A Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra) entrou na noite desta terça-feira, 30 de setembro, com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é declarar a inconstitucionalidade do Artigo 638 do decreto-Lei 5.452 (1943), conhecido como lei da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que permitiu que o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, assumisse um processo administrativo contra a Seara/JBS Aves, do grupo JBS. A empresa foi autuada em maio por trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul. A informação foi compartilhada com exclusividade para a Agência Pública por dois dirigentes da Associação, o coordenador geral de Política de Classe, Jair Teixeira dos Reis, e o coordenador de relações institucionais, Mário Diniz.
O artigo, que data de 1943, permite ao ministro da pasta “avocar ao seu exame e decisão (…) questões referentes à fiscalização dos preceitos estabelecidos nesta Consolidação” e dá 90 dias para decidir. Como a lista suja, nome pelo qual é conhecido o cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo, será publicada em 6 de outubro, a reavaliação do ministro abre caminho para que a Seara/JBS Aves, do grupo JBS, não seja incluída.
O processo já havia sido concluído nas instâncias normais, com a apresentação e avaliação dos recursos da empresa. Em dezembro de 2024, 10 trabalhadores foram resgatados em Passo Fundo (RS). Segundo os auditores fiscais que fizeram o flagrante, eles trabalhavam até 16 horas por dia, se alimentavam de frangos considerados fora do padrão pela JBS e trabalhavam para pagar dívidas com transporte e alimentação. Eles haviam sido contratados pela MRJ Prestadora de Serviços, uma terceirizada, mas a unidade da JBS foi classificada como “a principal responsável” pelas infrações.
Quando recebeu o pedido de avocação, Luiz Marinho pediu um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que concluiu pela legalidade da medida. O procurador Ricardo Panquestor Nogueira a considerou “adequada e recomendável” dada “a gravidade excepcional do caso, a relevância econômica da empresa envolvida e o interesse público na uniformização da interpretação legal em matéria de tão significativo impacto nacional”. Após a decisão, um grupo de coordenadores estaduais de combate ao trabalho escravo deixaram seus postos em protesto.
“É um artigo que fere todos os princípios da administração pública, impessoalidade, finalidade e moralidade. Ele está num contexto lá dos anos 40, em que não tinha a configuração do Estado brasileiro como tem hoje, então a gente acha que não tem nem sustentação jurídica e legal que ele está fazendo”, rebate Mário Diniz.
Na peça, acessada pela Pública, a Anafitra argumenta que o artigo viola a “independência técnica e a autoridade” dos fiscais e ameaça “toda a política de erradicação do trabalho escravo no país”, tendo gerado uma “crise institucional sem precedentes”. A peça também argumenta que a medida colide com a Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, que determina regras para a inspeção do trabalho e diz que o trabalho dos fiscais deve ser livre de “qualquer influência externa indevida”.
“Se for declarado inconstitucional, como a gente já viu [em outras decisões do STF sobre a lista suja], a gente espera o ato do Marinho cair por terra”, explicou Diniz, ressaltando que isso também impediria a aplicação da medida no futuro, por outros ministros. Os auditores avaliam que a possibilidade de avocar processos conduzidos tecnicamente cria uma terceira instância de recurso não prevista, que fragilizaria o combate ao trabalho análogo à escravidão.
“Combater o trabalho escravo é o resgate de uma dívida social e política que o Estado brasileiro tem com a população, com o trabalhador e trabalhadora brasileira”, finalizou Diniz.