Com vídeos de humor e quase 200 mil seguidores, Joy Santos, 37, morador de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, diverte o público com postagens nas redes sociais.
Além de entreter, ele também usa a internet como ferramenta de trabalho com os vídeos de humor e recebe com frequência propostas de publicidade, muitas delas vindas de casas de apostas, que têm se popularizado entre os influenciadores.
Joy aceitou, há três anos, a primeira e única proposta da plataforma BetPix365, que oferece apostas online em modalidades como Brasileirão Série A, Copa do Brasil, além de jogos de mesa e cartas.
A divulgação foi feita durante um evento promovido na comunidade, conhecido como a primeira edição da Copa BetPix365, que teve Paraisópolis como projeto piloto. Durante o torneio, ele cobriu as atividades pelos stories do Instagram e incentivou os seguidores a apostarem. Pela ação, recebeu R$ 3 mil por quatro stories.
“Depois dessa primeira divulgação, eu não quis mais. Pensei duas vezes e fiquei imaginando: um pai de família pode perder o dinheiro do café da manhã dos filhos ou do aluguel em apostas. Porque, querendo ou não, o influenciador influencia”, comenta Joy.
Nesta reportagem especial, a Agência Mural mostra como influenciadores têm sido procurados para motivar a aposta do público nas periferias, e como eventos levaram a cultura das casas de apostas para dentro das favelas.
Bets e os influencer das favelas
A ação com Joy e o evento na maior favela de São Paulo é um exemplo de como as bets têm buscado influenciar o público nas periferias, ao menos desde 2022.
O evento foi um campeonato de futebol de várzea realizado pela casa de apostas em Paraisópolis, com ações culturais e sociais em parceria com uma ONG local.
A iniciativa também foi expandida para outras comunidades, incluindo o Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, Brasilândia, na zona norte de São Paulo, Heliópolis, na zona sul, e Osasco, cidade da Grande São Paulo.
Para chegar nas quebradas, influenciadores que vivem nos bairros foram procurados por casas de apostas. Plataformas como jogo do Tigrinho também têm causado impacto na vida dos moradores
Em dezembro, a Agência Mural revelou que as casas de apostas entraram também no futebol de várzea, em meio às discussões sobre o efeito do jogo na renda e na saúde da população.
A atuação dos influencers virou debate nos últimos meses, após investigações contra celebridades como Deolane Bezerra, e também com o começo da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) das Bets, que ouviu depoimentos como o de Virginia Fonseca.
A ideia por trás disso costuma ser usar a imagem dos influencers para incentivar o jogo. Os influencers periféricos passaram a também ser um alvo desse mercado.
Não aceito
Recentemente, Joy recebeu uma proposta de R$ 8 mil para divulgar uma casa de apostas por uma semana, além de 50% de lucro sobre o dinheiro que seus seguidores apostassem. Ele recusou. “Tenho um contato direto com o meu público, encontro muita gente, sou da periferia, sou de Paraisópolis”, comenta.
O influencer afirma ser comum encontrar alguém pelo bairro que seguiu alguma indicação dele, como: “Ah, você divulgou uma loja, eu fui lá e comprei”.
Já pensou um seguidor, um pai de família, que falou: ‘Eu só tinha um dinheiro para pagar aluguel e eu acreditei que ia dobrar o dinheiro porque você falou isso’? Eu vou ficar sem chão, né?
Joy Santos
Influenciador de Paraisópolis
Não é só o mundo esportivo e no de influencers de humor que costuma ser sondado por bets na região. No entanto, há quem recuse o apoio financeiro.
Outra moradora de Paraisópolis, a maquiadora Melissa de Souza Palma, 21, é criadora de conteúdo no universo da beleza e do dia a dia. Ela também recebe diversas propostas de publicidade — entre elas, do Grupo 777, A2FBR LTDA e VBET.
