Em poucos minutos, o auditório de um dos prédios do Tribunal de Justiça do Pará foi tomado pelas cores dos cocares de penas e pelo som dos cantos marcados por maracás. Dez caciques e cacicas se sentaram logo na primeira fileira para falar com as autoridades do Governo Federal e da Presidência da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, a COP30, enfileirados no palco. No restante da plateia, mais de 40 indígenas de 14 povos do Baixo Tapajós também tomaram seus lugares.
Não se tratava de uma audiência judicial, nem mesmo de um encontro planejado. A reunião com as ministras Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e com o presidente da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, o embaixador André Corrêa do Lago, havia sido armada de improviso e depois de uma certa dose de pressão.
Aquela sexta-feira (14 de novembro) já tinha começado com emoção: antes mesmo do amanhecer, dezenas de pessoas do povo Munduruku, a maioria mulheres, se colocaram diante dos portões que davam acesso ao espaço da negociação diplomática da conferência. Cantando e dançando, com crianças no colo, o recado era simples: “ninguém entra, ninguém sai” até que eles fossem recebidos pelas autoridades para colocar suas demandas.
“Não tem a história do jabuti? De como ele derruba o coelho, o veado, a onça, com estratégia? Nós fizemos um trabalho de estratégia mesmo, de chegar, passar pela polícia e fazer barulho na hora certa”, relatou a liderança Alessandra Korap Munduruku à Agência Pública dias depois.
“Com a COP no Brasil, na Amazônia, no nosso território, [mas] com chefes de Estado favoráveis ao petróleo, à mineração, como a gente ia lidar com esses acordos acontecendo na porta da nossa casa? Então, nós, mulheres Munduruku, juntamente com os caciques, com a juventude, pensamos que precisávamos fazer alguma coisa, porque não adianta nada nós virmos aqui ouvir e não ter poder de decisão, não ter fala, não poder fazer nada”, contou ela.
E eles fizeram. É impossível contar a história da primeira COP realizada em uma cidade amazônica sem falar da presença dos povos indígenas – dentro e fora do espaço da Organização das Nações Unidas (ONU).
Graças às articulações capitaneadas pelo Ministério dos Povos Indígenas, eles registraram a maior participação da história das conferências, com mais de 350 indígenas credenciados na delegação do Brasil, e conquistaram menções inéditas nas decisões diplomáticas.
À nível nacional, pressionaram por demarcações e denunciaram projetos do governo – o que também levou a ganhos e a algumas concessões, ainda que aquém do desejado por muitos. E, no geral, suas vozes em defesa da natureza e contra o modelo econômico predatório soaram como esteio moral em um espaço repleto de contradições.
“Eles escolheram que a COP30 acontecesse aqui em Belém. Então, nós, povos indígenas, aproveitamos. Viemos para falar sobre a nossa situação, os problemas das comunidades, de terra, demarcação, invasores, garimpeiros e fazendeiros ilegais, tudo que a sociedade não-indígena sempre vem destruindo”, afirmou o líder do povo Yanomami Davi Kopenawa em uma entrevista exclusiva com a reportagem realizada durante a COP.
No discurso que abriu a conferência, o presidente Lula (PT) havia citado Kopenawa diretamente, lembrando o que o xamã costuma dizer que, na cidade, o pensamento fica esfumaçado e obstruído pelo ronco do carro e ruído das máquinas. “Espero que a serenidade da floresta inspire em todos nós a clareza de pensamento necessária para fazer o que precisa ser feito”, afirmou Lula.
Na ocasião, o presidente foi além e disse ser “fundamental reconhecer o papel dos territórios indígenas e de comunidades tradicionais nos esforços de mitigação [redução de emissões dos gases de efeito estufa, responsáveis pelas mudanças climáticas].
“No Brasil, mais de 13% do território são áreas demarcadas para os povos indígenas. Talvez ainda seja pouco”, emendou Lula.
Àquela altura, não estava garantido que a COP30 seria palco de avanços nessas duas frentes.
Povos indígenas: “Nós somos o termômetro”
O barulho na hora certa, descrito por Alessandra Munduruku, teve efeito rápido. Com a entrada para a conferência interrompida, diplomatas, assessores, integrantes de organizações e de empresas, formaram longas filas debaixo do sol implacável de Belém – até o presidente da COP30 entrar em ação e convocar as lideranças Munduruku para uma conversa com a presença das ministras Silva e Guajajara no prédio do Tribunal de Justiça, próximo ao espaço da conferência.
