O Brasil está fora do Mapa da Fome, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU). Isso significa que menos de 2,5% da população está em situação de subnutrição, mas não que a fome acabou.
Segundo o relatório “O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)”, da ONU, entre 2022-2024, 28,5 milhões de pessoas estavam em condição de insegurança alimentar no Brasil. Sendo 21,4 milhões em situação moderada e 7,1 mi em nível grave.
O Brasil havia voltado para o Mapa da Fome em 2021. Além da pandemia de Covid-19 e do governo Bolsonaro, que esvaziou políticas públicas como o Plano de Aquisição de Alimentos (PAA), o geógrafo e professor da Universidade Federal do ABC, José Raimundo Ribeiro, estudioso da fome e da pobreza com teses de mestrado e doutorado na área, diz que o país saiu do mapa da desnutrição crônica, mas que ainda existe fome. A fome e a insegurança alimentar, ele explica, estão ligadas a políticas de emprego e renda, uma vez que a reforma trabalhista, a reforma previdenciária e o congelamento de salários, anos antes, no governo Temer, já haviam piorado a crise alimentar no Brasil.
Em entrevista à Agência Pública, Ribeiro, que também integra o Laboratório Justiça Territorial (Labuta), falou sobre a importância da saída do país do Mapa da Fome e os desafios que o Brasil ainda enfrenta para combater a insegurança alimentar.
De acordo com a ONU, a insegurança alimentar é medida com base na Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES), que classifica a severidade em dois níveis:
- Moderada: Quando as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e são obrigadas, em determinados períodos do ano, a reduzir a quantidade ou qualidade dos alimentos consumidos devido à falta de dinheiro ou outros recursos;
- Grave: Quando as pessoas provavelmente ficaram sem alimentos, passaram fome e, no caso mais extremo, passaram dias sem comer, colocando em grave risco sua saúde e bem-estar.
O que significa a saída do país do Mapa da Fome? O brasilieiro está comendo três refeições ao dia?
Para entender o que significa sair do Mapa da Fome, tem que olhar para três conceitos. O primeiro é o próprio conceito de fome, que tem uma grande disputa em torno dele.
Tem gente que acha que fome é quando a pessoa está esquelética, com os ossos à mostra. Quem deu essa definição de fome, em 2019, foi o próprio Bolsonaro. Ele falou assim: “não tenho fome no Brasil, não vejo ninguém magro”. Na medicina, essa medição de fome, que é muito restrita, bem pouco utilizada, é uma medição de fome pelo IMC, pelo Índice de Massa Corporal.
Então, a pessoa tem que estar muito magra pra ser considerada com fome. Esse é o estágio mais avançado. Se a gente pega um autor como Josué de Castro, que, lá nos anos 40 já falou assim: ó, tem um fenômeno que é a fome total, que é a inanição. A gente pode usar a ideia de fome total pra pensar o que Israel está fazendo com Gaza hoje. É, literalmente, matar de fome.
Mas o Josué falou assim, mas tem uma outra fome, que é a fome parcial ou oculta. É a fome daqueles que, mesmo comendo todo dia, morrem lentamente de fome. Eu gosto de falar usando essa expressão: vive uma vida inteira com fome.
Então, com o Josué, a gente abre o conceito de fome e pensa que a fome tem várias formas. É um fenômeno polimórfico. Tem mais de uma forma. Tem a fome total, mas tem a fome parcial ou oculta. E a gente pode pensar também que ela tem mais de uma forma com relação à duração dela.
Por que isso importa?
- A saída do Brasil do Mapa da Fome, anunciada pela ONU, significa que menos 2,5% da população está subnutrida, mas ainda há desafios;
- A insegurança alimentar ainda é uma realidade para 25,8 milhões de pessoas no país, aponta pesquisador.
Então é preciso entender a fome de uma forma mais ampla para entender se a população brasileira está bem ou mal alimentada? Existe um parâmetro único que é avaliado para entendermos melhor o que diz o Mapa da Fome?
Eu trabalho com o conceito de fome mais amplo, que fala sobre essa privação de alimentos. Mas sendo bem real, usando o nosso elemento aqui no Brasil, são três refeições por dia para se estar bem alimentado. Com três refeições que a pessoa levanta da refeição e se sente satisfeito. Porque também tem gente que vai diminuindo o tamanho da refeição pra poder fazer três por dia.
