Em poucos meses, um pequeno grupo de cientistas dos Estados Unidos produziu um relatório com afirmações incompletas sobre as mudanças climáticas, recheado de evidências escolhidas a dedo para lançar dúvidas sobre consensos científicos já estabelecidos sobre a crise do clima. E pior: o trabalho foi publicado pelo Departamento de Energia do governo dos Estados Unidos como uma “revisão crítica do impacto das emissões de gases do efeito estufa” no clima americano.
O documento afirma, por exemplo, que o aquecimento global pode não ser tão prejudicial à economia, que o nível do mar não está subindo de forma acelerada e que a maior concentração de gás carbônico na atmosfera pode aumentar a produtividade agrícola.
A “revisão” foi encomendada pelo secretário Chris Wright, um ex-empresário do setor de petróleo e gás, com o suposto objetivo de “restaurar a confiança na ciência, nos dados, na racionalidade”, como afirmou o próprio ao canal americano Fox.
“A mudança do clima é real e merece atenção. Mas não é a maior ameaça para a humanidade”, escreveu Wright no relatório.
Governo Trump e a cruzada anti-clima
A publicação se deu no mesmo dia, terça-feira, 29 de julho, em que o governo Trump deu mais um passo em sua cruzada contra o combate às mudanças climáticas. Citando o relatório do Departamento de Energia, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) anunciou que pretende anular a “constatação de perigo”, de 2009, que define as emissões de gases do efeito estufa como uma ameaça à saúde pública e ao bem estar.
Ao longo dos anos, essa declaração se tornou a base científica e legal para a regulamentação de emissões pela EPA. Agora, o governo Trump pretende desfazê-la, no que o chefe da EPA Lee Zeldin chamou de “a maior ação desreguladora da história dos Estados Unidos”.
A medida vem na esteira de cortes de bilhões de dólares para pesquisa climática, demissões em vários órgãos federais e a remoção de menções às “mudanças climáticas” em sites governamentais. Não bastasse, o governo americano também encerrou os trabalhos de centenas de cientistas, que estavam produzindo um relatório sobre o estado atual do clima no país, e barrou a presença de pesquisadores americanos em uma reunião internacional no começo deste ano.
Cientistas dos EUA, porém, já estão contestando o relatório do Departamento de Energia por usar argumentos enganosos e distorcer estudos científicos. Alguns pesquisadores citados no documento vieram a público demonstrar que seus trabalhos foram interpretados de forma incorreta pelos autores do relatório.
Os cinco autores que elaboraram o documento são conhecidos na comunidade científica americana por minimizarem a crise climática e por seus trabalhos contrários ao consenso científico. Eles sustentam, por exemplo, que o impacto humano na mudança do clima seria “incerto” ou que o regime climático da Terra não é sensível ao aumento de gás carbônico. Três deles foram recentemente contratados pelo Departamento de Energia, como noticiou o New York Times.
As pretensões do documento elaborado por eles são bastante explícitas, como demonstra um trecho da introdução: “O Secretário Wright reuniu um grupo independente para escrever um relatório sobre questões da ciência do clima relevantes para a formulação de políticas energéticas, incluindo evidências e perspectivas que desafiam o consenso geral”.
O tal “consenso”, porém, é construído a partir do trabalho de centenas de cientistas ao redor do mundo, submetidos ao rigor do método científico, que exige, entre outras coisas, a possibilidade de replicar experimentos e a revisão por outros pesquisadores.
“Cientistas” em defesa do CO²
“O relatório que eles produziram deveria ser encarado como um resumo jurídico de advogados defendendo seu cliente: o dióxido de carbono”, escreveu o climatologista Andrew Dessler, professor de ciências atmosféricas na Universidade Texas A&M.
“O objetivo deles não é pesar as evidências de forma justa, mas sim construir o argumento mais forte possível para a inocência do CO²”, completou.
Produzido em menos de quatro meses por apenas cinco pessoas, o documento de 151 páginas é assinado por cinco autores que afirmam não se tratar de uma revisão completa de “todos os tópicos” da ciência climática. Diferentemente de pesquisas científicas publicadas em revistas acadêmicas, o relatório não foi revisado por pares, isto é, por outros pesquisadores. O Departamento de Energia afirma que ele está aberto para comentários.
Ainda que as pretensões do relatório sejam mais modestas, o número de autores e a velocidade de produção contrastam com os de revisões mais completas. O Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), por exemplo, reuniu mais de 700 cientistas de 90 países que trabalharam por quase quatro anos para revisar toda a ciência de ponta produzida sobre a crise climática.
O trabalho do IPCC apresenta o consenso científico sobre os riscos e impactos da crise climática, além da eficácia das principais estratégias de redução de emissões de gases do efeito estufa e de adaptação às consequências do aumento da temperatura global.
