Polícia Militar SP: batalhões comandados por coronel Sabino mataram 84 pessoas em 2 anos

O barulho do estampido seco de um revólver ressoou entre os moradores da Vila Sônia, em Piracicaba, no interior paulista, que responderam aos gritos: “Eles mataram o Biel”. O disparo saiu da arma empunhada pelo cabo Junior Cesar Rodrigues, da Polícia Militar (PM SP), e atingiu a cabeça do servente de pedreiro Gabriel Junior Oliveira Alves da Silva, de 22 anos, que morreu ao tentar proteger a esposa grávida de uma abordagem truculenta. O crime aconteceu em 1º de abril deste ano.

Gabriel Silva está entre as 84 mortes causadas por PMs subordinados ao coronel Cleotheos Sabino de Souza, em dois anos (de junho de 2023 até junho deste ano). Sabino, como é conhecido, já foi condenado a dois anos de prisão em regime aberto, por espancar um artesão em Ribeirão Preto, em 1999. O fato não serviu de impeditivo para que ele fosse promovido pelo menos três vezes, desde que o deputado federal Guilherme Derrite (PL) assumiu o cargo de secretário de Segurança do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). E, desde então, por onde passou, houve aumento de mortes praticadas por policiais sob sua gestão.

“Pelos números do Sabino, a gente nota que onde ele assume o comando, a porcentagem de violência policial dispara”, disse, em condição de anonimato à Agência Pública, um advogado paulista que acompanha casos de violência policial. Em fevereiro deste ano, o coronel assumiu o posto de comandante do Comando de Policiamento do Interior 0 (CPI-9), que é responsável por administrar os batalhões e companhias da PM SP de 52 municípios do interior paulista, incluindo Piracicaba.

Segundo o levantamento da Agência Pública, de fevereiro a junho deste ano – o período do CPI-9 sob comando de Sabino – foram registradas 26 mortes por ações policiais. Isso representa quase 70% de todas as mortes em 2024 na região (39 mortes) e 18% a mais do que as mortes em 2023, quando foram registradas 22 casos de óbito por intervenção policial.

Coronel Sabino, da PM SP, em cerimônia de assunção ao comando do CPI-9

O CPI-9 não é o único batalhão da PM SP sob o comando de Sabino que apresentou aumento na letalidade policial. Quando ainda era tenente-coronel – o segundo na hierarquia militar – Sabino foi anunciado, em junho de 2023, como o comandante do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), na capital, onde foi responsável por cinco companhias de área (as bases da PM), que atendem o bairro do Morumbi e a favela do Paraisópolis. O mesmo batalhão já foi apontado, no passado, como o mais letal do estado.

Durante os nove meses de sua gestão, que durou até março de 2024, os policiais militares subordinados a Sabino mataram 24 pessoas. O número é maior do que todas as mortes no ano de 2022, quando o mesmo batalhão registrou 21 mortes em decorrência de intervenções policiais.

Em mais uma promoção, em março de 2024, ele foi indicado à chefia do Comando de Policiamento de Área Metropolitano-3 (CPAM3), que responde pelos cinco batalhões da PM SP na Zona Norte de São Paulo.

A sua passagem pelo CPA-M3 durou 11 meses e foi marcada pelo aumento da letalidade policial, registrando 34 mortes – o dobro de todo o ano de 2023, quando os mesmos batalhões juntos contabilizaram 16 óbitos.

Por que isso importa?

  • Em 2024, São Paulo foi o estado que apresentou o maior crescimento do número de mortes em decorrência de intervenção policial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A reportagem procurou Sabino, que não respondeu aos questionamentos enviados. Dois dias após o pedido de posicionamento, o coronel fez uma publicação em sua conta no Instagram, onde escreveu que “cada vez mais matérias orquestradas pelo crime, tentam criminalizar a atividade policial” e que “não vão conseguir nos transformar em vilões e transformar marginais violentos em vítimas” (sic).

Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP), disse que “A PM reafirma que não tolera desvios de conduta. Todos os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) são apurados rigorosamente pela Corregedoria, com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário. Comprovadas irregularidades, os envolvidos são responsabilizados nos termos da lei.”

Sobre a atuação de Sabino no CPI-9, a pasta acrescentou que “registrou, no primeiro semestre deste ano, o segundo menor índice de homicídios dolosos em 25 anos (-6,19%). Os roubos em geral caíram 23,78%, atingindo o menor patamar desde 2001, e todos os demais crimes patrimoniais também registraram queda. No período, mais de 9,6 mil infratores foram presos ou apreendidos, 592 armas ilegais retiradas de circulação e 1.683 veículos recuperados.” Leia a nota na íntegra aqui.

