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Pouco menos de dois meses depois de ser aprovado no Senado, o projeto que cria uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental, apelidado de “PL da Devastação” e “Mãe de Todas as Boiadas” por ambientalistas, deve ir à votação final na semana que vem no plenário da Câmara, antes de o legislativo entrar em recesso. Depois disso, irá para sanção ou veto do presidente Lula.
Enquanto críticos do texto tentavam ainda evitar a votação a fim de ganhar tempo para propor uma solução mais adequada – houve falas muito interessantes neste sentido em audiência pública na Comissão de Meio Ambiente nesta quinta (10) –, o relator do projeto na Câmara, deputado Zé Victor (PL-MG) já tinha divulgado seu relatório acatando as emendas que vieram do Senado.
Difícil imaginar, nessa altura da guerra entre Congresso e Planalto, que haja espaço para que seja construída essa saída – apesar de não faltarem alertas sobre os riscos ao ambiente e à saúde que o projeto traz, uma vez que abre brechas para mais desmatamento e para menos controle de poluição, de contaminações e até mesmo de desastres.
Mas queria me ater nesta coluna a um dos argumentos que sempre volta à tona por quem defende o projeto atual: o de que haveria mais de 5 mil obras paradas no Brasil por problemas do modelo atual de licenciamento ambiental. A senadora Tereza Cristina (PP-MS), que relatou o texto no Senado, citou esse dado ao defender a aprovação do PL, e ele é repetido quase como um mantra por parlamentares ruralistas.
Poxa, é um numerão, né? Impressiona. Fiquei interessada em saber mais sobre quais são essas obras, onde elas estão e o que, no processo, teria feito com que elas fossem travadas. Afinal, se é isso mesmo, é preciso entender o que está acontecendo e cobrar os responsáveis.
Mas o que eu descobri é que esse não é um dado facilmente disponível. Consultei diversas pessoas que imaginei que deveriam ter isso prontamente ao alcance – justamente por ser um argumento tão forte e tão usado –, mas ninguém tinha os dados para me passar.
Comecei, claro, com a própria equipe da senadora Tereza Cristina. Na sessão do plenário do Senado que aprovou o PL, ela disse que “em 2022, o Ministério de Infraestrutura listou 5.053 obras paradas em razão de problemas com o licenciamento”. Ou seja, durante a gestão de Jair Bolsonaro, quando a pasta era comandada pelo atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
Pedi para a assessoria da senadora que compartilhasse o tal documento. A resposta foi que “a informação foi retirada de uma apresentação da FPA”, a Frente Parlamentar da Agropecuária. O documento de nove páginas é uma espécie de cartilha que a bancada ruralista distribuiu para todos os seus parlamentares – dava para ver, na sessão, os senadores com o documento sobre as mesas; e as informações contidas nele sendo repetida por todos em seus discursos.
Mas lá, entre outras informações, só tem exatamente o que Tereza Cristina falou na sessão sobre as tais obras paradas, nada a mais.
O passo seguinte, claro, foi pedir que a FPA compartilhasse o documento original que serviu de base para a cartilha, ao mesmo tempo em que fui atrás também dos Ministérios do Transportes e de Portos e Aeroportos. A pasta de Infraestrutura deixou de existir no início do governo Lula e foi desmembrada nas outras duas. Alguma delas deveria ter herdado o registro desse material, né?
A assessora de imprensa da FPA me disse que tinha acessado esse relatório direto do site do Ministério de Infraestrutura por ocasião da votação inicial do PL na Câmara, em 2022. Mas afirmou que também tinha voltado a buscá-lo recentemente e não tinha encontrado mais. Eu bem perguntei… mas, não, ninguém tinha salvo o documento no próprio computador, apesar de o número ser repetido à exaustão pela FPA.
Também não tive sorte nos dois ministérios. O de Portos falou que era para checar com o de Transportes e este afirmou que não localizou o relatório.
Também tentei, claro, encontrar pessoas do governo passado que pudessem ter esse documento e eu tinha uma fonte perfeita para isso entre os meus contatos: a analista ambiental Rose Hofmann, que era muito próxima de Tarcísio e foi secretária de Apoio ao Licenciamento do Programa de Parcerias de Investimentos da gestão Bolsonaro.
Na primeira matéria que escrevi aqui para a Pública, ainda em 2021, eu contei como atribuía-se a ela uma boa parte do conteúdo do texto sobre o licenciamento ambiental que estava em debate na época, cerca de um ano antes da votação que aprovou o PL na Câmara. Mas ela tampouco conhecia o documento.
