Sandra García abre a torneira de sua casa, mas não sai água. Aos 38 anos, ela trabalha numa fábrica e vive com o marido e o filho em Viborillas, Colón, no estado mexicano de Querétaro. Mas agora a situação faz parte do seu cotidiano e dos seus vizinhos da cidade de El Marqués, região afetada pela escassez de água. O governo anunciou o racionamento de água. Algumas famílias só têm água a cada três dias.
García tem que ir uma vez por semana visitar a proprietária da casa que aluga para pegar água em baldes.
A região sofre de stress hídrico desde 2008. Em abril, a autoridade responsável pelos recursos hídricos declarou que 17 dos 18 municípios do estado não receberam chuva suficiente.
Embora muitos residentes de Colón relacionem a falta de chuvas com as torneiras secas, poucos sabem que enfrentam um novo concorrente pelo valioso recurso.
O estado de Querétaro é um dos pólos latino-americanos onde a indústria de data centers está em franca expansão. De acordo com a Associação Mexicana de Data Centers, existem 14 no estado. A Secretaria de Desenvolvimento local informou que há 19 autorizações.
Muitos usuários da internet imaginam que os seus serviços de armazenamento em nuvem funcionam num espaço etéreo. Mas não é assim. O Google Drive, OneDrive, Amazon Web Services (AWS) e outros dependem de uma infraestrutura bem mundana: um edifício cheio de computadores, conhecido como data center, onde servidores guardam informações pessoais, transportam as imagens e textos que se vêem ao acessar uma página web.
Os data centers existem há décadas, mas só recentemente começaram a ser motivo de preocupação. Desde a expansão da inteligência artificial (IA) generativa, como o ChatGPT, começaram a ser construídos data centers novos, mais complexos e caros, conhecidos como “data centers em hiperescala”. Grandes empresas do setor estão de olho na América Latina, região que possui vastos recursos naturais, energia barata e governos dispostos a reduzir impostos para não ficar de fora da “nova era digital” da IA.
Para aproveitar esta oportunidade, a indústria de data centers — que também inclui setores como o imobiliário, da construção, de energia e os fornecedores de componentes e materiais — investiu em fortalecer os seus laços com autoridades nacionais, influenciando muitas vezes as regulações. Com os projetos avançando rapidamente, vários países latino-americanos já enfrentam muitos desafios ambientais, de governança e energéticos.
As empresas do setor argumentam que a IA é o futuro da economia e que seria um erro ficar para trás, já que as suas novas instalações trarão empregos e prosperidade. Também afirmam que as novas tecnologias de construção vão reduzir o impacto no consumo de água e energia dos data centers. Algumas prometem que só utilizarão energia renovável para seu funcionamento.
Enquanto a promessa de um boom econômico ligado à IA não se materializa, muitos governos latino-americanos, confiando nos argumentos otimistas da indústria, decretaram políticas para atrair novos data centers através de incentivos fiscais ou desregulação.
Durante nove meses, uma aliança de 17 veículos em 13 países realizou pedidos de informação pública, entrevistou diversas fontes do governo e do setor e ouviu pessoas que vivem perto de data centers para checar essas promessas de progresso. Este trabalho faz parte da investigação A Mão Invisível das Big Techs, coordenada pela Agência Pública e pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (CLIP).
Estudos mostram que, depois da fase de construção, são criados apenas algumas dezenas de postos de trabalho, já que é necessário muito pouco pessoal para operar os data centers. E os benefícios para as economias locais não são claros.
Mas esse não é o único problema. Os data centers novos e mais avançados consomem mais eletricidade para funcionar. Embora algumas empresas prometam que vão usar energia renovável, essas alegações são difíceis de verificar, e novos geradores elétricos recorrem, na sua maioria, a combustíveis fósseis.
Também descobrimos que as corporações multinacionais que dominam o mercado de data centers são conglomerados com estruturas de propriedades complexas, o que dificulta a sua regulação e permite serem pouco transparentes em relação ao seu impacto ambiental e de uso de recursos. Em muitos países latino-americanos, organizações locais tiveram que lutar para manter o acesso a água e energia, e não vêem qualquer benefício desses empreendimentos. Afinal, eles servem a pessoas que estão em outros lugares, armazenando e processando dados alheios.
