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A democracia brasileira está dando uma lição ao mundo, como reconheceram publicações internacionais nesta semana. De “o adulto na sala” da The Economist a modelo que deveria ser seguido pelos Estados Unidos em relação aos golpistas de 2022, o Brasil brilhou nas manchetes e atraiu mais de 500 profissionais de imprensa para o primeiro julgamento de um ex-presidente e de generais acusados de tentativa de golpe de Estado no Brasil. Isso em um cenário mundial de ascensão da extrema direita, com líderes como Donald Trump, que age descaradamente para interferir no Judiciário e na política interna brasileira.
Com os olhos postos na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) e lente de aumento sobre o relator, o ministro Alexandre de Moraes, assistimos a um julgamento com total respeito ao direito dos réus, o que se refletiu em uma defesa bem informada, e com base em uma peça de acusação consistente da Procuradoria Geral da República. Aliás, ninguém tentou negar a tentativa de golpe, reconhecida e lamentada por todos. O que os advogados fizeram foi questionar provas e evidências do envolvimento de seus clientes na trama.
Os juízes estavam atentos, não apenas aos argumentos da defesa, mas a informações distorcidas que continuam a ameaçar a nossa democracia. Foi o que fez a ministra Cármen Lúcia ao retificar o termo “voto auditável”, capciosamente usado pelo advogado de Alexandre Ramagem no lugar de “voto impresso”: “Vossa Senhoria sabe a distinção entre processo eleitoral auditável e voto impresso, porque repetiu como se fosse sinônimo e não é, porque o processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil, passamos por uma auditoria e para que não fique para quem assiste a ideia de que não é auditável. Uma coisa é a eleição com processo auditável, outra coisa é o voto impresso”, pontuou a ministra.
Um alerta importante, principalmente para os jornalistas estrangeiros, que não acompanharam ao vivo, como nós, a trajetória da tentativa de golpe desde as primeiras mentiras sobre as urnas eletrônicas, ainda hoje repetidas pelos bolsonaristas.
Mas a coragem e a firmeza das instituições brasileiras se perderam entre o anexo do STF e o Congresso Nacional. Enquanto o julgamento ocupava o centro das atenções, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e os deputados do centrão, liderados pelo eterno presidente da Câmara, Arthur Lira (Hugo Motta? Quem é Hugo Motta?), articularam uma vergonhosa anistia para livrar Jair Bolsonaro da prisão antes mesmo da decisão da Suprema Corte sobre o processo. A ideia seria garantir a liberdade do ex-presidente, depois de condenado pelo STF, sem, no entanto, retirar sua condição de inelegibilidade, determinada por um processo no TSE. Assim, Tarcísio estaria livre para concorrer às eleições, carregando o espólio eleitoral de Jair Bolsonaro.
Com a adesão do centrão, sem a qual o projeto de anistia seguiria inviável, os bolsonaristas botaram pra quebrar – não se assustem, desta vez não foi literalmente. A começar por articular um texto para o PL da Anistia que libera, sim, Jair Bolsonaro para concorrer às eleições de 2026, perdoando seus crimes desde o inquérito das Fake News, de 2019.
Claro que isso é inconstitucional, como disseram advogados e os próprios ministros do STF, já que a anistia não pode ser aplicada a crimes contra o Estado Democrático de Direito. Mas, se conseguirem convencer o centrão a confrontar o STF, os bolsonaristas terão cumprido à risca seu desserviço ao país e à democracia e seu serviço a Jair Bolsonaro e Donald Trump, requentando a narrativa de que o STF manda no país.
Uma mentira que tem chance de prosperar. Embora a pesquisa Quaest de agosto tenha mostrado que a maioria (52%) dos brasileiros acredita que Jair Bolsonaro participou da tentativa de golpe e considere justa (55%) a sua prisão domiciliar, os números mostram que a pancadaria contra Alexandre de Moraes surtiu algum efeito: 46% se disseram favoráveis a um impeachment do ministro do STF, um pouco acima dos que se dizem contra (43%).
Não satisfeitos em se colocar acima das leis (como pretende estabelecer literalmente a PEC da Blindagem) e dos outros poderes – rompendo o sistema de freios e contra-freios da democracia –, os parlamentares estão tão inflados que não aceitam nem o poder do Banco Central de rejeitar suas negociatas. Logo eles, defensores do Banco Central independente. Antes mesmo de barrar a compra do banco privado Master, ligado ao senador Ciro Nogueira, por um banco estatal, o Banco de Brasília, o Banco Central se tornou alvo de um PL que dá ao Congresso o direito de demitir presidentes e diretores da instituição.
Isso, na mesma terça-feira em que, paralelamente ao julgamento no STF, a Comissão de Segurança da Câmara ouvia o depoimento de um ex-funcionário do TSE, Eduardo Tagliaferro, convocado por políticos do PL para pintar Moraes como “ditador” após um relatório contra ele feito pela Civilization Works. A organização é comandada pelo jornalista americano Michael Schellenberg, que desde a briga de Elon Musk com o STF, no ano passado, tem disseminado material contra o ministro.
O depoimento faz parte da estratégia liderada por Flávio Bolsonaro de criar fatos contrários ao julgamento e foi articulado pelo blogueiro bolsonarista Allan Santos, como revelou a Pública. Uma conspiração que segue uma trajetória tão clara quanto a do golpe – não é à toa que o projeto de anistia do PL também contempla Eduardo Bolsonaro, articulador das sanções contra Moraes e do tarifaço contra o Brasil por parte de Donald Trump.
Não tenho a menor dúvida de que apesar das pressões, Bolsonaro e os outros réus do núcleo central da trama golpista serão julgados com imparcialidade e respeito a todas prerrogativas legais até a próxima sexta-feira. E isso é, sim, motivo de orgulho para a democracia brasileira. O problema é que a República de Bananas que Trump quer está sendo fundada logo ali, na Praça dos Três Poderes, sem a possibilidade de impeachment nem de julgamento de seus líderes. Mudar a composição desse Congresso é a nossa principal tarefa em 2026.