha e Santa Luz, têm contratos até 2036. Ao todo, são nove usinas (fora a Jaguatirica II) que faturam entre R$ 5 a R$ 34 milhões anuais. Algumas delas são movidas a biomassa, que é uma fonte renovável, mas outras utilizam gás e diesel.
A soma revela que, apesar do discurso de transição, Roraima permanecerá amarrada a uma matriz fóssil por força de contratos blindados, firmados em leilões emergenciais desde 2019.
Violações de direitos indígenas e isolados em risco em Campo Azulão
A Eneva foi alvo de uma Ação Civil Pública (processo judicial usado para defender direitos coletivos) movida pela Associação de Silves para a Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e pelo cacique Jonas Reis de Castro, liderança Mura, que acusou o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) de conceder licenças sem consulta aos povos indígenas e sem o Estudo de Componente Indígena (ECI), parte obrigatória dos estudos ambientais feita sempre que um projeto como uma estrada, usina ou hidrelétrica pode afetar terras, comunidades ou modos de vida indígenas.
A Pública teve acesso aos processos em que a Justiça Federal chegou a suspender as licenças, em maio de 2023, reconhecendo o risco de violação de direitos. No entanto, acatando o argumento da Eneva e da Roraima Energia, além dos órgãos públicos como a Aneel, de que haveria um blecaute no estado, o TRF-1 voltou a liberar as licenças de operação de dois poços da Eneva, logo depois da suspensão.
Um dos principais pontos de divergência entre os povos indígenas e a empresa foi em relação à distância das aldeias do campo de extração – a Eneva afirma que as terras indígenas estão a cerca de 40km de Azulão, mas integrantes do Ministério Público Federal (MPF) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) relatam nos autos a “sobreposição completa” da área de exploração com territórios tradicionais, o que resulta em contaminação de poços. Também citam relatos de indígenas sobre supostas práticas de intimidação e ameaças de morte a lideranças por parte da empresa que negou as acusações à imprensa. Há registros de indígenas que veem o fogo brotar da terra, mais precisamente dos poços de extração de gás da Eneva, em lugares onde vivem e em áreas onde agora são impedidos de entrar.
A gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu a provável presença de povos isolados na região e alertou que nenhuma licença deveria ser concedida antes da realização dos estudos de localização e proteção. Mesmo assim, uma brecha processual deixou esse ponto fora da questão central do processo judicial.
A nota da Eneva, enviada por e-mail para atender aos vários questionamentos que a reportagem pretendia fazer em entrevista com um porta-voz da empresa, também não menciona os conflitos socioambientais relacionados à extração do gás no Campo Azulão, no Amazonas, origem do combustível que abastece a usina, onde a empresa enfrenta uma Ação Civil Pública por possíveis irregularidades no licenciamento e impactos sobre terras indígenas. Um novo pedido de nota foi feito à assessoria, caso a resposta seja enviada, o material será atualizado.
Para a cientista indígena e coordenadora do Departamento de Gestão Territorial, Ambiental e Mudança Climática do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Sineia do Vale, o caso da Eneva é mais um em que o discurso das empresas é bem distante da prática, um dos obstáculos para vencer a emergência climática, reduzindo a emissão de gases estufa, e garantindo a proteção para os povos indígenas, principais mantenedores do meio ambiente e do clima.
“Hoje a gente vê muitas empresas se dizendo verdes e sustentáveis, mas quando olhamos de perto, percebemos que há uma máscara nisso”, afirma Sineia, enviada especial dos povos indígenas à COP 30 e co-presidente do Caucus (articulação internacional de movimentos de povos originários).
A equipe de reportagem da Agência Pública buscou o Tribunal de Contas da União (TCU) para saber sobre a fiscalização dos contratos bilionários de termelétricas em Roraima, e a resposta revela um vácuo de controle. A nota enviada da Secretaria de Comunicação do órgão informa que não há um processo específico aberto atualmente para acompanhar a execução do contrato da Usina Termelétrica (UTE) Jaguatirica II, da Eneva, afirmando que a responsabilidade é da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A ausência de fiscalização atual é ainda mais crítica quando se considera o histórico da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC). Em auditorias realizadas até 2020, a nota do TCU reconhece a existência de “problemas de governança”, citando textualmente “conflito de interesses” e até “pagamentos indevidos” quando o fundo era gerido pela pelas Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras).
A solução encontrada foi transferir a gestão para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). No entanto, a vigilância do TCU não acompanhou os novos contratos que vieram depois. Com isso, a UTE Jaguatirica II, que começou a operar em 2022 e hoje consome centenas de milhões de reais por ano em subsídios, atua em uma brecha temporal, exatamente após o último período de auditoria detalhada do Tribunal, levantando sérios questionamentos se as falhas do passado não correm o risco de se repetir sem a devida fiscalização.