Os valores oferecidos variaram entre R$ 5 mil e R$ 25 mil por campanha, mas ela nunca aceitou nenhuma proposta. Melissa tem quase 20 mil seguidores nas redes sociais.
“Recusei porque não concordo com o que essas plataformas representam. Me recuso a promover algo que prejudica tantas pessoas, mesmo que pareça tentador financeiramente”, diz. “Escolha ser exemplo, não armadilha”.
Mel mora em Paraisópolis e já foi sondada por casas de apostas
Nenhum valor justifica o impacto negativo que isso pode causar na vida de tantas pessoas
Melissa
Influencer de beleza em Paraisópolis
“Você pode até lucrar agora, mas lá na frente vai perceber o peso de ter contribuído para o sofrimento alheio”, completa.
Ela conta que, durante a aula de maquiagem, uma aluna revelou que havia perdido muito dinheiro com jogos de aposta e não conseguia mais parar, mesmo vendo o impacto na própria vida. “É um vício disfarçado de oportunidade”, comenta Melissa.
Impacto das apostas
Se por um lado os criadores de conteúdo funcionam como vitrines para atrair novos apostadores, do outro estão os impactos silenciosos e pouco falados dentro das comunidades.
A irmã do motoboy Carlos Silva*, 37, é um exemplo disso. Morador de Paraisópolis, ele relata que a irmã Maria Silva*, 34, foi fisgada pelas propagandas de influenciadores.
Maria começou a jogar em 2023, inicialmente com jogos populares como o Tigrinho. No começo, era diversão. Ganhou R$ 5 mil, depois R$ 10 mil, e isso a motivou a continuar.
Carlos percebeu que a irmã passava madrugadas acordada, ia trabalhar com olheiras e começou a esconder o hábito da família por medo de julgamento. Em um dos picos de ganhos, ela chegou a embolsar R$ 40 mil, mas perdeu tudo tentando duplicar os ganhos.
Endividamento é um dos principais temores
Com as perdas, começou a pedir dinheiro emprestado para toda a família, até mesmo para parentes de outros estados. Foi quando a família descobriu que ela estava devendo para um agiota. A dívida ultrapassava os R$ 16 mil, e Carlos e os familiares precisaram fazer um empréstimo para quitá-la.
“Isso causou um estresse danado na gente. Éramos uma família unida, fazíamos churrasco todo fim de semana. Esses jogos aí até nosso laço familiar prejudicaram”, afirma Carlos.
Carlos relata que a dependência em jogos gerou uma crise emocional na irmã, levando-a à depressão.
“O cabelo dela começou a cair de estresse e ela foi fazer tratamento. Hoje em dia, por causa dessa situação, não nos falamos mais. Ela está pagando o que deve, mas fico triste por esse vício ter colocado minha irmã em um buraco e ter afastado nossa família”, lamenta.
Maria é vítima de um sistema que tem mobilizado muito dinheiro.
Alcance das bets
As apostas de quota fixa foram legalizadas no Brasil pela Lei 13.756/2018, mas só começaram a ser regulamentadas de fato com a sanção da Lei 14.790/2023, conhecida como Lei das Bets.
A regulamentação passou a vigorar em janeiro de 2025, com ações lideradas pelo Ministério da Fazenda, que criou a SPA (Secretaria de Prêmios e Apostas) para organizar e fiscalizar o setor.
Entenda o que prevê a regulamentação
Algumas regras da nova regulamentação:
Sede no Brasil: Empresas precisam ter sede e administração no país.
Licença obrigatória: Operadoras devem pagar R$ 30 milhões por uma licença válida por quatro anos.
Tributação: Incide uma alíquota de 15% sobre a receita bruta das operadoras.
Domínio “.bet.br”: Todas as empresas devem operar em sites com esse domínio, facilitando o controle e combate a sites ilegais.
Identificação dos apostadores: É obrigatória a identificação via CPF e, em alguns casos, reconhecimento facial.