Naquela sexta-feira, último dia da primeira semana da conferência, Marina Silva, Guajajara e Corrêa do Lago dedicaram mais de quatro horas a reuniões com lideranças indígenas, já que, além dos Munduruku, os povos do Baixo Tapajós também decidiram fazer barulho e ir até o prédio para arrancar uma reunião com as autoridades.
Dias antes, alguns deles, acompanhados de jovens de movimentos políticos e outros manifestantes, já tinham chamado atenção – inclusive internacional – ao tentar entrar sem credenciamento no espaço fechado da COP, o que provocou confusão com os seguranças, que impediram a passagem.
“Nós saímos lá do território, nos juntamos aos ribeirinhos, aos quilombolas, para chegar aqui numa caravana para ter uma conversa com vocês, olho no olho”, disse o cacique Gilson Tupinambá, coordenador do Conselho Indígena Tupinambá do Tapajós, que representa 28 aldeias, para as autoridades no palco – além das ministras e do presidente da COP, estavam ali secretários dos ministérios e da Secretaria Geral da Presidência da República e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana.
“O nosso povo precisa ser ouvido, porque dentro do território, nós somos o termômetro. Nós sabemos quando o clima mudou”, afirmou Gilson. “No ano passado, tivemos uma grande seca, as manivas secaram, o rio secou, os peixes morreram. Nós queremos condição para continuar vivendo nos nossos territórios e isso está sendo tirado de nós”.
Ao longo das duas horas seguintes, diante de uma audiência compenetrada e do silêncio das autoridades, outros nove caciques e cacicas também tomaram a palavra. Eles descreveram as dificuldades que enfrentam nos territórios (da pressão do agronegócio aos efeitos das mudanças climáticas, como a seca do ano passado que deixou aldeias do Tapajós isoladas), clamaram pela demarcação de suas terras e, principalmente, pediram a revogação de um decreto assinado pelo presidente Lula que prevê hidrovias em três grandes rios amazônicos, o Tapajós, o Madeira e o Tocantins – projeto que também enfrenta forte oposição dos Munduruku.
“O que está acontecendo aqui é o motivo pelo qual o presidente Lula queria trazer o mundo para a Amazônia: para que o mundo entendesse quantas coisas têm que se fazer ainda para defender os povos e os territórios da Amazônia”, afirmou o presidente da COP.
O espaço que se formou ali, voltado principalmente para questões nacionais, foi descrito por Marina Silva como “a nossa zona azul nacional”, em referência ao espaço da COP30 onde são realizadas as negociações diplomáticas entre os representantes de 194 países, para que as lideranças levantassem os “problemas globais que vocês querem que sejam reforçados ou para falar dos problemas nacionais que precisam ser melhorados e mudados”.
Quatro dias depois, diante de uma plateia lotada na área aberta da conferência, o MPI e a Funai anunciaram avanços em 20 processos demarcatórios de territórios indígenas em todo o país. Entre eles, houve a publicação da portaria declaratória (ato que antecede a homologação, etapa final da demarcação) da Terra Indígena Sawre Ba’pim, justamente uma das reivindicadas pelas lideranças Munduruku na reunião da semana anterior.
Vários ali esperavam há décadas por avanços, como os povos da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana (PA e AM), que no sábado (15 de novembro), compareceram à Marcha Global pelo Clima com camisetas, cartazes e faixas pedindo que Lula assinasse a homologação (última etapa demarcatória).
Perguntada pela reportagem se a pressão da sociedade civil havia feito diferença para os avanços anunciados, a ministra Guajajara foi objetiva: “sempre faz, né?”.
No evento, muitas pessoas presentes não contiveram as lágrimas de emoção. A demarcação é uma camada de proteção fundamental para os territórios, que enfrentam todo tipo de pressão, como o avanço do agronegócio, a invasão de garimpeiros e ataques de milícias rurais, não contiveram as lágrimas de emoção. Até porque, no dia anterior, a violência sofrida pelos povos indígenas havia feito mais uma vítima, como num lembrete de que são muitas as forças que atuam contra eles no Brasil. Justamente em um território não demarcado (e que tem uma fazenda sobreposta), em Iguatemi (MS), Vicente Vihalva, um indígena guarani de 36 anos, foi morto com um tiro em um ataque atribuído a pistoleiros, conforme o Conselho Indigenista Missionário.
Pela 1ª vez, direito indígena é incluído em decisão sobre mudança do clima na COP
A demarcação também evidencia o papel que os territórios indígenas desempenham na preservação dos biomas e, portanto, no combate às mudanças climáticas.
