IA pode prever doenças com 20 anos de antecedência? Entenda desafios

A inteligência artificial (IA) é um campo da ciência que tem revolucionado a saúde. É cada vez mais frequente o uso dela como ferramenta na avaliação de exames, na triagem de pacientes e, em alguns casos, no diagnóstico de doenças com até maior precisão que o olho médico. Mas um salto nesta corrida foi anunciado recentemente.

Pesquisadores apresentaram na revista Nature, em setembro deste ano, o Delphi-2M, modelo de inteligência artificial treinado com dados de mais de 2,4 milhões moradores do Reino Unido e da Dinamarca que, segundo eles, é capaz de prever a progressão de mais de mil doenças ao longo de até 20 anos com desempenho superior a métodos tradicionais.

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O modelo funciona com um método semelhante ao ChatGPT, avalia as bases de dados de referência para dar respostas. Ele foi considerado apto quando deu respostas sobre os quadros hipotéticos usados com mais de 50% de acerto, o que conquistou com 97% das doenças testadas.

“Assim como grandes modelos de linguagem podem aprender a estrutura de frases, este modelo de IA aprende a “gramática” de dados de saúde para modelar históricos médicos como sequências de eventos que se desenrolam ao longo do tempo”, explica o cientista computacional Moritz Gerstung, um dos líderes do estudo.

Como as previsões meteorológicas, este modelo oferece apenas probabilidades de a pessoa desenvolver certas doenças ao longo de um período específico. As previsões de curto prazo se mostraram mais confiáveis ​​do que aquelas que tentam prever um futuro mais distante.

Ao calcular se alguém sofrerá um ataque cardíaco nos próximos 10 anos, o modelo acerta 70%. Quando o período de tempo é estendido para duas décadas, a taxa de precisão cai para 14%.

Embora os pesquisadores do Instituto Europeu de Bioinformática admitam que a precisão ainda possa ser aprimorada, o Delphi-2M levanta a possibilidade de que um dia seremos capazes de prever quais doenças teremos no futuro.

“Este é o início de uma nova maneira de entender a saúde humana e a progressão das doenças. Modelos generativos como o nosso poderão um dia ajudar a personalizar o atendimento e antecipar as necessidades de saúde em larga escala. Ao aprender com grandes populações, esses modelos oferecem uma lente poderosa sobre como as doenças se desenvolvem e podem, eventualmente, subsidiar intervenções mais precoces e personalizadas”, completa Gerstung.

Apesar da empolgação dos pesquisadores, médicas ouvidos pelo Metrópoles destacam que há muitas limitações no modelo, que sequer foi testado em pacientes reais. O próprio estudo alerta que o sistema reflete vieses dos bancos de dados usados, não estabelece relações de causa e efeito. Ademais, a pesquisa aponta precisão limitada em algumas doenças, como a diabetes.

IA nos olhos da medicina

Além da limitação com a diabetes apontada pelo estudo, a oftalmologista Isabela Porto, do CBV Hospital de Olhos, em Brasília, avalia que embora as inteligências artificiais estejam mostrando um grande potencial na medicina, elas ainda precisam ser usadas com cautela.

“Para evitar erros, é necessário treinamento em bases de dados diversas, validação rigorosa e supervisão constante dos médicos, que devem manter o papel central nas decisões clínicas. O uso isolado de algoritmos traz riscos, já que falsos positivos podem gerar exames desnecessários e ansiedade do paciente, enquanto falsos negativos atrasam diagnósticos importantes”, alerta Isabela.

A oftalmologista aponta ainda para dilemas éticos e legais sobre quem responde por falhas dos equipamentos: os criadores do sistema ou quem usa o algoritmo lá na ponta. Embora a IA já esteja presente em ambientes hospitalares, a aplicação em predição de longo prazo depende de mais estudos, integração aos sistemas de saúde e regulamentação, afirma a oftalmologista.

“Para reduzir o impacto psicológico das previsões, é importante que os resultados sejam comunicados como probabilidades acompanhadas de orientações práticas, transformando a tecnologia em aliada na prevenção e no cuidado em saúde”, destaca a médica.

Medicina preventiva não é tão simples

A médica Suamy Goulart, do Grupo Mantevida Brasília, reitera que o sistema de IA apresentado na Nature traz grandes expectativas para a medicina preventiva, mas ainda enfrenta limitações.

“As previsões só são confiáveis quando baseadas em dados amplos e atualizados, e os modelos precisam ser validados em diferentes hospitais, muitas vezes em modo sombra, antes de chegar ao cuidado direto”, afirma Goulart.

Para ela, ferramentas desse tipo devem, no início, ser aplicadas em saúde populacional e gestão de sistemas apenas, sem pensar no diagnóstico individual de pacientes, já que prever mais de mil doenças em 20 anos ainda exige validação internacional, aprovação regulatória e protocolos claros.

“Ressalto ainda o impacto emocional sobre pacientes e defendo a comunicação cuidadosa, respeito ao direito de não saber e foco em informações práticas, de modo a equilibrar inovação com responsabilidade”, conclui a médica a médica.

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