Transações seguras: Todas as apostas e prêmios devem ser pagos por meio de contas bancárias registradas no nome do apostador.
Regras para publicidade: Campanhas publicitárias precisam seguir diretrizes para evitar práticas abusivas e promover o jogo responsável.
Apesar disso, os impactos começaram muito antes e entraram nas casas de muitos brasileiros. Um levantamento do Instituto Locomotiva em 2024 aponta o perfil de quem joga: 47% são mulheres e 53% dos apostadores são homens.
A pesquisa ouviu esses jogadores sobre os impactos que já viveram por conta do jogo:
Não há um dado fechado do número de apostadores e arrecadação. Mas estima-se superar os 20 milhões de pessoas.
Só entre janeiro e março de 2025, os brasileiros movimentaram entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por mês em apostas online, segundo estimativa apresentada pelo Banco Central, durante a CPI das Apostas Esportivas no Senado.
Enquanto em uma ponta há esses valores bilionários, na outra estão famílias que se endividaram para manter a roleta girando.
Devo R$ 30 mil
O vício em apostas afetou a rotina de Josefa Souza*, 36, diarista e também moradora de Paraisópolis. Exausta pelas noites mal dormidas, ela lembra de sair para o trabalho sem descanso, levada pela ilusão de que poderia conseguir uma renda extra.
Ela começou com R$ 20. Quando ganhava R$ 50, sacava. Usava os bônus oferecidos pelas plataformas para apostar mais. Jogava o Tigrinho, o Touro e, principalmente, a roleta, um tipo de jogo ainda ilegal no país.
“Comecei com valores baixos. Depois fui aumentando para R$ 100, R$ 200, R$ 300. Fui ficando sem controle, sabe?”, relata Josefa. Em determinado momento, chegou a ganhar R$ 2.500.
Continuei jogando, não sacava. Continuava jogando para ganhar mais. E terminava perdendo tudo. Então, só perdi muito dinheiro e fui pegando dinheiro emprestado para jogar mais
Moradora com vício em jogo
Hoje, Josefa deve mais de R$ 30 mil a agiotas.
Em novembro do ano passado, Josefa decidiu conversar com o marido e com a sobrinha para pedir ajuda. “Não aguentava mais jogar escondido, debaixo do cobertor, para o meu marido não descobrir. Fiz uma dívida enorme. Todo o dinheiro que era pra dentro de casa eu apostei. Isso começou a me dar ansiedade e eu passei a me sentir muito mal, tive que pedir ajuda”, relata.
ATENÇÃO:
Os próximos trechos da reportagem contêm um relato sobre o risco de suicídio e também serviços de apoio a saúde mental. Caso este tema possa ser sensível para você, recomendamos cautela na leitura. Há serviços de apoio como o Centro de Valorização da Vida e o disque 188.
Josefa conta que, com esforço próprio, desde novembro não coloca mais dinheiro em plataformas de apostas, mas que chegou a jogar utilizando bônus — sem ganhar nada.
“Sou diarista, né? Não ganho tanto. O jogo acabou com a minha vida. Minha filha fazia balé. Hoje em dia, não tenho nem como colocar ela no balé. Porque não tenho dinheiro, não tenho de onde tirar.”
Ela compartilha que chegou a tomar remédio para tentar se suicidar. “Não via saída para a minha situação. Está sendo uma fase muito delicada. Até hoje, eu olho para o meu passado e não me reconheço mais.”
Entidade que representa a classe diz que o jogo é apenas para diversão
Dependência em bets
O cérebro de uma pessoa com dependência em jogo sofre o mesmo processo que do álcool, cocaína, crack, nicotina, por ser o mesmo sistema neurológico
É o que explica Edilson Braga, psicólogo clínico e pesquisador pelo AMJO (Ambulatório do Jogo) um serviço especializado do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPq-HCFMUSP).
Ele atua na área há 19 anos, fazendo não só pesquisas sobre toda a temática do transtorno do jogo, como na linha de frente, atendendo todo esse público com essa demanda desse transtorno.
