Outubro de 2025. Na vastidão da Terra Indígena Munduruku, no sudoeste do Pará, duas operações de fiscalização de pós-desintrusão, coordenadas pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em colaboração com outros órgãos e agências do governo, tiveram mais uma etapa finalizada. As ações ocorreram nove meses depois do governo federal concluir a “fase aguda” da desintrusão no território Munduruku, anunciando uma redução substancial nos alertas de novas áreas de mineração ilegal. A presença do Estado agora, longe dos holofotes, levanta a questão que assombra a política indigenista: o que vem depois que a poeira baixa e a fiscalização se retira?
A primeira das ações de fiscalização contou com a participação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará para fiscalizar a Floresta Nacional do Jamanxim e a Área de Proteção Ambiental do Tapajós (APA Tapajós). A segunda, mais complexa, apurou denúncias de trabalho escravo no rastro do garimpo, unindo a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Força Nacional de Segurança Pública e o mesmo ICMBio nos municípios de Itaituba e Jacareacanga. O hiato entre as duas e a operação principal no território Munduruku, encerrada em janeiro, revelam as complexidades do pós-desintrusão.
Sem estabelecer mecanismos permanentes de atuação do Estado, um dos riscos possíveis é o de aumento das invasões e da insegurança para os povos indígenas. “A manutenção do diálogo é um desafio”, admitiu, sob reserva, uma das fontes do governo federal consultadas pela Agência Pública.
No caso dos Munduruku, o contato só foi restabelecido em julho, com uma visita técnica na aldeia Nova Trairão, durante o I Encontro de Jovens Munduruku do Alto Tapajós que culminou, em setembro, na participação de uma comitiva do governo na 5ª Assembleia do Movimento Munduruku Ipereğ Ayũ, na Aldeia Carroçal. Ali, enquanto as lideranças discutiam a proteção de seus defensores e o futuro do território, a máquina estatal redesenhava sua estratégia. Apesar das 523 ações de fiscalização e repressão durante a fase aguda, o desafio agora seria o de garantir que os invasores não retornem.
Uma guerra assimétrica e um “país” para vigiar
O servidor Ronilson Vasconcelos, analista ambiental e coordenador territorial do ICMBio no oeste do Pará, falou à reportagem enquanto a balsa que estava a caminho de uma operação deslizava sobre as águas do Tapajós. A voz, por vezes entrecortada pelo sinal instável de uma antena de internet via satélite da Starlink apreendida com um garimpeiro, narra os desafios recentes.
Contra a sanha do garimpo ilegal e do furto de madeira, ele comanda de uma base em Itaituba uma equipe de dezesseis servidores que têm a missão de proteger 14 milhões de hectares de floresta – uma área superior ao tamanho de países como Grécia e Portugal. Há quase três anos na linha de frente na região, Vasconcelos está atualmente focado na chamada “Operação Escudo”, em atividade desde novembro de 2023 para conter a migração dos desintrusados para as unidades de conservação contíguas à terra indígena. A ação ocorre concomitantemente à Operação Ativo 1 de desintrusão da TI Munduruku e, na opinião do coordenador, que reconhece o esforço empreendido pelo Estado, há ainda dificuldades na fiscalização diante da vastidão do território.
A logística na região é o “maior desafio”. Os garimpeiros levam um mês e meio para rasgar a mata e instalar uma escavadeira de um milhão de reais. Para os fiscais, a remoção de um equipamento apreendido é um convite ao confronto, tanto que a equipe de Vasconcelos já foi atacada a tiros, a coqueteis molotov e teve viaturas destruídas em emboscadas por vezes lideradas por pessoas cooptadas pelos donos do garimpo.
O analista ambiental descreve o combate como uma espécie de guerra assimétrica e explica que o crime ambiental não anda só: está “consorciado” com o tráfico de drogas, a usurpação de terras e a exploração sexual. Em acampamentos, encontram-se pistolas e carregadores de fuzil, lugares onde o ICMBio é visto como inimigo.
Novos tempos, a mesma resistência
Para lidar com a instabilidade permanente, o governo aposta numa metodologia de dois tempos. Primeiro, um Plano de Manutenção da Desintrusão, de curto prazo e coordenado pelo MPI para segurar o território com fiscalização e presença ostensiva. Depois, um Plano de Proteção Territorial, uma política contínua e construída pelo MPI em diálogo com as comunidades, com ações de curto, médio e longo prazo, indicadores e matriz de responsabilidades.
Mas no território, a urgência é sempre outra. Durante o I Encontro de Jovens do Alto Tapajós, que reuniu 240 lideranças em julho na Aldeia Nova Trairão, um cacique Munduruku resumiu a nova fase da luta: se os mais velhos usavam arcos e flechas, a juventude deve empunhar a palavra como arma. O encontro foi marcado por debates intensos, quase todos conduzidos em língua Munduruku, sobre a continuidade da resistência frente às ameaças contemporâneas.
As lideranças enfatizaram que a defesa do território permanece como prioridade constante, especialmente diante da recorrente ameaça de invasores e dos ataques legislativos aos direitos indígenas, como o Marco Temporal. Representantes de aldeias do Médio Tapajós e das margens do Teles Pires manifestaram preocupação com projetos de pesca esportiva e com o assédio de pessoas externas tentando negociar acesso às terras. As lideranças reafirmaram que decisões sobre o território não são individuais, mas coletivas, tomadas em assembleia.