Tem um conceito que é o de desnutrição crônica. Desnutrição crônica é aquilo que está te aproximando daquela fome total. Desnutrição crônica para ONU, para FAO, é quem fica um ano inteiro consumindo menos de aproximadamente 1.800 calorias. É esse dado de desnutrição crônica que produz o Mapa da Fome. Então, o que aconteceu de fato, do meu ponto de vista, o Brasil saiu do mapa da desnutrição crônica.
Saiu do mapa que indica em quais países mais de 2,5% da população está em desnutrição crônica. Esse é um indicador criado nos anos 70 para captar a crise de fome em país com guerra, em país que está passando por catástrofes, em país que está completamente desorganizado.
Então, ele é um dado importante, porque ele fala de uma fome muito intensa. Uma vergonha que o Brasil tivesse feito parte até 2014. E de fato, é horrível que o Brasil tenha voltado para este Mapa da Fome.
Saímos do Mapa da Fome, mas ainda temos uma grande parte da população em insegurança alimentar. Pode explicar um pouco esse conceito?
Quando é pra falar sobre as experiências de fome das pessoas, eu acho insegurança alimentar um eufemismo que quer passar um certo ar técnico pro debate. Que aí você fala que insegurança alimentar não tem o mesmo impacto, o mesmo horror, que a palavra fome cria. Então, as primeiras escalas de insegurança alimentar, na verdade, o nome delas eram escalas de fome.
Elas foram desenvolvidas lá nos Estados Unidos por pesquisadores que perceberam que a fome estava aumentando, que esse indicador de desnutrição crônica não dava conta de ver a fome, e elas criaram escalas de fome. O que é uma escala de fome? É um questionário em que o pesquisador pergunta se certas experiências de fome estão presentes no domicílio.
É um método ótimo. É um método barato, é um método que indica com clareza, é um método que eu defendo. O problema é que na hora que ela foi virar uma escala oficial nos Estados Unidos, trocaram o nome. Ah, não vamos chamar de escala de fome, porque a gente vai produzir um dado que tem fome aqui, vamos falar que isso chama de insegurança alimentar.
A escala americana, para você ter uma ideia do tamanho do eufemismo, quando ela foi criada, era a insegurança alimentar grave com fome. Era o rótulo. Hoje, o rótulo para este mesmo estágio é insegurança alimentar muito baixa. Insegurança muito baixa ao invés de fome é horrível. Então, o que a gente tem nos dados do relatório da ONU é que a desnutrição crônica baixou para menos de 2,5%.
Vitória! É importante estar fora, é conquista deste governo, tem relação com política pública, está tudo certo.O que o governo sabe, tem dados, porque o próprio IBGE também produz esses dados, é que a quantidade de pessoas naquilo que é chamado de insegurança alimentar moderada e grave, eu vou chamar aqui de fome, é bem maior. Então, no dado da ONU tem lá 13,5% da população em insegurança alimentar moderada e grave.
A minha defesa é: saímos do mapa de desnutrição crônica, não acabou a fome. Para você ter uma ideia, esses 13,5%, de acordo com esse mesmo relatório, dá quase 28,5 milhões de brasileiros nessa situação.
O país demorou para sair do Mapa da Fome. Conseguimos isso em 2014, mas voltamos rapidamente. Como não ocupar mais esse posto?
Acho que essa conversa sobre sair e entrar no Mapa da Fome ela tem um mérito, que é de mostrar que, de fato, a situação alimentar da população é bastante dinâmica. Não dá pra descansar e falar, “ah, superamos, não volta mais”.
Eu acho que a alternância de projetos políticos foi responsável pela volta do Brasil ao Mapa da Fome. De 2003, quando começa o Fome Zero [programa criado pelo governo Lula para erradicar a fome no país]até 2014, a gente tem uma queda, tanto do risco de fome, como da fome. E é este momento que gerou este processo, que gerou a saída do Mapa da Fome.
Então, tem um mérito de um governo que, num cenário de crescimento econômico, garantiu melhoria de vida para milhões. E aqui, eu acho que não é nem só a questão do Bolsa Família, que é sempre muito dito neste momento, mas me parece que algo que foi essencial para isso foi valorização de salário mínimo, valorização real de salário mínimo.
Melhoria da inserção das pessoas no mercado de trabalho, trabalho mais estável, trabalho com direito, isso tudo diminui a fome. Quando chegou em 2014, que saiu do Mapa da Fome, do meu ponto de vista, era a hora de falar assim: legal, conseguimos acabar com a desnutrição crônica, mas a gente tem aqui ainda, naquela época, 25% em algum grau de insegurança alimentar, um quarto da população ainda estava sem ter certeza se vai ter o que comer, 8,7% cortando quantitativamente.