“Policial militar não sai de casa para apanhar na rua”, diz coronel após assassinato em abordagem

Na PM SP desde 1993, o coronel Sabino é defensor dos modelos tradicionais da corporação e defende que a PM SP não deve desempenhar trabalhos sociais e, sim, “combater o crime”. Em entrevista à Jovem Pan, em maio de 2025, após assumir o comando do CPI-9, ele disse que acredita “que a Polícia não pode ser desviada de suas funções […] se você pegar a origem da Polícia, ela foi criada para restringir direitos e fiscalizar quem transcendia as leis.”

No caso do assassinato de Gabriel Silva, mesmo com a repercussão negativa e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) ter apontado que ele se revoltou pelas agressões contra sua esposa, o coronel Sabino saiu em defesa de seus agentes: “o policial militar não sai de casa para apanhar na rua e muito menos para perder sua vida [ou] trocar socos com quem quer que seja. Toda agressão contra o policial militar em serviço deve ser encarada como um atentado à sua vida. O policial militar é treinado para avaliar as circunstâncias e voltar vivo para casa”, disse o coronel em um vídeo publicado em sua conta no Instagram.

Em 2014, quando ainda era sargento da PM, Sabino foi alvo de denúncia do Ministério Público, após um torcedor do clube XV de Piracicaba ser espancado por policiais sob sua supervisão. Na época, a Justiça de São Paulo absolveu “sumariamente” todos os PMs envolvidos, mas o caso foi reaberto pelo STJ em fevereiro de 2024.

A Pública teve acesso aos autos do processo. Na denúncia do promotor Tiago Essado, em agosto de 2015, consta o pedido de “condenação, aplicação dos efeitos previstos no 5º do art. 1º da Lei 9.455/97, entre eles a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada”.

Após a determinação do STJ, a Justiça de São Paulo enviou o caso para a Justiça Militar, onde o processo tramita.

Alinhamento com Tarcísio e proximidade com Derrite

“Combatendo o crime e protegendo a população do estado de São Paulo e se tem alguém que sabe fazer isso com propriedade, chama-se coronel Sabino”, disse o secretário de segurança paulista, Guilherme Derrite, que tem um histórico de discursos em defesa de policiais, mesmo em casos de violência. A fala foi proferida em março deste ano, durante o evento de posse de Sabino como novo comandante do CPI-9, um mês após ele assumir o posto.

O novo cargo de comandante do CPI-9 é mais uma função no currículo do coronel Sabino, que ostenta posições de destaque no comando dos policiais da ativa, desde que o secretário Derrite assumiu o posto, em janeiro de 2023. “Eu fui favorecido e agraciado pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que me colocou no 16º batalhão, é o batalhão mais importante da capital e o mais complexo”, disse o coronel em entrevista à Jovem Pan FM, em maio deste ano.

Em sua conta no Instagram, em meios às publicações sobre ações de apreensões de drogas, prisões, produtividade policial e pronunciamentos, o coronel expõe os encontros com o secretário.

A proximidade entre Derrite e Sabino não é de agora. Em novembro de 2021, Sabino participou do podcast “Papo de Rota”, que era apresentado por Derrite, na época em que ainda era somente deputado. Publicados todas as sextas-feiras, os episódios abordavam o dia a dia de policiais militares da ativa e da reserva, quando integravam a Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar). Atualmente, os vídeos encontram-se indisponíveis no YouTube.

Mas foi durante a ausência de Derrite no posto de secretário de segurança, em março de 2024, que Sabino conquistou o mais alto posto da Polícia Militar de São Paulo: o de coronel, em um decreto assinado pelo governador Tarcísio de Freitas . Segundo apuração do jornal Folha de S. Paulo, a promoção gerou repercussão negativa dentro da corporação e colegas de farda chegaram a apontar a ascensão como resultado da proximidade entre Sabino e o chefe de gabinete do secretário de segurança, Paulo Mauricio Maculevicius Ferreira.

Sobre a promoção de Sabino ao posto de coronel na PM SP, a SSP informou que a ascensão de Sabino seguiu os critérios técnicos e legais estabelecidos pela Polícia Militar para a progressão na carreira”.

Em março deste ano, o governador Tarcísio esteve na região de Piracicaba e fez uma homenagem ao coronel: “Queria cumprimentar, de uma maneira muito especial, o coronel Sabino, comandante do CPI-9, Polícia Militar de São Paulo e a Polícia Civil […] eu precisava ressaltar que aqui na região [de Piracicaba] nós temos os menores indicadores de homicídios, roubos e furtos de todos os tempos, desde o início da série histórica.”