Fique frio
Um dos principais desafios para os fornecedores de data centers é a refrigeração.
Os servidores são compostos por placas com unidades de processamento que fornecem potência de computação. Estes servidores funcionam constantemente e devem ser mantidos dentro de uma faixa de temperatura estável, o que geralmente requer sistemas de refrigeração que consomem muita água. Até pouco tempo atrás, as unidades centrais de processamento (CPU) eram o componente-chave dos data centers. Agora, unidades de processamento gráfico (GPU) são muito mais eficazes para satisfazer as demandas de computação geradas pela IA.
Com o recente “boom” da inteligência artificial generativa, a nova geração de data centers de IA funciona a temperaturas muito mais altas e, portanto, requer muito mais água para refrigeração.
Os data centers mais novos tentam minimizar o consumo de água de diferentes formas. Alguns criam um “sistema de circuito fechado” no qual, em teoria, a água não evapora, portanto não é necessário acesso contínuo a este recurso. Mas Sharlene Leurig, sócia-gerente da Fluid Advisors, uma consultoria especializada em água, disse à Bloomberg que “a água costuma ser a última consideração ao decidir a localização dos data centers, porque é barata em comparação com o custo do terreno e da eletricidade”.
Metade de todos os data centers no Brasil (seja em fase de planejamento, construção ou operação) estão no estado de São Paulo, principalmente na região de Campinas, segundo dados obtidos pelo Núcleo Jornalismo através do Data Center Map, uma plataforma que mapeia a localização destes centros no mundo.
Nos últimos anos, esta região enfrentou numerosas crises hídricas. A mais grave ocorreu entre 2014 e 2015. No final de agosto, a Sabesp, empresa de água paulista, anunciou racionamento noturno de água em toda a região metropolitana da capital.
A indústria de data centers identificou outras cidades brasileiras com escassez de água como locais de interesse. Nove das 14 cidades que já têm, ou terão, novos data centers — segundo um pedido de informação enviado pela Agência Pública — foram classificadas pelo Water Risk Atlas como de risco médio-alto em termos de água. Outras três têm como de “risco alto”.
Entre estas últimas estão Campo Redondo, no estado do Rio Grande do Norte; Igaporã, na Bahia; e Caucaia, no Ceará. O TikTok está construindo um data center nesta última localidade, embora, segundo uma reportagem do The Intercept Brasil, é muito provável que essa obra agrave a seca.
A Pública questionou Luís Tosse, vice-presidente da Associação Brasileira de Data Centers (ABDC) sobre as críticas relacionadas ao elevado consumo de água destes centros. Tosse afirmou que “temos água disponível” e que, portanto, isso não deveria ser considerado um problema no Brasil. Andrei Gutierrez, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Software (Abes), acrescentou: “é a mesma coisa que falar, ‘cara, não vamos construir estrada, não vamos construir estrada porque a estrada faz a impermeabilização do solo.’ Entendeu? Eu acho que tudo é uma questão de você ter que ter planejamento nesse país, né?”.
Em Querétaro, no México, a equipa de televisão N+ Focus, que faz parte desta investigação, descobriu que tanto o governo estadual como o federal lançaram uma estratégia para atrair data centers, apesar dos relatórios da autoridade ambiental local recomendarem a suspensão de novas licenças de uso de água. A cidade viveu a sua pior seca do século em 2024, quando 14,8% da população não teve acesso constante à água potável e os trabalhadores agrícolas tiveram dificuldades para regar os cultivos.
Mas as empresas de data centers também investem em mudar a narrativa: a N+ Focus revelou que a Microsoft e a ONU-Habitat elaboraram um relatório solicitando um investimento de 82 milhões de pesos mexicanos para impulsionar a economia local em Querétaro. O relatório identificou a seca como um dos principais desafios, mas não recomendou investimentos para solucioná-lo. Em vez disso, propôs investir em infraestrutura para a região, como pavimentar ruas ou construir um telhado para uma praça pública. E afirmava que “os data centers representam uma oportunidade para a transformação socioeconómica do estado de Querétaro e, mais especificamente, dos municípios de El Marqués e Colón”.
A Microsoft não realizou investimentos em infraestrutura para mitigar a seca nem enfrentar outros problemas socioeconômicos no estado, conforme verificou a reportagem ao visitar sete dos oito municípios mencionados no relatório e falar com autoridades locais. Por outro lado, a Microsoft construiu uma “região de data center” em Querétaro, que começou a operar no início de 2024.
