Ilha do Combu: do palco de Mariah Carey às mudanças climáticas

A Ilha do Combu é a quarta maior ilha do município de Belém, com 15,9 quilômetros quadrados de extensão, localizada a apenas 1,5 quilômetro do centro da capital paraense. Cercada pelo rio Guamá, pelo furo São Benedito, pelo furo da Paciência e pela Baía do Guajará, o Combu forma um mosaico de rios, igarapés e floresta de várzea que sustenta uma população estimada em cerca de 1,5 mil habitantes, segundo a Prefeitura de Belém (furos são espécies de “canais” de água, formados naturalmente próximos a rios e lagos).

A região é reconhecida como uma comunidade ribeirinha tradicional e os moradores da ilha têm sua economia baseada na pesca artesanal e no extrativismo, sobretudo do açaí, que além de alimento é fonte de renda e identidade cultural para as famílias que vivem às margens do Guamá.

Ilhas do Combu e do Murutucum (Belém, Pará)

Recentemente, a ilha ganhou os holofotes com o mega show da cantora pop norte-americana Mariah Carey, produzido pelo Rock in Rio no meio do rio Guamá, em Belém. O evento foi apresentado como uma ação para chamar atenção para a Amazônia e promover o debate sobre sustentabilidade.

O palco flutuante, erguido em meio à floresta, foi criado para ser um símbolo de reverência à Amazônia. O investimento milionário, onde só o palco custou R$30 milhões, tinha o propósito declarado de “dar visibilidade à região” e levantar debates sobre a preservação ambiental.

Mas, nas margens de onde o som ecoou, os moradores da Ilha do Combu se questionam sobre a forma como a ilha está sendo vista. “Será que a gente precisa mesmo de mais holofote? Ou de alguém que olhe de verdade pra cá?”, questiona Iracema Santos, moradora nascida e criada na ilha e empreendedora local de ecoturismo.

Nos últimos anos, o Combu deixou de ser apenas uma das ilhas que abastecem Belém com frutas e peixes para se tornar ponto turístico obrigatório de quem visita a capital paraense. Cortada por furos e igarapés, a ilha hoje abriga grandes empreendimentos de bares e restaurantes erguidos às margens dos rios, muitos deles de proprietários que não vivem na ilha.

Na beira dos furos da ilha, bares e restaurantes se acumulam. Na água, lanchas e jet ski passam a toda velocidade.

Esses empreendimentos exploram o potencial paisagístico e econômico do território, mas nem sempre demonstram compromisso com o meio ambiente ou com a comunidade local, que há gerações vivem da floresta e do rio.

Enquanto o espetáculo musical exaltava a floresta como cenário, o que não apareceu nas câmeras foram as casas ameaçadas pela erosão, as árvores tombando no barranco e os igarapés contaminados pelo lixo e pelo cloro das piscinas dos restaurantes. A visibilidade que chega de fora tem sido, para muitos ribeirinhos, sinônimo de pressão, especulação, medo e perda.

E a COP30 com isso?
  • O show de Mariah Carey e de artistas brasileiros como Dona Onete, Gaby Amarantos e Zaynara foi apresentado como um evento de conscientização ambiental na cidade que receberá a COP30.
  • Contudo, além de não atuar para resolver os problemas ambientais da área protegida, o evento teve patrocínio da mineradora Vale, responsável por grandes desastres ambientais no país, como os rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho.
  • A prática aponta para ações de greenwashing, isto é, criar campanhas que tentam melhorar a imagem junto ao público dos impactos ambientais reais das empresas.

Um território entre dois mundos

Lanchas e pequenas embarcações saem a todo momento dos diversos portos que levam até a ilha.

Localizada a poucos minutos do centro de Belém, a Ilha do Combu é parte de um arquipélago que abastece a capital com frutas, peixes e hortaliças.

O território é reconhecido como Área de Proteção Ambiental (APA) desde 1997 e está sob responsabilidade do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio), com o objetivo de conciliar conservação e uso sustentável dos recursos naturais.

Na prática, porém, a proteção tem apresentado falhas, segundo os próprios moradores. Nos últimos quinze anos, o avanço do turismo e do capital urbano transformou o Combu em vitrine: restaurantes de luxo com acesso exclusivo por lancha, pier privativo, decks panorâmicos e cardápios gourmet à base de açaí.

A poucos metros dali, famílias ribeirinhas convivem com a falta de saneamento, o desabamento das margens e o sumiço dos peixes.

“A ilha tá muito movimentada, toda hora é lancha, é jet ski. A gente perde o terreno com a erosão e já não pode mais pescar no nosso igarapé. Outra coisa ruim é que toda hora tem gente estranha passando aqui. Antigamente vivíamos tranquilos, ninguém fechava portas. Hoje precisamos estar sempre cuidadosos”, lamenta Ivanete dos Santos, 67 anos, uma das fundadoras da Associação de Mulheres Extrativistas (AME) da ilha.