A Associação Wakoborun, uma das principais organizações Munduruku, chegou a transferir sua sede para uma aldeia, para proteger suas lideranças de ataques físicos que teriam sido financiados por empresários do garimpo. Um assessor jurídico da associação relatou, durante a assembleia, que caciques e professores têm sido alvo de ameaças sistemáticas. Há tensão no território mesmo após a desintrusão oficial. O dilema Munduruku é um microcosmo do desafio nacional. Em 27 de setembro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou, por unanimidade, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709.
Ajuizada em 2020 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a ação foi o motor que forçou o Estado a agir contra invasores em terras indígenas durante a pandemia de covid-19. A ADPF 709 criou uma sala de situação para avaliar as operações e determinou desintrusões em terras pressionadas por invasões e crimes ambientais. Ao encerrá-la, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, que deixou o posto no STF recentemente, avaliou: “O resultado das medidas adotadas pela União para efetivar a desintrusão é significativo”.
O desafio da desintrusão “permanente”
Desde 2023, o governo do presidente Lula deflagrou operações em nove territórios, protegendo, segundo dados oficiais, 58 mil indígenas em 18,7 milhões de hectares, com prejuízo estimado de R$ 740,6 milhões ao crime organizado — mais de 20 órgãos federais participaram das operações em estados como Rondônia, Pará, Maranhão, Roraima e Amazonas.
Na Terra Indígena Yanomami, epicentro da crise humanitária que marcou os primeiros meses do governo, como mostrou a Pública, os alertas de garimpo caíram 98% com 7.314 operações realizadas, 668 acampamentos inutilizados, 33 aeronaves e 212 embarcações destruídas e mais de 129 mil litros de combustíveis inutilizados.
Além da fiscalização, o governo aumentou em 169% o número de profissionais de saúde na região e distribuiu mais de 140 mil cestas de alimentos, 184 equipamentos para casas de farinha e 5 mil kits de ferramentas agrícolas.
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, falou com franqueza sobre o tema durante uma entrevista à Pública. Quando questionada sobre como garantir que invasores expulsos de terras indígenas não retornem, especialmente em 2026, ano eleitoral, ela afirma ser difícil “prever isso”: “esses invasores brotam em tudo e em qualquer lugar”.
Para Guajajara, não se trata de um problema pontual, mas de uma infestação sistêmica, alimentada por décadas de omissão e pela fragilidade orçamentária que transforma a proteção territorial em uma batalha intermitente, dependente de decisões judiciais e da boa vontade de magistrados. A estratégia do MPI, ela diz, é transformar o que hoje é episódico em permanente, elevando a desintrusão de liminar judicial a política de Estado, com garantia de recursos no orçamento da União para um “processo de desintrusão permanente”.
A ministra, porém, entende que, com o orçamento “insuficiente”, a implementação dos planos de gestão territorial nas terras indígenas depende de uma costura complexa de fontes com envolvimento da cooperação internacional, fundos orçamentários e emendas parlamentares no Congresso. É uma arquitetura financeira difícil e que reflete a posição por vezes marginal da agenda indígena no jogo político brasileiro. Ainda assim, há avanços, avalia a ministra: “Alguns recursos já foram captados neste ano, alguns planos já estão sendo implementados”, garantiu.
Apesar dos esforços, a realidade no chão da floresta segue complexa de se administrar. A organização Rede Xingu+ afirmou em reportagem para o G1 Pará que, mesmo após uma das operações, invasões avançam em áreas antes intocadas na TI Trincheira Bacajá (PA), desintrusada em 2024. Agora, invasores abriram a “Estrada do Mogno”, uma via ilegal para a retirada de madeira e estabelecimento de pastagens. Há relatos de ocupantes armados que ameaçam os indígenas. Desmatamentos e novos ramais ilegais foram registrados mesmo após a operação de retirada, realizada por órgãos federais.
A própria Apib, autora da ação no STF, já havia alertado à Corte em maio sobre falhas nos planos de “pós-desintrusão”, apontando a falta de presença contínua de órgãos fiscalizadores e de ações efetivas de recuperação ambiental nos territórios. Para os indígenas Mêbengôkre-Xikrin, da Trincheira Bacajá, a solução seria a retomada imediata das ações de fiscalização, a destruição dos ramais ilegais e a criação de bases de proteção permanentes dentro da TI, especialmente nas áreas que ficaram de fora da operação inicial. Sem a ação judicial da ADPF 709 em vigor, o receio é que os casos de reocupação e crimes ambientais se ampliem, colocando em risco a integridade da terra indígena e a segurança dos indígenas.
No caso da TI Munduruku, por exemplo, um Plano de Proteção Territorial, com consultas previstas, foi prometido para o início de novembro, e a instalação de uma Mesa de Diálogo Permanente é o próximo capítulo, segundo informações obtidas pela reportagem. A mesa, pactuada durante a 5ª Assembleia, será destinada à elaboração de protocolos, estratégias e medidas de proteção dos defensores de direitos humanos Munduruku, considerando especificidades locais. A medida responde às Medidas Provisórias estabelecidas em favor dos Munduruku e também dos povos Yanomami e Ye’kwana, por meio da Resolução de 1º de julho de 2022 no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Enquanto o governo celebra o fim da ADPF 709, as operações sigilosas seguem em andamento até o fim do ano, pelo menos. “Os conflitos estão longe de terminar. Apenas mudamos de fase”, explicou uma fonte familiarizada com o tema a caminho de outra fase de desintrusão no território Uru-Eu-Wau-Wau em Rondônia. A questão que permanece é se o Estado brasileiro será capaz de manter a presença necessária para que a desintrusão seja uma virada definitiva na proteção indígena.