Esta investigação perguntou à Microsoft o propósito deste relatório e se os seus data centers poderiam piorar o acesso à água. A Microsoft respondeu fornecendo um link para seu site.
A reportagem também procurou a Amazon, que anunciou este ano a construção de data centers em Querétaro, para perguntar sobre o uso de água. A empresa respondeu que vai usar uma tecnologia de construção sem água para o resfriamento. Com isso, diz a Amazon, a empresa vai se aproximar do compromisso de ter uma pegada hídrica positiva até 2030.
Em 2018, no Chile, o Google anunciou, numa conferência de imprensa com o então presidente Sebastián Piñera e alguns dos seus ministros, um investimento de 140 milhões de dólares para expandir a instalação que havia construído em 2015, apesar da escassez hídrica na região. E em 2019, a Big Tech disse que planejava construir um segundo data center no distrito de Santiaguino de Cerrillos, a um custo de 200 milhões de dólares. Cidadãos protestaram e autoridades locais se queixaram, já que este novo centro usaria grandes quantidades de água para os seus sistemas de resfriamento. (Ver história completa do LaBot)
A batalha pelos data centers no Chile deu origem a uma crescente consciência sobre os possíveis danos e, por sua vez, a um questionamento sobre quem se beneficia de fato. “É uma nova forma de extrativismo digital, estão nos usando a partir do Norte Global”, diz Tania Rodríguez, líder do Movimento Socioambiental e Comunitário pela Água e pelo Território (Mosacat).
Uma decisão judicial revogou a licença para construir o segundo data center, e o Google se comprometeu a elaborar um novo plano para utilizar refrigeração sem água.
No entanto, a reportagem do LaBot revelou que o governo chileno aprovou administrativamente uma mudança regulatória que permitirá construir data centers sem passar por um estudo de impacto ambiental.
Até agora, esse processo permitia supervisionar a proteção dos recursos naturais, e os residentes locais podiam colocar questões sobre os possíveis impactos nas suas vidas.
A nova norma abaixa o nível de exigências. Se estivesse em vigor nas últimas décadas, apenas 10% dos projetos teriam passado por estudo de impacto ambiental.
Esta decisão administrativa só veio a público depois do LaBot questioná-la em uma reportagem.
Fique ligado
Uma maior capacidade de geração de energia é fundamental para o negócio da inteligência artificial. Será necessária mais energia com o crescimento exponencial dos data centers, mesmo que cada um deles, individualmente, use menos água.
E à medida que cresce a demanda por eletricidade, também se intensifica a pressão para construir capacidade de geração a partir de combustíveis fósseis. Isto pode atrasar a transição energética necessária para combater a emergência climática e agravar os seus efeitos, colocando em ainda maior risco as zonas com stress hídrico.
Embora o consumo energético da IA seja difícil de calcular, pois depende de vários processos prévios cujos custos são difíceis de individualizar, a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) calculou que uma pesquisa tradicional no Google consome 0,3 watts-hora. Em contrapartida, uma consulta ao ChatGPT, em média, consome 2,9 watts-hora.
Quase 10 vezes mais.
Desenho: Oldemar González
Um relatório IEA calculou que os data centers consumiram cerca de 1,5% de toda a eletricidade do mundo em 2024. Isto equivale a 415 terawatts-hora. Mas nesse mesmo relatório, considerado conservador por alguns especialistas, a IEA projetou que o consumo vai dobrar até 2030.
Alguns países destinam uma maior proporção do seu fornecimento total de energia para alimentar data centers. O caso mais extremo é a Irlanda, onde 21% da sua eletricidade (produzida maioritariamente através da queima de combustíveis fósseis) em 2024 foi destinada a data centers. Este número levou as autoridades locais a restringir novos data centers nos arredores da capital, Dublin, por temer apagões.
As empresas do setor tiveram que responder a estes problemas. A Meta, uma das principais operadoras de data centers do mundo, tem cinco instalações na Irlanda (o Data Center Map regista um total de 133 data centers no país). A Meta anunciou uma parceria com a Brookfield Renewable Energy Partners através de um “acordo de fornecimento a longo prazo de energia eólica 100% renovável para o data center de Clonee e os escritórios da Meta na Irlanda”.
