Pau-brasil: o tesouro nacional cobiçado pela indústria da música clássica

No início de julho de 2025, o eco da voz de Daniel Neves na sala quase vazia da Sala São Paulo, casa da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), era um prenúncio da dissonância que se instalara nos bastidores da indústria da música clássica mundial. A “reunião de emergência”, convocada às pressas por Neves, não tratava de uma nova sinfonia, mas de um impasse que ameaçava o futuro da música clássica e do pau-brasil, árvore hoje ameaçada de extinção e que deu nome a um país, sustentando, por séculos, grande parte da economia colonial europeia.

Neves, que preside a Associação Nacional da Indústria da Música (ANAFIMA), a maior entidade da indústria musical do país, recorreu a uma analogia perturbadora durante o encontro na Sala São Paulo: “Seria justo condenar todos os brasileiros por algo que apenas alguns fizeram? […] É como se acontecesse um estupro lá fora e todos os homens aqui fossem condenados só porque têm a ferramenta para isso. Não é justo, né, gente”?

A comparação inadequada se refere a uma disputa mundial que a partir desta quarta-feira, 26, será travada em Samarcanda, no Uzbequistão, durante a CoP20 da CITES, a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção, um tratado respaldado pela ONU do qual o Brasil é signatário desde 1975. O encontro, que ocorre de três em três anos, discutirá as regras para o comércio global de espécies silvestres, com o objetivo de reforçar a proteção de animais e plantas ameaçadas — caso do pau-brasil — e definir parâmetros de exploração sustentável.

Por que isso importa?

  • Nos últimos meses, a Agência Pública investigou esse lucrativo e nebuloso mercado — analisou milhares de páginas de documentos, ouviu especialistas e conversou presencialmente com personagens-chave dessa disputa sobre o pau-brasil em diferentes continentes. Nesta primeira reportagem, revelamos os interesses de lobistas e de grupos da indústria de fabricantes de arcos que embarcaram discretamente para o Uzbequistão, na tentativa de influenciar a proposta brasileira de tornar o controle sobre o comércio do pau-brasil ainda mais rígido — e os poderosos interesses por trás deles.

Na CoP20 da CITES, o governo brasileiro vai propor uma ação ousada: elevar ao nível máximo a proteção do pau-brasil. O que pouca gente sabe sobre essa árvore-símbolo, é que sua matéria-prima é essencial para a fabricação de um dos objetos mais preciosos do setor musical: o arco utilizado para tocar violinos, violas, violoncelos e contrabaixos pelo mundo. O que para o governo é uma questão de soberania ambiental e preservação de um patrimônio histórico, para a indústria mundial de arcos, um mercado lucrativo e pouco transparente, é uma ameaça direta aos seus negócios.

Se aprovada a mudança, o pau-brasil passaria a constar no Anexo I da CITES, uma espécie de lista reservada às espécies mais ameaçadas do planeta e cujo comércio só é permitido em circunstâncias excepcionais — onde figuram baleias, leopardos, marfim de elefante, orquídeas raras, cactos, sequoias e dezenas de outras. O que poderia soar como uma simples reclassificação burocrática é, na prática, uma disputa que expõe o desconfortável cruzamento entre política ambiental, interesses comerciais e patrimônio cultural.

A cada reunião da CITES, para alterar esses anexos, os países-membros apresentam propostas  baseadas em critérios biológicos e comerciais. As sugestões são debatidas e, em seguida, levadas à votação. O que está em jogo na mudança, afirmam alguns dos principais atores envolvidos consultados pela reportagem, é nada menos que o futuro da música clássica.

Endurecimento das regras de exportação

Para entender o imbróglio atual, é preciso voltar a 2007, quando o Ibama conseguiu incluir a espécie no Anexo II da CITES. Isso quer dizer que o comércio internacional de toras e de varetas (que mais tarde seriam transformadas em arcos) da Paubrasilia echinata, o pau-brasil, só seria autorizado se o exportador comprovasse ao Ibama que seus estoques de madeira haviam sido cortados antes daquele ano. A regra passou a valer para todos os archetiers do mundo — como são conhecidos os fabricantes de arcos —, mas, como o pau-brasil cresce exclusivamente no Brasil, os controles recaíram sobretudo sobre exportadores brasileiros.