Apesar do jogo ser uma dependência comportamental, ele ativa o mesmo circuito de recompensa no cérebro. “O que é muito importante de esclarecer é que a dependência do jogo não se dá porque a pessoa fez uma aposta e ganhou”, explica.
O ato de apostar já libera dopamina no cérebro. Não importa se ganhou ou perdeu. Apostar já ativa o sistema de recompensa como se fosse uma dose de droga
Edilson Braga
Psicólogo e pesquisador
Edilson acrescenta que quando a pessoa fica sem essa sensação, pode ter uma crise de abstinência. É nesse ponto que muitas desenvolvem dependência.
Impacto na saúde mental é um dos principais desafios
Ele explica que quando a pessoa desenvolve dependência dos jogos, é muito comum que ela também desenvolva depressão e ansiedade, que o jogo nunca vem sozinho.
“Se a pessoa já fumava, ela passa a fumar o dobro. Se já bebia, começa a beber muito mais. Os primeiros sinais costumam ser ansiedade e irritação, especialmente quando ela tenta parar ou quando está tentando recuperar o dinheiro perdido”, afirma.
Como funciona o tratamento
Quando a pessoa consegue iniciar o tratamento, ela passa por uma triagem completa, que avalia não só o jogo, mas também outras questões psicológicas e neurológicas. A triagem investiga, por exemplo, se ela tem depressão, ansiedade, ideação suicida. De acordo com o psicólogo, 80% dos pacientes já chegam pensando em tirar a própria vida.
Depois disso, ela entra no ambulatório e passa a ser acompanhada por um médico psiquiatra, que pode atendê-la mensalmente ou a cada dois meses, dependendo do caso. Se houver uma emergência, esse atendimento pode ser antecipado.
A família também é acolhida. Participa de encontros de psicoeducação, recebe orientação, suporte e acompanhamento. O tratamento envolve não só o indivíduo, mas todo o contexto ao redor dele.
“Os jogos não adoecem só o paciente e sim toda a família inteira”, afirma Edilson.
Apesar disso, conseguir o acesso não é simples. A fila de espera é longa, e pode durar de seis meses a um ano. O profissional afirma que o SUS (Sistema Único de Saúde), CAPS, (Centro de Atenção Psicossocial) e UBS (Unidade Básica de Saúde) estão lotados, despreparados.
“Não há profissionais capacitados para tratar transtorno do jogo. Falta tudo: orçamento, remédio, estrutura”, comenta. E por fim, ele ainda reforça que o SUS vive uma epidemia silenciosa.
Favelas como Paraisópolis e Heliópolis já tiveram eventos com apoio de casas de apostas
O que dizem as bets
Procuradas, as empresas de apostas não retornaram até a publicação desta reportagem. Já a ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias), associação que reúne casas de apostas legalizadas, enviou uma nota na qual afirma “promover campanhas constantes nas redes sociais para educar os apostadores quanto à função principal dos jogos on-line: diversão e não meio de ganhar dinheiro ou fonte de renda.”
No entanto, a entidade diz que não promoveu ações específicas em comunidades.
A ANJL diz que os associados cumprem as regras de propagandas definidas no Código Brasileiro de Regulamentação Publicitária do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), e do jogo responsável da portaria da SPA (Secretaria de Prêmios e Apostas).
“Temos o comprometimento com o jogo responsável, íntegro e condenamos quaisquer ações de incentivo ao excesso de apostas pelos usuários e/ou de endividamento para manter o hábito de jogar”, afirma a ANJL. Também cita que o acesso às plataformas é permitido apenas para maiores de 18 anos e que promove a campanha “Aposta não é jogo de criança”.
“A Associação tem feito sua parte, criando mecanismos para impedir o acesso de menores. Mas as ações de conscientização também precisam ser abraçadas pelos responsáveis dessas pessoas.”