É difícil avaliar com precisão quanta energia consome este setor, já que as empresas alegam segredo industrial. Dados da Cushman & Wakefield, uma empresa imobiliária, mostram que em 2023, os Estados Unidos e a China foram os países que usaram mais eletricidade para data centers.
Três cidades latino-americanas estão entre as 50 que mais destinam eletricidade para data centers no mundo. Querétaro aparece na lista com uma capacidade de 150 MW, São Paulo com 122 MW e Santiago com 61 MW.
No entanto, estes números mudam muito rapidamente e é difícil dar dados precisos e atualizados.
Por exemplo, um relatório da JLL, uma imobiliária próxima do negócio dos data centers, afirma que São Paulo tinha em 2023 uma capacidade de 670 MW em data centers já operacionais, com 382 MW adicionais em construção e outros 388 MW planeados.
A Agência Pública solicitou ao Ministério de Minas e Energia do Brasil uma lista de todos os data centers que pediram acesso à rede básica de energia — a preferida pelos grandes projetos —, e informações sobre seu uso de energia. Mas a resposta incluiu apenas 22 data centers. Treze dos 22 requerentes pediram confidencialidade sobre seu consumo energético, e portanto a informação não foi entregue. Dentre elas está o TikTok, que pediu confidencialidade sobre o uso de energia no seu data center em Caucaia. Os dados obtidos pelo Núcleo através do Data Center Map estimam que o Brasil tenha pelo menos 170 data centers, o que inclui instalações para IA e também centros mais antigos apenas para armazenamento e processamento de dados.
Apesar da falta de transparência da indústria e dos dados públicos, especialistas concordam que os data centers crescem rapidamente e a pressão das empresas mais ricas do mundo para que os governos ampliem a produção de eletricidade é intensa.
Em 2024, a Comissão Federal de Eletricidade (CFE) do México anunciou que aumentaria em 50% a capacidade da rede elétrica de Querétaro, citando a construção de data centers como um dos principais motivos. A Comissão também anunciou uma nova central elétrica, El Sauz II, que usa gás para gerar eletricidade, o que adiciona mais emissões de combustíveis fósseis.
Em resposta à essa investigação, a empresa Ascenty (uma das empresas que têm data centers em Querétaro) diz ser “infundada” a afirmação que “a instalação de novos data centers em Querétaro, incluindo aqueles construídos pela Ascenty motivou a construção de uma nova central elétrica de combustíveis fósseis”.
Em entrevista com a N+ Focus, Arturo Bravo, diretor-geral da Ascenty México, disse que a sua empresa custeia parte das obras necessárias para cobrir a demanda de eletricidade dos seus data centers, que está em constante diálogo com a CFE e o Centro Nacional de Controle de Energia (Cenace) e que os seus pedidos de demanda de eletricidade estão sempre acompanhados de estudos.
Já Digital Realty, que detém 49% das ações da Ascenty, respondeu que “a capacidade total em Querétaro é de 8 MW, menos de 0,01% da capacidade total da rede do México (cerca de 89 GW em 2023)”.
Embora alguns novos data centers prometam usar energias renováveis — como o caso da DataTrust em El Salvador, que garante utilizar energia fotovoltaica, uma alegação impossível de verificar —, a queima de combustíveis fósseis tem aumentado devido à construção e operação destes centros.
Nos Estados Unidos, o rápido desenvolvimento de data centers impulsionou um aumento da demanda elétrica que o governo de Donald Trump planeia suprir com combustíveis fósseis. Por isso, o “Plano de Ação da IA” e uma ordem executiva sobre a “Aceleração da Permissão Federal para Infraestrutura de Data Centers” buscam eliminar obstáculos regulatórios e proteções ambientais.
No seu relatório ambiental do ano passado, o Google admitiu que as emissões de gases de efeito estufa aumentaram 48% desde 2019, principalmente devido ao “aumento no consumo de energia de data centers e às emissões da cadeia de fornecimento”. No mesmo relatório, o Google reconheceu que “à medida que integramos mais a IA nos nossos produtos, reduzir as emissões será um desafio devido ao aumento da demanda energética pela maior intensidade da computação de IA e as emissões associadas aos nossos investimentos previstos em infraestrutura tecnológica”. Afirmou ainda que sua meta de zero emissões líquidas até 2030 é agora “extremamente ambiciosa”.