Seria a hora de intensificar o que a gente faz para além das políticas públicas, já que as políticas públicas batem esse teto. A gente sabe que, de 2013 em diante, o cenário político mudou. E aí, a gente tem uma pesquisa do IBGE, muito importante, em 2018, que fala sobre o aumento da fome antes da pandemia.
Então, já no governo Temer, 2018, o avanço de 10 anos, em termos de fome e risco de fome, tinha quase tudo ido por água abaixo. A gente tem que, a partir disso, dizer que a reforma trabalhista produz fome, reforma previdenciária produz fome, congelamento de salário produz fome, congelamento de valor do Bolsa Família produz fome, ataque à política pública produz fome.
Com o Bolsonaro, isso se intensifica. E aí, a gente tem o maior azar do mundo, que foi a tempestade perfeita, que é o Bolsonaro e a pandemia juntos. Também não vamos tirar a pandemia deste cenário, porque a fome aumentou no mundo inteiro na pandemia. É uma tendência mundial. Mas o projeto do Bolsonaro, como eu te disse, em 2019, o primeiro ano dele como presidente, logo no início do mandato, ele já diz, não tem fome no Brasil. A gestão de Bolsonaro na pandemia foi desastrosa. Aí foi aquele show de horrores, fila dos ossos. Ele desmontou o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos].
Então, mesmo no atual governo, as verbas ainda são muito distantes, mas Bolsonaro cortou, ele deixou no osso. Este governo vem e recompõe uma parte das verbas das políticas agrícolas, das políticas públicas. Faz diferença? Sim, tanto que tira de novo do Mapa da Fome. Porque tem esse compromisso em fazer, do meu ponto de vista, um ataque à fome. Mas essa perspectiva da segurança alimentar, por vezes, rebaixa as metas.
Como a perspectiva de segurança alimentar rebaixa as metas?
Ela se contenta com metas que, do meu ponto de vista, são pequenas. A gente tem que pensar que tem que zerar todas as formas de insegurança alimentar. Porque não dá pra ninguém começar o mês não sabendo se vai ter o que comer. Então, eu acho que a alternância dos projetos políticos fala sobre o tamanho da fome.
Eu prefiro pensar que diferentes projetos políticos lidam de maneiras diferentes com a fome. O projeto conservador produz fome e nega sua existência.O projeto liberal social reconhece a existência, tende a subdimensionar e gerir. O que eu acho que nos falta é um projeto emancipador. Que é o projeto da soberania e da emancipação da população com relação a essa chantagem.
Porque as iniciativas de combate à fome no país são tão vulneráveis à atuação dos governos?
Às vezes, a gente fala muito de governo e para de falar sobre Estado. A gente tem um Estado brasileiro que muda com diferentes gestões, mas é um Estado capturado pelas elites. Então, o agronegócio captura o Estado e aí pode entrar um projeto progressista, mas é muito difícil reverter essa captura. Porque a captura do Estado não é só na presidência, a gente tem que pensar a captura do Estado no Judiciário, no Legislativo, não é só no Executivo.
E não é só o agronegócio, porque às vezes a gente está falando de fome e aí a gente já liga diretamente com a produção de alimentos, mas a Faria Lima capturou o Estado, o capital financeiro capturou o Estado. E quando há essa captura do Estado por parte de uma elite que historicamente, e vou citar aqui indiretamente o Florestan Fernandes, uma elite que historicamente é dócil com os poderes internacionais, que aceita ser parceira menor na relação internacional, mas é violentíssima internamente com aqueles que eles entendem que são seus subordinados, é muito difícil que um governo consiga reverter isso.
Então a gente precisa, nesse sentido, de transformações mais estruturais. Porque senão, de fato, uma mudança de governo gera uma mudança de políticas públicas que você reverte rapidamente. Uma forma de enfrentar essa captura seria a reforma agrária. Reverter os ganhos de uma reforma agrária seria mais difícil. Você colocou as pessoas na terra, as pessoas estão plantando, as pessoas estão com assessoria técnica.
É um processo mais difícil do que congelar o valor do Bolsa Família O Armínio Fraga [economista e ex-presidente do Banco Central] falou outro dia que tem que congelar o salário mínimo durante seis anos. Isso é um absurdo. O salário mínimo é o salário de fome.
Por que você acha que o salário mínimo é o salário de fome?