Além disso, se a madeira extraída fosse proveniente de plantações comerciais (e não de mata nativa), também poderia sair do país. O problema, segundo o Ibama, é que não existe no Brasil uma única plantação de pau-brasil registrada no Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), plataforma que rastreia a procedência de madeira, carvão e outros produtos florestais. Também há uma controvérsia entre pesquisadores sobre a qualidade da madeira plantada. Para uns, ela serve. Para outros, não possui as mesmas características biológicas de uma árvore nativa, essenciais para confecção de arcos de violino. As árvores da maioria destas plantações comerciais são excessivamente ramificadas, com nós e deformações que inviabilizam a fabricação de arcos. Além disso, o próprio Ibama já identificou fraudes em registros de plantios usados para encobrir madeira retirada de áreas nativas.

Operação Dó Ré Mi abriu a caixa de pandora

Por um tempo, o sistema parecia funcionar perfeitamente, e a indústria brasileira de arcos aparentava operar dentro da legalidade. Mas a situação mudou em 2018, quando o Ibama deflagrou a Operação Dó Ré Mi, conduzindo fiscalizações coordenadas contra archetiers, comerciantes, intermediários e fornecedores de madeira ilegal, principalmente na Bahia e no Espírito Santo. A investigação revelou irregularidades disseminadas no comércio de pau-brasil, abrindo o que os investigadores descreveram como “uma verdadeira caixa de Pandora” de extração clandestina de madeira e fraude documental.

Com o avanço das evidências, o Ibama acionou a Polícia Federal (PF), o que resultou em sanções pesadas e em processos criminais contra 41 pessoas. As operações Ibirapitanga I e II, deflagradas em 2020 pelos dois órgãos, permitiram mapear a rede envolvida na extração, no transporte e no comércio ilegais de pau-brasil, no Brasil e no exterior. Segundo o Ministério Público Federal do Espírito Santo, foram apreendidos mais de 233 mil varetas e arcos prontos, 321 toretes de pau-brasil e instaurados cinco processos judiciais. O valor de mercado do material confiscado ultrapassou milhões de reais. Até a publicação desta reportagem, nenhum desses processos havia sido concluído.

Como nenhuma empresa da indústria brasileira de arcos conseguiu comprovar a origem do pau-brasil utilizado, as exportações brasileiras permanecem paralisadas até hoje.

Felipe Guimarães, analista ambiental do Ibama e biólogo mestre em anatomia de madeira que há sete anos rastreia toda a cadeia do comércio ilegal do pau-brasil — trabalho que se tornou tema de sua pesquisa de mestrado na Universidad Internacional de Andalucía —, encabeçou as ações das Operações Dó Ré Mi e Ibirapitanga I e II. Guimarães evita classificar o esquema como criminoso, alegando as limitações impostas por sua função pública. “Formalmente, só podemos dizer que esses indivíduos agiram em conluio, porque o Ibama só pode aplicar sanções administrativas”, explicou. “Na minha visão, porém, trata-se de uma organização criminosa que atua de forma deliberada, com uma hierarquia e papéis claramente definidos.”

Após a descoberta desses esquemas, o Ibama e o governo federal passaram a pressionar pela inclusão do pau-brasil no Anexo I da CITES. Nessa pauta, encontrou um aliado improvável: a própria ANAFIMA, representada por Neves, e alguns dos mesmos archetiers que haviam sido multados em milhões de reais e que enfrentaram processos criminais. Trata-se do único ponto em que todas as peças deste complexo tabuleiro parecem estar de acordo no Brasil. Na prática, essa mudança imporia controles muito mais rigorosos a fabricantes e músicos em todo o mundo — hoje, essas restrições recaem apenas sobre as partes brasileiras.