Os representantes de associações de data centers negam que a indústria busque construir mais fontes de energia fóssil. Gutierrez, da Abes, no Brasil, disse: “não vejo ninguém construir data centers com a intenção de fomentar o uso de termelétricas, energia a carvão, energia a diesel, que é mais cara”. Embora a matriz elétrica brasileira seja mais limpa do que a da maioria dos países, a emergência climática afetou o regime de chuvas e a produção de termelétricas tem aumentado nos últimos anos.
Nas suas respostas, a Digital Realty também diz que a sua empresa “validou os Objetivos Baseados na Ciência (SBTi, na sigla em inglês) para reduzir as emissões de Escopo 1, 2 e 3, de acordo com a ciência climática” e se comprometeu que suas operações europeias sejam climaticamente neutras até 2030.
A quantidade de energia que os data centers consomem também reativou o debate sobre a energia nuclear.
No Brasil, o ministro de Minas e Energia, Alessandro Silveira, argumentou que, para satisfazer a demanda dos novos projetos, a energia nuclear seria a única alternativa viável e que isso implicaria custosos investimentos por parte do governo. No estado americano da Pensilvânia, a central de energia nuclear de Three Mile Island, onde ocorreu o pior acidente nuclear comercial na história do país, será reaberta para alimentar os data centers da Microsoft.
Na Argentina, o presidente Javier Milei propôs um plano para aumentar a produção de energia nuclear para alimentar novos data centers, entre outras coisas. A energia nuclear é considerada “limpa” porque não emite gases de carbono, mas é perigosa em caso de acidentes, os seus custos são muito mais altos do que outras fontes de energia, e não existe solução para o descarte do lixo nuclear.
Disputa pela energia de Itaipu
Os países que têm energia limpa em excesso, como o Paraguai, também estão sendo cortejados pela indústria, segundo revelou o El Surtidor, outro aliado desta investigação. Em maio, o secretário de estado americano Marco Rubio propôs utilizar o excedente energético do Paraguai para alimentar data centers de inteligência artificial. O Paraguai é proprietário, junto com o Brasil, da hidroelétrica de Itaipu e vende o seu excedente ao Brasil e à Argentina a preços abaixo do mercado.
A disputa pela energia paraguaia ocorre num contexto em que os habitantes locais começaram a questionar a expansão de data centers dedicados à mineração de criptomoedas como Bitcoin no país. Estas instalações geram poluição sonora grave que afeta as comunidades vizinhas. “Já sofremos o extrativismo da nossa eletricidade, cedendo-a ao Brasil e à Argentina a preços miseráveis. Agora temos também criptomineração e outros serviços digitais, que não geram emprego. O interesse dos Estados Unidos é apenas outro capítulo desta lógica extrativista que já conhecemos. Não mudará a realidade no Paraguai”, disse Mercedes Canese, ex-vice-ministra de Minas e Energia durante o governo de Fernando Lugo, ao El Surtidor.
O atual ministro paraguaio de Tecnologias da Informação e Comunicação, Gustavo Villate, pelo contrário, considera que o interesse dos Estados Unidos “nos posiciona de uma maneira sem precedentes”. Villate declarou ao El Surtidor que o governo tem trabalhado para fechar acordos com empresas de data centers.
Fique quieto
Os impactos dos data centers na disponibilidade de água e eletricidade, assim como nas alterações climáticas, são difíceis de calcular, porque a maioria dos dados não está disponível.
Especialistas e ativistas apontam que é muito difícil verificar de maneira independente as promessas que a indústria faz sobre limitar o seu impacto ambiental, devido à prática generalizada de ocultar ou distorcer os relatórios internos alegando “segredo industrial”.
O setor sabe dos seus impactos. Documentos internos da Digital Realty Trust obtidos através da ferramenta de acesso público EDGAR, da Comissão de Bolsa e Valores dos Estados Unidos (SEC), revelam que um grupo de acionistas havia solicitado ao Conselho de Administração, antes da sua assembleia anual, que “elaborasse uma política abrangente que articule o respeito e o compromisso da nossa empresa com o direito humano à água” que “deveria alinhar-se com os padrões internacionais de direitos humanos e incluir estratégias para minimizar o uso atual e futuro da água”.
