Uma sentença do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) materializou em cifras a destruição de uma parte da Amazônia. O Frigorífico Irmãos Gonçalves Comércio e Indústria Ltda, um dos gigantes da carne no estado, ligado a família do vice-governador de Rondônia, Sérgio Gonçalves, foi condenado, no dia 13 de novembro, junto com dois pecuaristas, Ailson Lutequim Brum e Lindiomar Rangel da Silva, a pagar mais de R$ 24 milhões por danos ambientais. O palco do crime foi um total de 570 hectares de floresta nativa postos abaixo dentro da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, a mais devastada na Amazônia: uma área maior do que três complexos do Maracanã somados.
A criação de gado de grande porte na Resex é proibida por lei, já que a unidade de 197 mil hectares foi criada para servir ao sustento e uso sustentável de populações e extrativistas tradicionais. A Ação Civil Pública, movida pelo Estado de Rondônia, desenhou o percurso do dano. Imagens de satélite e laudos da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) registraram o corte raso da vegetação, uma técnica que varre a vida do solo para dar lugar ao pasto.
Guias de Trânsito Animal (GTAs) conectaram o gado criado ilegalmente na Resex Jaci-Paraná ao frigorífico. Ailson e Lindiomar figuravam como os donos dos animais nos registros oficiais da Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril (IDARON). O Frigorífico Irmãos Gonçalves, na ponta final da cadeia, comprava e abatia o gado e comercializava a carne.
A decisão judicial foi taxativa: determinou a desocupação imediata da área, a demolição de estruturas ilegais e a retirada dos animais. Impôs ao frigorífico a responsabilidade de não mais adquirir gado da reserva. A indenização milionária foi fatiada: R$ 6,18 milhões por danos diretos; R$ 12,64 milhões por danos intercorrentes – a perda dos serviços que a floresta presta enquanto não se recupera –; R$ 3,99 milhões por dano moral coletivo e R$ 1,12 milhão pela madeira extraída ilegalmente. Como sanção adicional, suspendeu incentivos fiscais e o acesso a crédito público para os réus até a reparação completa do dano.
O frigorífico publicou nota oficial alegando nunca ter criado gado, possuído terras ou desenvolvido atividades na Resex. Argumentou que apenas adquiriu animais de terceiros, amparado por documentação emitida pelos próprios órgãos estaduais. “Nenhuma compra é realizada sem que o Estado confirme e autorize a regularidade da origem dos bovinos”, diz o texto. A empresa se posiciona como vítima de uma falha de fiscalização estatal e de uma “interpretação jurídica sobre responsabilidade”.
Os pecuaristas tentaram anular as provas e questionaram a legalidade da criação da própria reserva. A Justiça rejeitou os argumentos. A sentença firmou-se na tese da responsabilidade objetiva e propter rem, que atribui o dever de reparação a quem tem a posse ou explora economicamente a terra, independentemente de ser o proprietário formal. E foi além, ao aplicar a figura do poluidor indireto.
Para o juiz, ao comprar o gado, o frigorífico “incentivou a degradação ambiental” e citou entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que considera que “para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem”.
Legislativo trabalha para legalizar ocupações hoje ilegais e livrar empresas
A disputa pela Resex Jaci-Paraná, no entanto, continua em várias frentes. A Procuradoria Geral do Estado de Rondônia também move ações que somam dezenas de milhões em pedidos de indenização contra outros gigantes do setor, como a JBS, Tangará e Distriboi, pelo mesmo motivo: compra de gado de áreas invadidas e desmatadas ilegalmente na unidade de conservação. Laudos anexados a esses processos estimam o dano em mais de R$ 5 bilhões.
Mas enquanto o Judiciário tenta impor um custo à destruição, o poder político rema na direção oposta. Tramita na Assembleia Legislativa de Rondônia a Lei Complementar nº 1.274/2025, que anistia os criadores de gado que ocupam ilegalmente a reserva e os frigoríficos que compraram sua produção. A proposta prevê a extinção de multas e ações judiciais, além de conceder uma autorização de uso da terra por 30 anos, por isso foi apelidada de “lei da anistia”.
O benefício a invasores de unidades de conservação foi tema de reportagem da agência AP, republicada no jornal norte-americano The Washington Post, que classificou a lei como uma das grandes ameaças à Amazônia. A publicação cita reportagem feita em parceria com a Agência Pública em 2023.