Embora, à primeira vista, esteja alinhado ao Ibama, o grupo de Neves miraria outro objetivo: garantir a continuidade do uso comercial do pau-brasil e preservar a indústria de arcos. Neves afirmou à Pública que “o problema real não está no Brasil, mas no mercado internacional, onde brechas de controle permitem a circulação de madeira com documentação irregular”. 

A mudança de posição da ANAFIMA, reforça Claudia Mello, analista ambiental e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Pau-Brasil do Ibama, se dá pela percepção de que arcar com todo o peso das regras não era bom negócio. “Eles viraram a favor do Anexo I por esses motivos”,  explica.

Nos bastidores, Neves tornou-se o rosto de um novo bloco de poder que emergiu em 2024, apoiado por dois dos archetiers mais conhecidos do país: Marco Raposo — dono da Arcos Marco Raposo e da Raposo Bows, com sede nos Estados Unidos — e Júlio Batista, proprietário da J.B. Atelier e da Souza Bows, também nos Estados Unidos. Ambos foram alvos das operações Do Ré Mi e Ibirapitanga I e II.

Em 2022, Raposo teve mais de 4 mil varetas de pau-brasil apreendidas. Ele já havia sido barrado em aeroportos duas vezes anteriormente, ao tentar transportar ilegalmente varetas e arcos acabados para a Inglaterra e França.

Baseada no Espírito Santo — o maior polo de archetiers do país —, a coalizão representada por Neves reúne ainda cientistas, deputados, o prefeito da cidade de Aracruz (ES), músicos e outros fabricantes de arcos. Todos assinaram a “Carta de Vitória”, divulgada em novembro de 2024 e enviada à secretaria da CITES pedindo a mudança para o Anexo I, além de propor a criação de sistemas de rastreabilidade que permitam o uso de madeira proveniente de plantações sustentáveis.

Confirmando-se a mudança para o Anexo I, passa a ser necessária a apresentação de documentos emitidos pela CITES que comprovem a origem florestal da madeira como condição para autorizar a comercialização de qualquer produto derivado da árvore — incluindo arcos prontos —, além da necessidade de autorizações alfandegárias para viagens internacionais de músicos que desejem transportar arcos feitos de pau-brasil. Para Claudia Mello, do Ibama, esse é, justamente, um dos pontos mais controversos na proteção da espécie desde 2007.  “Há um lobby muito forte da União Europeia e dos Estados Unidos contra o controle da comercialização dos arcos”, afirma. “Eles têm estoques enormes de pau-brasil há décadas e exportam muitos arcos por ano. É uma madeira que é nossa, saiu do Brasil, mas esses países não querem ter o incômodo de fiscalizar ou emitir documentos comprovando a origem legal dessas árvores.”

Lobby internacional contrário à mudança

Uma tentativa anterior de inclusão no Anexo I, apresentada na CoP de 2022, havia fracassado. A credibilidade ambiental do Brasil sob Jair Bolsonaro estava abalada, e associações de músicos e luthiers — artesãos que fabricam instrumentos musicais — nos Estados Unidos e na Europa convenceram seus governos de que essa inclusão causaria danos incalculáveis à indústria centenária do arco — e, consequentemente, à música clássica.

Com processos criminais ainda em andamento e novas apreensões registradas até 2024, o Ibama manteve a pressão pela mudança. Em junho deste ano, o órgão enviou uma nova rodada de documentos à CITES defendendo a inclusão do pau-brasil no Anexo I, consolidando anos de combate ao tráfico e detalhando por que grande parte das plantações existentes não atende aos critérios mínimos de sustentabilidade.

Do outro lado da disputa está uma coalizão de organizações de archetiers e músicos europeus e norte-americanos, que alegam que os novos controles trariam custos e entraves burocráticos inviáveis para o setor. Na linha de frente está a International Pernambuco Conservation Initiative (IPCI), grupo transnacional criado em 1999. Os Estados Unidos também contam com a International Alliance of Violin and Bow Makers for Endangered Species, fundada em 2018. Essa rede tem o respaldo de alguns dos maiores nomes da indústria musical. No Uzbequistão, porém, o setor deve revelar suas próprias fissuras internas.

Sair da versão mobile