Mas o conselho rejeitou o pedido, argumentando que três em cada quatro data centers no seu portfólio não utilizam água para refrigeração. Em resposta a essa investigação, a Digital Realty afirmou que “a vasta maioria dos nossos acionistas (90%) rejeitou esta proposta na Assembleia Geral de 2025” e que “42% do uso de água da Digital Realty em todo o mundo vem de recursos hídricos reciclados, minimizando assim o impacto sobre os recursos de água doce locais”.
No entanto, o mesmo documento disponível no EDGAR mostra que algumas das suas instalações ainda utilizam recursos locais e que poderiam afetar as comunidades.
“O segredo é uma das principais ferramentas que o lobby dos data centers usa”, disse a esta investigação Max Schultze, diretor do grupo de especialistas europeu Leitmotiv. “Passei anos tentando desagregar os registros financeiros da indústria de data centers”, explicou. “Mas eles não detalham em que países pagam impostos. Nem sequer desagregam as receitas por país… Ainda não vimos um fornecedor de nuvem publicar o consumo real de energia ou água, ou algo similar, de maneira que possamos verificar de forma independente”.
A organização de Schultze foi uma das que pressionou o governo alemão para promulgar uma lei que obriga os data centers a comunicar o seu consumo de água e energia. No entanto, “metade dos data centers na Alemanha simplesmente se recusou”, salientou. “Há uma multa de 100.000 euros por não informar, mas eles não se importam com 100.000 euros”.
A Tech Policy Press, outro parceiro desta investigação, ouviu de vários defensores do meio ambiente e dos direitos do consumidor que pode ser difícil obter detalhes sobre projetos de data centers nos Estados Unidos.
Esta assimetria é exacerbada pelo uso generalizado de acordos de confidencialidade (NDA, na sigla em inglês) com governos locais. “É muito difícil, com os acordos de confidencialidade, saber o que vai haver na instalação antes de ser aprovada”, disse Julie Bolthouse, diretora de uso do solo no Piedmont Environmental Council, à Tech Policy Press.
“Não sabemos quanta água vão utilizar, não sabemos que tipo de emissões vão gerar, nem quanta eletricidade vão precisar ou que tipo de serviço vão requerer”, explicou. “Portanto, basicamente, recolhemos a informação depois do facto”.
Para Jenna Ruddock, diretora de advocacia na Free Press – uma organização sem fins lucrativos estadunidense que tem acompanhado os esforços para aprovar leis sobre transparência – é crucial que as comunidades tenham acesso a mais informação. “Muitas empresas publicam dados de maneira agregada, o que dificulta que as comunidades compreendam qual será o impacto específico. É importante aprovar essas leis para que haja mais informação disponível desde o início do processo, antes de serem concedidas as licenças”.
Esta opacidade também permite que a indústria de data centers faça promessas sobre a criação de emprego e sobre o retorno do investimento sem fornecer provas nem estar sujeita a fiscalização.
“Fizemos um estudo para o governo alemão que mostrou que um data center gera, em média, três empregos por megawatt utilizado. Em comparação, a BASF, uma grande empresa química na Alemanha, utiliza 200 megawatts e cria 50.000 empregos diretos. O que a maioria dos fornecedores da nuvem afirma é que vão criar milhões de empregos ‘indiretos’”, diz Schultze. Nenhuma outra indústria consegue convencer políticos com o mesmo argumento, afirma.
Heleniza Campos, especialista em planejamento urbano e professora de urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no Brasil, tem acompanhado a construção de um data center de hiperescala em Eldorado do Sul — um município onde 90% do território foi inundado durante as enchentes de 2024. Ela aponta que novos data centers estão sendo propostos em cidades carentes de recursos públicos, que “vão aceitar qualquer coisa, por dinheiro mesmo”.
“Mas a que custo, sabe? E quem vai lidar com isso? Qual é o benefício e o retorno para essa sociedade que vive ali? Isso a gente não sabe ainda. (…) A gente precisa entender esse custo e ver como a gente lida com isso de uma forma que não prejudique os lugares onde essa tecnologia vai se instalar”, explicou à Agência Pública. “Alguém tem que regular isso e não flexibilizar a ponto de colocar em risco o conjunto da sociedade”, explicou.