No Brasil, as terras indígenas somam cerca de 13% do território e, desde 1985, só perderam 1% da vegetação nativa, segundo o MapBiomas. “O Brasil tem áreas entre as mais preservadas do mundo, mas elas só são preservadas, porque nós existimos, porque nós estamos lá”, como disse Renata Lod, do povo Kali’na, do Amapá.
Na América do Sul, enquanto territórios indígenas perderam apenas 68 mil quilômetros quadrados de floresta amazônica, fora deles, essa perda foi de 566 mil quilômetros quadrados nos últimos 25 anos, conforme dados apresentados na COP por Wayne Walker, pesquisador do centro Woodwell Climate.
Não bastasse, as árvores nos territórios indígenas armazenam em seus troncos e folhas 31 bilhões de toneladas métricas de carbono. “Só para dar a vocês uma ideia do que isso significa, isso é o equivalente a três anos das emissões globais de combustíveis fósseis”, disse Walker.
São dados como esses que impulsionaram a reivindicação do movimento indígena, encampada pelo MPI, de que os acordos climáticos reconheçam essa contribuição.
“A nossa luta continua sendo que a demarcação se torne uma política climática”, disse Mariazinha Baré no evento. “O trabalho que estamos fazendo enquanto povos indígenas não é só para nós. Estamos num momento de emergência humanitária. É importante que o restante da sociedade possa se juntar e fazer essa luta conosco”, disse ela.
Ao longo da COP, o MPI trabalhou nessa demanda, junto ao Ministério das Relações Exteriores e a própria presidência da COP para encontrar espaços nas decisões negociadas entre os países nos quais esse reconhecimento pudesse ser feito sem risco de ser vetado por alguma nação.
Ao final, uma das decisões reconhece a importância dos direitos territoriais indígenas como uma política de redução de emissões de longo prazo. Ainda que a redação diplomática seja “suave” e não crie obrigações aos países no sentido de eles terem que demarcar territórios, foi a primeira vez que o direito indígena à terra foi incluído em uma decisão sobre política de enfrentamento à mudança do clima.
Além dessa menção, os povos indígenas também tiveram seus conhecimentos tradicionais contemplados nos indicadores que deverão medir as medidas de adaptação dos países ao aumento da temperatura e eventos climáticos extremos.
Outras decisões acordadas na COP30 reafirmaram direitos fundamentais para os povos indígenas, como a proteção a indígenas em isolamento voluntário e em contato inicial. Além da importância da consulta livre, prévia e informada, que estabelece que os povos originários e tradicionais precisam ser ouvidos antes de qualquer projeto ou empreendimento que traga impactos a eles. Trata-se de um direito já garantido há anos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, mas muitas vezes descumprido e que, agora, foi reafirmado em um acordo da política climática internacional, criando mais uma camada de proteção.
Tudo o que muitos povos indígenas no Brasil querem é ser consultados. Vale para os povos de Oiapoque, no Amapá, que dizem já estão sendo impactados pela atividade da Petrobras de perfuração de um poço para procurar petróleo na região ecologicamente sensível da Foz do Amazonas.
E vale para os povos do Tapajós, que rejeitam a hidrovia em seu rio. Não à toa, a promessa de uma consulta foi a resposta oferecida a eles pelo governo federal depois da reunião com as autoridades.
“Mas como é que vai ter consulta depois de um decreto assinado pelo presidente?”, questionou Auricelia Arapium, uma das lideranças do Baixo Tapajós, em entrevista com a reportagem. “Quando ele assina um decreto privatizando o rio, ele está ferindo a legislação internacional. A gente não disse que não aceita conversar com o governo, podemos inclusive sentar para montar um plano de consulta com os povos, respeitando os nossos protocolos. Mas antes disso ele precisa revogar o decreto, que foi assinado sem consulta”.
Para lideranças indígenas, resposta ao petróleo é um sonoro ‘não’
As cobranças ao presidente Lula vão além do decreto que prevê as hidrovias – rejeitado também por comunidades ribeirinhas do rio Madeira.
As lideranças do Oiapoque também estiveram na COP para dizer em alto e bom som que não querem exploração de petróleo nem na foz do rio Amazonas e nem em nenhum outro lugar da Amazônia – uma posição endossada pelo cacique Raoni Metuktire, que também foi a Belém e, em diferentes momentos, afirmou que vai falar novamente com o presidente sobre o assunto.