Na maré alta, o barulho é constante. Cada embarcação que passa forma ondas, o chamado banzeiro, que batem contra a terra e arrancam pedaços da margem.

“Cada banzeiro desses vai comendo o barranco. Se tivesse fiscalização, não tava assim. Tem placa, tem lei, mas não tem fiscalização. A lancha da polícia só aparece quando tem um evento grande”, denuncia. A APA tem regras claras sobre velocidade e tráfego de embarcações, mas segundo a moradora ninguém cumpre.

A idosa compara a ausência do Estado à mobilização vista durante o show de Mariah Carey. “Para aquele show vieram centenas de policiais, helicóptero, tudo. Mas se a gente ligar pra pedir socorro, dizem que não tem transporte. É assim que tratam a gente”, completa.

A fiscalização ambiental na ilha é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma Belém), com apoio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), enquanto o controle do tráfego de embarcações cabe à Marinha do Brasil. A reportagem procurou a Semma,Sema e a Marinha para falar sobre a fiscalização na área, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.

Um ecossistema fora do equilíbrio

O Combu é uma ilha de várzea — área alagável que fica parcialmente submersa durante as cheias dos rios —, onde os ciclos da floresta e da maré sempre determinaram o ritmo da vida e do trabalho. Mas esses ciclos estão se desorganizando. “O cacau e a andiroba não têm mais a época certa. Às vezes a flor nasce e cai antes de virar fruto, porque o calor tá demais ou a chuva vem fora de hora”, explica Santos.

Há décadas, ela e outras mulheres produzem o tradicional óleo de andiroba, símbolo do saber ribeirinho e da medicina popular. Mas a produção caiu drasticamente. “A semente não presta mais. Fica pequena, seca. E sem produção, a gente perde renda, perde o costume. As frutas também estão sumindo, e os animais estão sofrendo.”

Charles Teles conduz grupo de turistas em uma trilha ecológica.

Quem também sente os efeitos das mudanças climáticas é Iracema dos Santos, 41 anos. Junto do marido, Charles Teles, 47, ela mantém o Igara Artesanal, um espaço cultural onde recebe turistas para vivências ribeirinhas — como a do açaí e do camarão — e trilhas ecológicas pela mata. Mas há três anos a atividade ligada ao camarão foi suspensa.

“O camarão sumiu. Era dele que a gente vivia entre uma safra e outra do açaí. Agora não tem mais, e ninguém sabe direito o motivo. Pode ser o calor, as lanchas, o cloro das piscinas que caem no rio… Tudo isso junto”, lamenta Iracema.

A família é exemplo de quem tem buscado novos caminhos para viver em harmonia com a floresta. Charles trabalhou boa parte da vida como madeireiro, derrubando árvores para a construção de casas. Há alguns anos, aposentou a motosserra e passou a investir em turismo de base comunitária. “Era muito triste ver uma árvore imensa, que levou centenas de anos pra crescer, cair em poucos minutos. Hoje, cem por cento da nossa renda vem da floresta em pé”, conta.

As mudanças climáticas, que alteram o regime de chuvas e aumentam a temperatura da água, somam-se à poluição e ao turismo desordenado, afetando a pesca e a agricultura. O calor excessivo, segundo os moradores, tem sido tão intenso que cozinha os caroços de açaí ainda no cacho, fazendo com que caiam antes da hora.

De posse à exploração a sustentabilidade de vitrine

A especulação imobiliária tem levado muitas famílias a venderem suas propriedades e passarem a trabalhar para os donos dos restaurantes.

As famílias que vivem no Combu não possuem título de propriedade. Elas têm concessões de uso da terra, concedidas pela União. Na prática, isso deveria impedir a compra e venda irregular dos terrenos.

“O povo tá vendendo sem saber pra quem. Quem compra é gente da cidade, que constrói restaurantes e ainda contrata o antigo dono pra trabalhar pra ele”, relata Ivaneide. Segundo ela, essa nova dinâmica social criou uma divisão de classes dentro da ilha: os “donos de restaurante”, que lucram com o turismo, e os moradores, que perdem território e autonomia.

“Tem gente que diz que o ribeirinho é parceiro, mas ele é só fachada. Bota o morador na frente pra parecer comunitário, mas quem ganha de verdade é o empresário”, explica Iracema.

Para o professor José Guilherme Fernandes, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a expansão do turismo e do consumo nas ilhas de Belém repete um padrão histórico. “O que está acontecendo no Combu é uma extensão do modelo urbano de ocupação. É o mesmo concreto e vidro que tomou Belém, agora empurrando os limites da cidade para dentro do rio.”