“Acredito que seja das auditorias do TCU [Tribunal de Contas da União] na época, mas não lembro de ter essa distinção entre obras paralisadas por licenciamento ou por outros motivos. Geralmente é um conjunto de fatores que leva à paralisação”, me disse Rose recentemente.
Ela ainda complementou: “E o levantamento do TCU é voltado a obras que começaram e foram interrompidas, enquanto o licenciamento geralmente impede o início das obras. À exceção das obras lineares que geralmente começam com trechos bloqueados, aí o licenciamento pode travar a continuidade em função desses bloqueios”.
Certo. Vamos atrás do TCU, então. Na verdade, eu já estava procurando o tribunal porque ao mesmo tempo em que esse dado das supostas 5 mil obras paradas era divulgado pelos defensores do PL, vi ambientalistas compartilhando um dado completamente diferente, quase oposto – de que apenas 1% das obras federais paralisadas no Brasil seriam por “motivo ambiental”.
Bem, esse dado eu, de fato, achei. Foi esse diagnóstico divulgado em 2019 pelo TCU sobre mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais. Segundo a análise, mais de 30% delas foram consideradas como paralisadas ou inacabadas, a maioria por problemas considerados técnicos.
“As principais causas apontadas foram: contratação com base em projeto básico deficiente; insuficiência de recursos financeiros de contrapartida; e dificuldade de gestão dos recursos recebidos”, informou o tribunal.
Só que aquela foi a única vez que o TCU distinguiu as causas das paralisações. Eles continuam publicando levantamentos anuais sobre o total de obras paradas no Brasil, mas não entram mais nesse detalhamento dos motivos.
O mais recente, divulgado no ano passado, apontou que havia quase 12 mil obras paradas no país, sendo que 72,6% delas eram das áreas de saúde e educação. Só que mesmo sem os porquês, já dá para extrair uma pista dos dados apresentados pelo TCU: escola, creche, quadra esportiva e posto de saúde não exigem licenciamento ambiental. Logo, não é esse o motivo para eles não terem sido entregues.
Segundo o documento, 1.243 obras paradas no ano passado eram de infraestrutura e mobilidade urbana. Essas, sim, precisam de licenciamento, mas ainda que todas tivessem sido interrompidas por este motivo – o que, certamente, não é o caso, porque são bem conhecidos os muitos problemas que existem com licitação ou falta de recursos, por exemplo –, seria bem menos do que o número mágico divulgado pelo agro.
De todo modo, insisti um pouco mais e fui perguntar ao TCU porque eles não faziam mais o diagnóstico das causas e se haveria alguma maneira de acessar essa informação. Eles chegaram a compartilhar comigo a base de dados usada e lá tem um campo para o motivo. Opa, agora vai, pensei.
E de cara tomei um susto ao ver que apenas seis obras traziam como motivo da paralisação o licenciamento ambiental. Mas a equipe do TCU rapidamente me explicou que tampouco dava para considerar esse dado como real. “As informações são enviadas pelos órgãos responsáveis pelas obras e, na maior parte das vezes, não há informações sobre as causas da paralisação”, disseram.
Na audiência pública desta quinta-feira, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, chegou a mencionar a cobrança que costuma receber sobre obras paradas. “Outro problema que normalmente as pessoas esquecem de dizer é que o Brasil tem uma baixa qualidade de projetos e uma baixa qualidade de estudos. A maior parte dos estudos que chegam aos órgãos ambientais são devolvidos para complementações”, disse.
Segundo ele, o discurso que sempre se faz de obras paralisadas por licenciamento não seria verdade. “É muito importante que a gente trabalhe de forma estruturante o país para melhorar a qualidade de projetos e de estudos. Uma grande parte das obras paralisadas do país estão paralisadas por projetos mal feitos, por projetos equivocados. Não é por falta de licença – porque a obra nem é para começar sem licença. Não é por licenciamento. É por projetos mal feitos.”
Ninguém nega, nem entre os ambientalistas mais ferrenhos, que o licenciamento ambiental no Brasil pode ser melhorado, para racionalizar o processo, se obter prazos menores de análise, maior padronização. Mas seria bem bom se fosse uma discussão qualificada, com dados claros.
Minha busca acabou não chegando a nenhuma conclusão definitiva. Talvez o tal documento exista e eu que não encontrei – se alguém tiver aí à mão, agradeço se puder me enviar –, mas o ponto é que é uma questão realmente pouco clara. Certamente o país precisa muito mais para se desenvolver do que uma lei que torna o licenciamento mais uma exceção do que uma regra.