Segundo um levantamento recente da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), 84 Terras Indígenas do país podem ser impactadas por empreendimentos de petróleo e gás – entre elas, 44 nem sequer tiveram o processo de demarcação iniciado, aumentando a vulnerabilidade delas.
Os povos indígenas também se colocam contra a exploração de petróleo no geral. Não à toa, várias lideranças queriam que a COP30 entregasse o mapa do caminho para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e o roteiro para o fim do desmatamento em todo o mundo – ambos propostos pelo presidente Lula.
“Estrangeiros vieram para cá nos escutar aqui, na nossa casa. E nós temos o direito de conversar com eles para minimizar a mudança climática e não derrubar e não queimar mais florestas. A destruição é muito grande”, disse Kopenawa à Pública.
Mas, apesar do apelo de Lula, não houve clareza de pensamento nesses casos, e a COP30 terminou sem entregar esses resultados específicos – ainda que parte do movimento indígena tenha comemorado o lançamento do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, o TFFF, que vai remunerar países com floresta tropical que mantenham suas florestas em pé, direcionando 20% diretamente para os povos indígenas (algo visto com desconfiança por alguns).
“A gente trouxe uma bandeira de luta da Amazônia brasileira, de tornar a região e os territórios indígenas, áreas de livre exploração de combustíveis fósseis para preservação de toda essa biodiversidade e para o bem da humanidade. Vamos continuar pressionando, fazendo a crítica e lamentamos muito que os negociadores não tenham ainda chegado a um acordo sobre esse mapa do caminho”, afirmou à reportagem Kleber Karipuna, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas.
Houve quem protestasse até o fim, como a jovem liderança Txai Suruí, acompanhada por indígenas de vários países das Américas, que pediam pelo fim dos combustíveis fósseis. A queima de petróleo, gás e carvão é a principal causa do aumento da temperatura do Planeta, que já ficou 1,2º C mais quente na média global na comparação com os níveis anteriores à industrialização dos países. O aumento da temperatura é um dos pontos de não retorno para a floresta amazônica que, com o desmatamento e a degradação, pode, eventualmente, deixar de ser uma floresta tropical.
“Seguir nesse caminho é condenar todos nós”, disse Suruí, logo depois de passar por homens da Força Nacional fortemente armados que formavam uma barreira humana, com os escudos postados à frente, antes da entrada da zona restrita da conferência.
Não houve uso da força, mas a mera presença dos homens fortemente armados diante de jovens vestidos com a roupa do corpo, era intimidante. E não foi o único constrangimento enfrentado por diferentes grupos indígenas, como as Surarás do Tapajós, banda feminina, que não pode acessar a área aberta da conferência para se apresentar em um dos dias.
A realidade é que, apesar da presença recorde de povos indígenas na COP30, o espaço da ONU ainda é, em muitos aspectos, hostil àqueles que não se encaixam no estreito padrão diplomático. Os textos negociados são repletos de siglas, referências a outros documentos e escritos quase em código, o que exige conhecimento não só do tema, mas da linguagem da diplomacia, para poderem ser navegados. Português não é uma das línguas oficiais da convenção do clima, o que significa que a maioria das salas de negociação não tem tradução simultânea para o idioma nacional. A liturgia diplomática não comporta outros modos de expressão.
E o que muitas lideranças querem é estar nas salas de negociação, discutindo, em pé de igualdade, com os negociadores dos países – algo impensável na atual configuração da Convenção do Clima.
Na audiência com os povos do Baixo Tapajós, a ministra Guajajara reconheceu essas dificuldades.
“É muito justo quando vocês falam que a COP não quer escutar. A COP não quer escutar mesmo. Esse espaço, essa estrutura é e sempre foi excludente”, disse ela, relembrando que até a 15ª edição não houve nenhuma presença indígena.
“Quando eu cheguei na COP pela primeira vez, não tinha nenhum lugar para eu sentar na plenária, eu ficava do lado de fora tentando e implorando para alguém me ceder um ou dois minutos da fala”, contou a ministra, que lembrou ter celebrado como, há dois anos, a COP28, em Dubai, registrou a maior presença de indígenas brasileiros até então, com 100 pessoas.
“Essa estrutura não foi preparada para nos receber. E é exatamente garantido a participação é que a gente vai mudando. Vai sensibilizando, vai fazendo com que a gente tenha voz”, completou a ministra.
Não é um desafio pequeno, mas, como disse Edimilson Oliveira, cacique do povo Karipuna, nada que os povos indígenas conquistaram foi de “mão beijada”, “sempre foi com luta”. Obter mais vitórias das conferências do clima não será diferente.