Ele aponta que o fenômeno tem raízes antigas: “Belém cresceu sobre áreas alagadas, aterrando igarapés e várzeas. Agora, como não há mais para onde expandir, o olhar da especulação se volta para as ilhas”.

Existem dois Combus, afirma Fernandes. Ele afirma que para entender o Combu hoje é preciso reconhecer que ele abriga dois territórios sobrepostos.

“Geograficamente, você tem dois Combus. O Combu da borda, o dos restaurantes, o das fotos nas redes sociais. É aquele onde as pessoas chegam de lancha, almoçam, fazem uma selfie com os prédios de Belém ao fundo e dizem que estão no meio da floresta”, afirma.

Vista de Belém a partir da ilha do Combu.

Esse é o Combu visível, glamourizado, turístico e superficial. Os restaurantes se concentram na orla do rio Boa Morte, próximos ao centro urbano, onde o visitante encontra conforto, sinal de internet e a sensação de natureza domesticada.

“A maioria não quer entrar pra dentro da ilha, sentir o calor, o carapanã (pernilongo), o barro. Quer o cenário, mas não a vivência”, observa Fernandes.

Escondido entre os furos e igarapés, existe outro Combu onde ainda se pratica o extrativismo, o cultivo do açaí, a coleta da andiroba e do cacau. Ali, a floresta ainda dita o ritmo da vida, e o rio é estrada, alimento e limite.

O problema, segundo o pesquisador, é que o discurso dominante de turismo ecológico, bioeconomia e sustentabilidade não corresponde à realidade. Vende-se a ideia de um território sustentável, mas o que existe é exploração econômica e especulação. É o mesmo modelo urbano de consumo, só que embalado por uma estética verde.

Fernandes defende que a ilha seja transformada em reserva extrativista, o que garantiria maior controle sobre a ocupação e fortaleceria a participação das comunidades.

“Uma reserva permitiria que os próprios moradores definissem regras de uso e gestão, com políticas de incentivo aos jovens e proteção real do território. Hoje, o que há é uma vitrine bonita, mas muito pouca sustentabilidade de fato”, diz o pesquisador.

O discurso da “visibilidade da Amazônia” tem sido apropriado por empresas e governos como símbolo de sustentabilidade. Mas, na prática, serve mais para reforçar a imagem de uma floresta intocada do que para fortalecer quem a mantém viva.

“Se há floresta em pé, é porque alguém cuidou dela. O morador do Combu sabe usar o que tem sem destruir. Mas ele não é reconhecido nem protegido por isso”, afirma Fernandes.

Para o pesquisador, transformar o Combu em reserva extrativista, com gestão comunitária e regras de uso definidas pelos próprios moradores seria um passo importante para frear a especulação e valorizar quem produz de forma sustentável.

Apesar de tudo, o Combu ainda pulsa. As mulheres da AME seguem reunidas em mutirões para extrair o óleo e a manteiga de andiroba, que viram pomadas e sabonetes naturais. Empreendedores ribeirinhos tentam resgatar o turismo de base comunitária, oferecendo vivências de açaí e passeios educativos.

Mas, como diz Iracema, “é difícil competir com o barulho das lanchas e o dinheiro dos de fora. O que a gente quer é continuar vivendo aqui, do que a gente planta e colhe. Não queremos impedir o turismo, só queremos que ele respeite a gente, que respeite o rio. Porque se continuar assim, vai chegar um dia em que o rio não vai mais estar aqui pra ninguém ver”, afirma Iracema.

A ilha, que deveria ser área de proteção ambiental e produção sustentável, hoje é retrato das contradições amazônicas: um território explorado em nome da preservação, uma população invisível sob o discurso da visibilidade. “A floresta não precisa de palco. Precisa de cuidado”, resume Ivanete, olhando o rio que passa em frente da sua casa.

O Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará (Ideflor-Bio) informou que atua em parceria com órgãos municipais, estaduais, federais e com as comunidades locais na gestão da Área de Proteção Ambiental (APA) da Ilha do Combu, em Belém.

Segundo o órgão, foi concluído neste ano o novo Plano de Gestão da APA do Combu, que define diretrizes para enfrentar problemas como erosão das margens e turismo desordenado. O documento que começará a valer em 2026 exige que empreendimentos apresentem planos de controle e recuperação ambiental e estabelece três programas prioritários: uso público, educação ambiental e manejo florestal não madeireiro, com foco no protagonismo comunitário e no turismo de base sustentável.

O Ideflor-Bio informou ainda que iniciará uma campanha de comunicação para divulgar os novos regramentos e alinhar a implementação do plano aos compromissos ambientais do Pará na COP30.

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