“Denunciei. Viralizou. E eu não vou parar. Você que é de direita, está na hora de rever quem os atende como profissional, seja médicos, manicure, veterinários, porteiro, engenheiro, psiquiatra, psicólogo, não importa. A esquerda é assassina.”
A fala é de Flávia Magalhães, influenciadora bolsonarista residente na Flórida, nos Estados Unidos, que teve prisão preventiva decretada em 2024 por descumprimento de ordens judiciais. Ela e outros bolsonaristas brasileiros que vivem no país estão coordenando uma ação contra perfis que teriam feito comentários positivos sobre a morte do ativista de extrema-direita Charlie Kirk nas redes sociais. O objetivo do grupo é gerar demissões dessas pessoas ou até mesmo proibir que entrem nos EUA.
Segundo a Agência Pública apurou, além de Magalhães, atuam na campanha o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, além de advogados e consultores de imigração.
Charlie Kirk foi assassinado no dia 10 de setembro enquanto discursava em um evento no campus da Universidade do Vale de Utah. Aliado a Donald Trump, ele era fundador da organização “Turning Point USA”, que promovia o conservadorismo em universidades americanas. Kirk, que era um ferrenho defensor do direito às armas nos EUA, foi morto por um atirador.
Por que isso importa?
- A reação de Trump e outros líderes do movimento MAGA (Make America Great Again) ao assassinato de Charlie Kirk vai desde demissões, cancelamento de vistos e propostas de mudanças na legislação, que podem restringir direitos civis no país;
- A postura de Trump é bastante diferente em relação ao assassinato da presidente da Câmara de Representantes de Minnesota, Melissa Hortman, do partido Democrata, que aconteceu no início do ano. Ele disse a jornalistas que o caso não lhe “era familiar”.
Até o momento, as investigações não apontaram a motivação por trás do crime. Tyler Robinson, de 22 anos, está preso acusado do assassinato. De um lado, ativistas de esquerda especularam possível ligação entre o atirador com um grupo de ultradireita chamado Groypers, que se opunha à abordagem de Kirk.
Quem são os Groypers?
Os Groypers são uma vertente da extrema-direita dos EUA associada a memes e a fóruns anônimos na internet, conhecidos como chans. Eles se definem como nacionalistas cristãos, se opõem ao feminismo e aos direitos LGBTQ+ e acreditam que os EUA deveriam fechar suas fronteiras. O principal representante do grupo é o podcaster Nick Fuentes, que foi banido das redes sociais por disseminar conteúdo de cunho racista. Fuentes mantinha uma rivalidade com o ativista Charlie Kirk, por discordar de sua abordagem aberta ao debate e de sua proximidade com o governo Trump. Fuentes e seus seguidores negam relação com o atentado.
Por outro lado, conservadores americanos já culpavam ativistas de esquerda pelo crime antes mesmo da identificação do responsável pelo tiro que matou Kirk. Logo após o atentado, o governo americano afirmou que utilizaria o poder do Estado para punir o que eles alegaram ser “uma rede de esquerda que financia e incita a violência”, conforme noticiou o The New York Times. Um dos programas mais tradicionais da TV dos EUA, o Jimmy Kimmel Live!, foi suspenso após criticar o uso político do assassinato de Kirk por trumpistas. Trump quer aproveitar o assassinato para usar a lei do crime organizado contra adversários políticos no país.
Já o vice-secretário de Estado dos EUA, Christopher Landau, anunciou que revogaria os vistos de estrangeiros que comemorassem o ataque. A publicação foi compartilhada por Magalhães. A influenciadora é acusada de incitação ao crime e associação criminosa, e já tinha tido redes bloqueadas no Brasil em 2023. Seu caso é citado no processo da empresa Rumble contra o ministro Alexandre de Moraes nos EUA, como exemplo de suposta perseguição contra americanos. “Por favor, se alguém ler algum comentário fazendo apologia ao crime, por favor, faça um print e me mande se você não tiver coragem de denunciá-los ao estado americano. Mande pra mim via inbox. Eu envio aos órgãos responsáveis. Obrigada”, escreveu.
Nos dias seguintes, ela, que possui cidadania americana, expôs dezenas perfis que teriam feito comentários positivos sobre a morte de Charlie Kirk nas redes sociais. Entre eles está um neurocirurgião pernambucano que elogiou a pontaria do atirador que matou Kirk em comentário nas redes sociais. Magalhães compartilhou um print do post – que foi apagado – com autoridades americanas que cancelaram o visto do médico.