O último relatório do painel não deixa dúvidas de que o aquecimento global tem sido causado por atividades humanas – principalmente a queima de combustíveis fósseis como petróleo, carvão e gás – e que cada aumento na temperatura significa mais riscos e perigos, como maior frequência e intensidade de ondas de calor, além de secas e chuvas extremas.
Falácias climáticas
O relatório do Departamento de Energia sugere que a atividade solar pode estar sendo “subestimada” como um dos fatores que contribuem para o aumento da temperatura global – o IPCC afirma que é a influência humana que vem esquentando o planeta numa velocidade sem precedentes, com fatores naturais desempenhando quase nenhum papel.
Os cinco autores também usaram dados de medidores de maré para afirmar que, nos EUA, não há evidência de uma aceleração óbvia no aumento do nível do mar. Eles não mencionam, porém, que medições globais feitas por satélite já identificaram uma aceleração global na subida do nível do mar.
“Cada capítulo segue o mesmo padrão: estabelece uma posição contrária, seleciona a dedo evidências que apoiam essa posição e, daí, alega que essa posição é pouco representada na literatura climática e no IPCC em particular. Inclui um monte de referências, a maioria das quais não apoia o argumento central”, afirmou o cientista do clima Ben Sanderson, pesquisador sênior do Centro para Pesquisa Climática Internacional (Cicero), da Noruega, sobre o relatório americano.
O economista Richard Tol, das universidades de Sussex e Amsterdã, publicou um post em seu blog para mostrar como o relatório distorceu informações de estudos feitos por ele. “Eu fui citado três vezes, incorretamente em todas as três”, escreveu ele.
No relatório, os estudos de Tol são usados para alegar que as mudanças climáticas poderiam beneficiar países subdesenvolvidos – enquanto, na realidade, as evidências reunidas nos estudos de Tol sugerem o oposto.
Em entrevistas à imprensa americana, Zeke Hausfather, da universidade de Berkeley, também afirmou que o relatório citou seu trabalho de forma errada. O documento inclui um gráfico de um artigo de Hausfather para dizer que modelos climáticos têm “superestimado” a concentração de CO² na atmosfera. O trabalho de Hausfather, no entanto, concluiu que os modelos climáticos até então tinham sido notadamente precisos em suas previsões de aquecimento do Planeta.
Plantas também são afetadas por ondas de calor
O documento procura destacar, ainda, os efeitos positivos do aumento da concentração de gás carbônico (um dos gases do efeito estufa) para as plantas. De fato, as plantas absorvem o gás carbônico da atmosfera para realizar a fotossíntese, que produz energia e oxigênio. Em tese, com a maior concentração do gás na atmosfera, essa absorção aumentaria, um efeito conhecido como “fertilização por carbono”, que faz com que as plantas façam mais fotossíntese e fiquem mais verdes.
Nesse ponto, os autores citaram um artigo da bióloga Joy Ward para demonstrar os efeitos positivos do aumento da concentração do gás para o crescimento das plantas.
Mas ao site Wired, Ward afirmou que os experimentos dela foram conduzidos em condições “altamente controladas”, mas que as mudanças climáticas podem causar impactos nas plantas que o estudo dela não pretendeu avaliar. “Com o aumento de CO² nos ecossistemas naturais, as plantas podem experienciar maiores cargas de calor, eventos extremos e redução de polinizadores – que podem ter severos efeitos acumulados negativos para o crescimento das plantas e cultivo agrícola”, explicou ela.
Além disso, o relatório não menciona evidências mais recentes de que algumas florestas ao redor do mundo podem estar perdendo a capacidade de absorver o CO² – como vinham fazendo há séculos. Ainda há muitas dúvidas na comunidade científica sobre a escala desse enfraquecimento, suas causas e se ele seria reversível, mas as pesquisas sobre o tema preocupam.
Relatório tem poucos acertos
Uma crítica justa feita pelo documento é a de que cenários extremos de aumentos de emissões não deveriam ser usados para prever impactos climáticos. De fato, a ciência climática já tem feito essa “correção de curso”, como afirmou a Science, considerando estimativas mais atualizadas da trajetória das emissões.
O documento também critica a atribuição para eventos extremos (quando os cientistas tentam estimar se uma determinada onda de calor, por exemplo, foi causada pelas mudanças climáticas), que outros pesquisadores também já apontaram a necessidade de ser mais rigorosa.
Ainda assim, cientistas americanos viram no relatório a reciclagem de alegações já desmentidas pela pesquisa científica revisada por pares e, principalmente, a seleção parcial de evidências para comprovar argumentos falhos.
“Cientistas são obrigados a encarar toda a gama de evidências, especialmente aquela que pode contradizer suas hipóteses”, escreveu Dessler, da Universidade Texas A&M. “Nesse relatório, os autores estão firmemente no ‘modo advogado’. Eles passam pelos dados para achar alguns exemplos que apoiam a narrativa deles, enquanto sistematicamente ignoram o corpo muito maior de evidências que a contradiz”.