Fique em boa companhia
Muitos países da América Latina têm o que as empresas de data centers precisam: eletricidade barata, regulações flexíveis e governos dispostos a aceitar promessas de retorno ao investimento e geração de empregos.
Esta investigação descobriu que a relação entre as empresas tecnológicas e os governos é complexa e opaca. Em alguns casos, são os governos que buscam com afinco investimentos estrangeiros para data centers. Em outros, são as empresas que se esforçam para convencer governos a construir mais instalações.
O Chile é um exemplo disso. O governo de Gabriel Boric tem sido um dos maiores entusiastas da região e colocou em marcha um Plano Nacional de Data Centers chamado PDATA. Mas esse apetite vem de anos atrás. Apesar de estarem em extremos opostos do espectro político, os ex-presidentes Sebastián Piñera e Michelle Bachelet também tentaram fortalecer laços com as Big Techs e converter o Chile num hub digital.
A proposta do Chile é simples: o país é estável política e economicamente e facilita os investimentos no setor, reduzindo a burocracia e flexibilizando o processo de licenciamento ambiental.
Enquanto se discutia o PDATA, nasceu uma associação de empresas de data centers no Chile, a Associação Chilena de Data Centers, que inclui empresas como Ascenty, EdgeConnex, Equinix, Google, OData, Scala, Nexstream, o meio especializado Data Center Dynamics (DCD) e empresas imobiliárias. A associação tem se manifestado contra um projeto de lei proposto pelo governo para regular a inteligência artificial, argumentando que limita a inovação e contradiz o Plano Nacional de Data Centers.
A Amazon não faz parte desta aliança, mas lobistas da Amazon e da AWS se reuniram pelo menos 350 vezes com funcionários públicos, de acordo com o registo de lobby público do Chile. Segundo os mesmos dados, Aisén Etcheverry, ex-ministra da Ciência e Tecnologia, reuniu-se com executivos da Google, AWS, NVIDIA, Equinix e Meta.
No Brasil, a discussão de um projeto de lei sobre inteligência artificial foi adiada várias vezes devido ao lobby do setor. Uma das razões, segundo fontes disseram à Agência Pública e ICL Notícias, foi que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) se juntou ao esforço para fomentar a criação de um hub de data centers. Este hub “geraria emprego e um ecossistema fértil para a indústria brasileira”, afirmou a advogada da CNI, Christina Aires, numa reunião privada.
Em resposta a esta aliança jornalística, a CNI reforçou que “tem dialogado com parlamentares e setores da economia impactados” sobre o projeto que busca regular a IA, mas negou ter influenciado sobre o artigo que trata sobre os data centers.
A Confederação também defendeu os data centers como “uma parte essencial da infraestrutura digital”, necessária “para o Brasil ser competitivo no mercado mundial de produção de dados em larga escala”. A CNI citou como referência um relatório de 2023 realizado a pedido da Data Center Coalition (DCC), associação empresarial de data centers nos Estados Unidos.
A versão do PL da IA, aprovado pelo Senado em dezembro passado (PL 2338/2023) incentiva a criação de data centers “sustentáveis”. No dia da aprovação, havia 16 lobistas das Big Techs no plenário do Senado, segundo Carla Egydio, diretora de relações institucionais da Associação de Jornalismo Digital (Ajor). Um repórter da Agência Pública ouviu o relator do projeto, Eduardo Gomes, expressar em voz alta o seu desconforto com a pressão das Big Techs: “De 10 pedidos, 9 são atendidos. No outro dia eles enchem os jornais” com críticas ao que foi deixado de fora.
Questionado por esta investigação, a equipe de comunicação do senador Eduardo Gomes disse que “a atividade é feita de um sem número de reuniões, debates e intensas negociações. E são normais as pressões e contrapressões de todos os atores envolvidos”.
O PL da IA, que agora está em discussão na Câmara dos Deputados, está sendo conduzido pela deputada Luísa Canziani, cujo pai fechou um acordo sem transparência com a Google na qualidade de secretário de Estado do Paraná, conforme revelou reportagem da Pública.
Em 27 de junho de 2024, o Conselho Digital, grupo de lobby que representa Amazon, Google e Meta, organizou um brunch em Brasília para discutir o PL, convidando representantes de senadores e partidos de todas as correntes políticas. “Os participantes analisaram conjuntamente o texto regulatório, destacando os avanços feitos e as possíveis alterações a serem concluídas”, explicou.