Questionada, Magalhães afirmou que encaminharia os questionamentos da reportagem “ao departamento americano”, como forma de intimidação e defendeu que “o visto americano é um privilégio”. Já o advogado Rafael Ribeiro se recusou a dar entrevista à Pública e expôs o contato da jornalista em suas redes sociais.
Os demais perfis citados não responderam até a publicação. O espaço permanece aberto para manifestações.
Charlie Kirk: “Aqui vocês não têm direito a falar o que vocês querem”
“Você em casa, preste muita atenção no que eu vou dizer. Se você perceber que tem um vizinho seu, um colega, um conhecido ou alguém na publicação de um amigo seu ou algo assim dizendo ‘morte ao Nikolas’, ‘morte ao fulano’, ‘morte ao ciclano’. Não argumente, não esperneie, tire um print, pegue o perfil da pessoa, se você souber onde a pessoa mora, você pega o print com o nome completo e endereço da pessoa e entrega pra polícia. Não é dedurar. Nós precisamos extirpar legalmente essas pessoas”, incentivou o blogueiro Allan dos Santos, foragido nos EUA, durante live no dia 12 de novembro.
A Pública mostrou como o blogueiro atuou para que o ex-assessor de Moraes, Eduardo Tagliaferro, falasse com senadores bolsonaristas durante o julgamento que condenou Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado no STF.
A iniciativa ainda contou com o apoio de advogados de imigração nos EUA. Em publicação conjunta com Santos, Rafael Ribeiro e Danúbia Mayer, sócios de escritório imigratório na Flórida, orientaram seus seguidores a marcarem a embaixada americana e outras autoridades em comentários de pessoas que comemorassem o assassinato de Kirk. Os dois também divulgaram um site anônimo para recolher denúncias deste tipo.
Segundo a advogada Ana Bárbara Schaffert, que compõe a defesa do ex-assessor de Bolsonaro, Filipe Martins, nos EUA, até o dia 14 de setembro “mais de 80 pessoas já tinham tido vistos americanos revogados em virtude de comportamento em rede social”. Ela divulgou esses dados em live do canal Conversa TimeLine, do jornalista Luís Ernesto Lacombe, em parceria com Allan dos Santos e Max Cardoso, no dia 17 de setembro. “Ah mas os EUA não protege a emenda constitucional? Aqui vocês não têm direito a falar o que vocês querem. Nesse ponto não”, afirmou.
A reportagem pediu à embaixada americana números oficiais de vistos cancelados, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Caça às bruxas: “Eu quero eles, os filhos, a esposa, sem poder pisar nos EUA”
A campanha pela revogação de vistos e demissões não se restringiu apenas a pessoas que teriam feito publicações desrespeitosas sobre a morte de Charlie Kirk. Essa semana, usuários no X (ex-Twitter) expuseram que o influenciador Felipe Neto teria viajado aos EUA e pediram a autoridades americanas deportação dele com base em publicações antigas que criticavam Donald Trump.
A iniciativa ganhou o apoio do comentarista Paulo Figueiredo, que atua com Eduardo Bolsonaro pela sanção de autoridades brasileiras nos EUA. Em live no dia 16 de novembro, ele admitiu ter utilizado de sua posição privilegiada com autoridades americanas para denunciar Neto. “E eu não sei se [o visto dele] foi ou não cancelado ainda, mas eu sei que existe uma boa possibilidade disso estar acontecendo porque eu fiz questão de enviar todas as informações possíveis a altos oficiais do Departamento de Estado pessoalmente”, afirmou.
Em live nesta quarta-feira, 17 de setembro, Allan dos Santos também sugeriu que as denúncias se estendessem a pessoas que comemorassem a internação de Jair Bolsonaro (PL) e até à imprensa. “Eu convido você a se vingar dessa imprensa que comemora a morte do Charlie Kirk. Se vingar dessa imprensa que comemora o Bolsonaro indo pro hospital, ou comemorando, ou usando os termos mais abjetos”, afirmou.
Não é a primeira vez que o blogueiro incita a perseguição de jornalistas e influenciadores. Em 26 de agosto, ele chegou a afirmar que teria enviado o perfil de “26 ou 27 pessoas” para a embaixada dos EUA pedindo a suspensão de vistos. “Eu quero todos eles sem poder pisar nos EUA. Um por um. Eu quero eles, os filhos, a esposa, sem poder pisar nos EUA”, disse.
Assim como no caso recente, a fala do blogueiro foi amparada em novas medidas da administração Trump sobre a concessão de vistos. Em 20 de agosto, o governo americano anunciou que avaliaria a manifestação de opiniões anti-americanas de requerentes de vistos. Na época, Figueiredo insinuou que a deputada Érika Hilton (PSOL-SP) e a cantora Anitta teriam seus vistos cancelados.