Um ano antes disso, em março de 2024, Tarcísio, ao ser questionado sobre o aumento da violência policial na Baixada Santista, disse que não estava “nem aí” para as denúncias. Depois das repercussões negativas, ele moderou o discurso.

Assassinato de Gabriel: após prisão de agentes, outros PMs teriam ameaçado testemunhas

No caso que levou à morte de Gabriel Silva, em abril deste ano, o cabo Rodrigues e o soldado Leonardo Machado Prudêncio – que agrediu a esposa de Silva – foram presos preventivamente e denunciados pelo promotor de justiça Aloísio Antônio Maciel Neto, sob a justificativa de que “o crime de homicídio foi cometido por motivo torpe, consistente no fato do denunciado não aceitar a revolta da vítima Gabriel diante das agressões praticadas contra sua esposa no momento daquela abordagem”.

De acordo o advogado Gustavo Henrique Pires, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Piracicaba, após a prisão dos agentes, outros PMs passaram a ameaçar testemunhas, moradores e a família de Silva, caso prestassem depoimentos que pudessem comprometer os policiais já presos.

“Passados alguns dias, os moradores voltaram a me procurar, dizendo que os PMs estavam fazendo abordagens e ameaçando quem fosse testemunhar, a vida deles se tornaria um inferno. Então, eu relatei ao Ministério Público”, disse o advogado. Depois disso, outros quatro policiais militares foram afastados de suas funções, em virtude das ameaças.

Segundo a SSP, os dois policiais militares envolvidos na ocorrência de Piracicaba permanecem presos, enquanto os demais seguem afastados das atividades operacionais. O caso foi investigado pela 3ª Delegacia de Homicídios da Deic do Deinter-9, relatado à Justiça e também apurado pela Corregedoria da PM, que aguarda manifestação judicial.”

Metodologia

Os dados utilizados nesta reportagem foram obtidos no site da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, no final de julho, referentes a boletins de ocorrência cuja natureza registrada foi “Morte decorrente de intervenção policial”.

A partir da base original, foram aplicados filtros para selecionar:

  1. Delegacias de Polícia (DPs) pertencentes à área de circunscrição dos batalhões comandados pelo coronel;
  2. Período correspondente ao comando do coronel em cada batalhão (coluna “DATAHORA_REGISTRO_BO”);
  3. Registros em que o campo “corporação” estava identificado como Polícia Militar (PM).

A análise foi segmentada conforme os comandos e batalhões sob responsabilidade do coronel:

  • 16° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (16º BPM/M)
    • DPs abrangidas: 34º (Morumbi), 37º (Campo Limpo), 75º (Jardim Arpoador) e 89º (Jardim Taboão)
    • Período analisado: de 13/06/2023 a 12/03/2024.
  • Comando de Policiamento de Área Metropolitano-3 (CPAM-3)
    • Batalhões abrangidos: 5º, 9º, 18º e 43º
    • DPs filtradas: 28º (Freguesia do Ó), 74º (Parada de Taipas), 20º (Água Fria), 73º (Jaçanã), 19º (Vila Maria), 39º (Vila Gustavo), 90º (Parque Novo Mundo), 9º (Carandiru), 13º (Casa Verde), 40º (Vila Santa Maria) e 45º (Vila Brasilândia).
    • Período analisado: 12 de março de 2024 a 08 fevereiro de 2025.
  • Comando de Policiamento do Interior-9 (CPI-9)
    • Período analisado: a partir de 9 fevereiro de 2025.
    • Municípios incluídos: Aguaí, Águas da Prata, Águas de São Pedro, Americana, Analândia, Araras, Artur Nogueira, Brotas, Caconde, Capivari, Casa Branca, Charqueada, Conchal, Cosmópolis, Cordeirópolis, Corumbataí, Divinolândia, Elias Fausto, Engenheiro Coelho, Espírito Santo do Pinhal, Hortolândia, Ipeúna, Iracemápolis, Itobi, Itirapina, Leme, Limeira, Mombuca, Mococa, Monte Mor, Nova Odessa, Piracicaba, Pirassununga, Rafard, Rio Claro, Rio das Pedras, Saltinho, Santa Bárbara d’Oeste, Santa Cruz da Conceição, Santa Cruz das Palmeiras, Santa Gertrudes, Santa Maria da Serra, Santo Antônio do Jardim, São João da Boa Vista, São José do Rio Pardo, São Pedro, São Sebastião da Grama, Sumaré, Tambaú, Tapiratiba, Vargem Grande do Sul.
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