Eu vou usar só o dado do IBGE para pegar os dados que o próprio governo está produzindo. A gente tem, entre pessoas com renda de um a dois salários mínimos per capita, 5,5% dessas pessoas com fome e 13,6% em risco de fome. Entre meio a um salário mínimo per capita, 23% em risco de fome e 10% em fome.
A chance de estar com fome ou risco de fome é uma em cada três. Esse salário é o salário de fome. Você pega o dado do Dieese e ele fala: olha, o salário mínimo, de acordo com a lei, deveria ser seis mil e tanto, sete mil e tanto. Então, quando um cara fala que tem que congelar o salário mínimo para o Brasil voltar para o eixo, ele tá dizendo que tem que fazer a pessoa passar fome.
Apesar de ser um dos maiores produtores mundiais de alimentos, ao mesmo tempo, o país vive o histórico paradoxo de ter dificuldades para alimentar toda a população. Como equilibrar isso?
Isso é um projeto de séculos no Brasil. O agronegócio é o nome que eles deram pra gente parar de falar de latifúndio e monocultura. Eles criaram esse rótulo porque aí fica um nome bonito e tal.
O agronegócio, no fundo, é a continuidade do latifúndio e da monocultura, cujo sentido é o enriquecimento dos grandes proprietários de terra. O sucesso dele vem produzindo a fome há séculos. Porque essa riqueza que é produzida, não se distribui por quem trabalha nessa cadeia produtiva e de distribuição. E aí, quando essa riqueza não se distribui, evidentemente que aqueles que ficam mais precarizados passam fome.
A gente pode olhar para o avanço da fronteira agrícola, que, em geral caminha com aquele esquema de desmatamento, para depois virar uma monocultura, como isso vai produzindo a fome também. Hoje em dia, de acordo com o IBGE, a região com a maior proporção de fome é a região norte. Na minha hipótese, essa fronteira agrícola, que tá indo lá pro norte, vai produzindo fome.
Ao mesmo tempo, a gente vive num país que 80% da população vive nas cidades. Então, a economia urbana também produz fome. Não é só a economia rural. A indústria que paga mal, o serviço que paga mal, os salários muito baixos, isso produz fome também; custo com aluguel, que é a renda da terra – todo proprietário de terra quer o seu pagamento no fim do mês – e a renda da terra em São Paulo é uma coisa assombrosa.
Como é que pode a pessoa com um salário mínimo e mesmo assim estar com fome? Para quem vive em São Paulo não é difícil entender quando o salário mínimo é um salário de fome e significa que o Estado está legitimando essa situação. Ele lava a mão porque está pagando salário mínimo e tá dentro da lei. Então, dá pra passar fome dentro da lei. Esse é o ponto.
Quais são os desafios para que o país se mantenha fora do Mapa da Fome e para zerar a insegurança alimentar?
Difícil! Acho que a primeira coisa que ameaça o país a voltar ao Mapa da Fome é o retorno de um projeto ultraliberal e autoritário. O retorno desse projeto, que foi encampado pela família Bolsonaro, mas que pode ser encampado por outros agentes políticos, é um grande risco de voltar para o Mapa da Fome.
Eu acho que a permanência de uma frente ampla, um projeto progressista, tende a manter o Brasil fora do mapa da fome. Vai manter o Brasil, vai fazer uma gestão das políticas públicas com a tentativa de, aos poucos, ir diminuindo a fome no país.
A ideia de uma soberania alimentar, que seria o único caminho mesmo para a gente superar a fome, ela, hoje em dia, é sustentada sobretudo por movimentos sociais. Não me parece que nem os partidos políticos mais à esquerda trazem essa perspectiva de maneira forte para o seu debate, para a sua atuação. Então, a superação da fome demanda uma mobilização popular muito grande.
E tem algum exemplo no mundo de projetos deste tipo?
Eles não estão com o Estado na mão. O MST [Movimento Sem Terra] tem experiências assim. Por exemplo, o MST Copave, lá no Paraná. Você conversa com o pessoal desse assentamento, esse pessoal vive a soberania alimentar, planta de outro jeito, sabe? Isso é uma coisa bonita. Você tem uma vila, cada um tem a sua horta, mas também trabalham juntos, tem um refeitório. Eles vivem dentro deste assentamento a soberania alimentar. Do assentamento para fora a gente não tem.
Se a gente for olhar a fome como ela é produzida, o primeiro passo é arrancar do povo a terra. A terra e qualquer meio de produção, meio de subsistência.