Mas não são apenas as empresas que buscam os governos; as autoridades também buscam as empresas.
Em abril deste ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, viajou para o Vale do Silício para apresentar uma nova versão da Política Nacional de Data Centers a representantes das grandes empresas de tecnologia. Disse que planeja conceder isenções fiscais para investimentos e exportações do setor de data centers. Mas, ao ser consultado pela sociedade civil para compartilhar o texto, o governo se recusou, segundo reportagem do Núcleo.
No outro oposto do espectro político, o governo de Nayib Bukele, em El Salvador – aliado de Donald Trump – também busca atrair data centers e aprovou uma reforma legal para que possam operar em zonas francas. Além disso, aprovou novas leis que oferecem benefícios fiscais aos data centers como parte de sua estratégia para atrair investimento estrangeiro.
Em 2021, Ronald Jiménez, então CEO da Codisa, uma empresa da Costa Rica que operava o data center DataTrust em El Salvador até este ser comprado pela IFX Networks, disse que sua empresa havia chegado ao país porque “El Salvador é um ímã para a atração de investimentos”.
Nos Estados Unidos, a indústria também recorreu a uma associação para influenciar as autoridades, de acordo com investigação do Tech Policy Press. Fundada em 2019, a Data Center Coalition (DCC) é uma associação empresarial que se autodenomina “a voz da indústria de data centers”. Seus associados incluem Amazon, Google, Microsoft e Meta, bem como operadores de data centers e provedores de serviços de infraestrutura relacionados, entre eles Stack Infrastructure, Digital Realty, Coreweave e Oracle.
Nos últimos meses, o presidente da DCC, Josh Levi, testemunhou perante o Congresso dos EUA em uma audiência sobre a economia da IA e o consumo de energia dos data centers. Ele escreveu um artigo de opinião em um jornal de Ohio proclamando os benefícios econômicos dos data centers para aquele estado e participou de uma reunião do Conselho de Comissários do Condado de Calvert, Maryland, onde falou, entre outros temas, sobre o potencial de receita tributária local proveniente dos data centers. No Mississippi, Levi disse a um jornal local que investir em data centers quase não tem impactos negativos. “Do meu ponto de vista, não há desvantagens”, declarou ao jornal Clarion Ledger, da cidade de Jackson.
Uma nova fronteira de disputa são os “corações e as mentes” da população.
No estado da Virgínia, a DCC formou um grupo chamado Virginia Connects para “educar e envolver os cidadãos sobre os benefícios que os data centers trazem para o estado e suas comunidades locais”. No ano passado, em meio à apresentação de vários projetos de lei que poderiam ter afetado negativamente os data centers no estado, a Virginia Connects enviou “mensagens de texto e folhetos promovendo os benefícios da indústria”, de acordo com o Prince William Times.
O grupo produziu vídeos que foram compartilhados em redes sociais como X, Facebook e YouTube, carregando nas tintas em temas que mobilizam os americanos.
“Os data centers da Virgínia estão aqui para você”, promete um vídeo. “Os data centers da Virgínia são essenciais para nossa segurança nacional e competitividade econômica”, diz outra voz, acompanhada de imagens de caças, do Kremlin, do líder chinês Xi Jinping e do Pentágono.
De acordo com o Centro de Transparência de Anúncios do Google, os vídeos do YouTube foram promovidos por uma agência de relações públicas sediada em Richmond e, embora a conta do Virginia Connects tenha menos de 200 inscritos, alguns dos vídeos alcançaram milhões de visualizações.
A Mão Invisível das Big Techs é uma investigação transnacional e colaborativa liderada pela Agência Pública e o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), em conjunto com Crikey (Austrália), Cuestión Pública (Colômbia), Daily Maverick (África do Sul), El Diario AR (Argentina), El Surti (Paraguai), Factum (El Salvador), ICL (Brasil), Investigative Journalism Foundation – IJF (Canadá), LaBot (Chile), LightHouse Reports (Internacional), N+Focus (México), Núcleo (Brasil), Primicias (Equador), Tech Policy Press (EUA) e Tempo (Indonésia). O projeto tem o apoio da Repórteres Sem Fronteiras e da equipe jurídica El Veinte, e identidade visual da La Fábrica Memética.