Com mais de 20 anos de atuação na cobertura de segurança pública, a jornalista Cecília Olliveira analisa as camadas sociais e políticas que sustentam as ações e avanço das milícias no país. Ela acaba de lançar o livro Como nasce um miliciano, pela Bazar do Tempo. A jornalista resgata a história desses grupos que surgiram com a proposta de garantir a segurança e combater crimes em determinadas regiões do Rio de Janeiro e acabaram se expandido de forma articulada e violenta.
No Pauta Pública, Cecília aponta como o sequestro de jornalistas do jornal O Dia, em 2008, marcou uma virada na percepção pública sobre essas milícias, que deixaram de ser vistas como protetoras para serem reconhecidas como grupos criminosos articulados dentro e fora do poder público. Ela também analisa porque o problema se expandiu para além do Rio, assumindo diferentes nomes e estratégias em vários estados.
Para ela, é preciso aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização e combate a esses grupos: “enquanto não houver realmente uma decisão política de não tolerar mais esse tipo de conduta, não vai ter como mudar […] porque quem tem a caneta na mão está com o bolso cheio vindo desse pessoal.”
Leia os principais pontos da conversa e ouça o podcast completo abaixo.
EP 177
Milícias: caneta na mão e bolso cheio
18 de julho de 2025
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Especialista em segurança pública fala sobre a surgimento e expansão das milícias em todo território nacional
Desde quando se tem registro da atuação das milícias no Rio?
A milícia existe há muito tempo. Se formos puxar o modo de atuação dessas forças, a gente vai realmente ir lá para a figuração da guarda na monarquia. Mas a milícia, como a gente conhece hoje, formada estritamente por policiais e por grupos de elite da polícia, podemos remeter entre as décadas de 60 e 70, quando muitos comerciantes falaram que estava havendo muito roubo e que era preciso dar um jeito nesses “ladrõezinhos.” Argumentos que ainda ouvimos hoje, inclusive.
A partir disso, se formou um grupo que também era conhecido como os Doze de Ouro, e que era formado ali por policiais escolhidos a dedo, legalmente, pelo governador, para poder formar esse grupo de elite. Então, ali foi o primeiro grupo de elite da polícia do Rio, que tinha essa missão de resolver os problemas. Se estava dentro ou fora da lei não interessava, desde que os problemas fossem resolvidos.
Havia os Doze de Ouro, também conhecidos como o Esquadrão Le Cocq, que depois ficou conhecido como Esquadrão da Morte. Depois foram evoluindo e trocando de nome e de configurações, para chegar no que a gente conhece hoje. Foram fases e formações diferentes, formações e funções diferentes ao longo do tempo, mas sem nunca perder aquela função primária, que é a execução, a morte por encomenda.
As milícias já foram chamadas de autodefesa comunitária, com apoio inclusive de políticos. Em que momento isso muda?
Foi uma fase das milícias, quando elas eram consideradas uma força auxiliar das polícias no combate ao tráfico. Era uma época em que o tráfico estava crescendo e o pessoal falava que precisavam se unir e se defender. Eles tinham esse nome de autodefesa, e eram, de fato, ali bem defendidos por políticos.
Mas a milícia conhecida como autodefesa mudou aos olhos da opinião pública entre 2007 e 2008, porque na época dois jornalistas do jornal carioca O Dia foram sequestrados quando eles estavam investigando e cobrindo a atuação da milícia no Batam [favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro]. Isso virou um grande escândalo, as entidades ligadas à liberdade de imprensa se manifestaram e o caso foi conhecido internacionalmente também. Nesse momento, as pessoas descobriram que eles não eram tão bons assim.
Esse crime também deu força política para que a CPI das milícias [2008], que já tinha sido engavetada, fosse colocada na pauta de novo e então aprovada. Quando foi destampado aquele bueiro, se identificou vários policiais, políticos e várias pessoas envolvidas com a gestão pública, que tinham alguma ligação direta com a milícia. Então, [nessa época] teve essa virada de autodefesa para a percepção de que não era tão bom assim.
As milícias são exclusivas do Rio ou já fazem parte da realidade de todo o país?
Não são exclusivas do Rio. Conhecemos muito bem sobre as milícias do Rio, mas não é exclusivo. Elas têm configurações diferentes a depender do lugar onde elas estão, do lugar onde elas atuam. Um tempo atrás, fiz uma matéria chamada “O carro da linguiça”, [publicada no Intercept Brasil], nome dado ao carro que passa atirando em quem estiver na frente. Existe essa mesma atividade, de execução, chacina e o que eles chamam de “limpeza do bairro”, para poder dar um recado, para poder avisar que mudou de gestão.
A depender do estado, muda de nome, como, por exemplo, “Carro Prata”, no Pará e “A Barca”, em Goiânia. Nomes que vão mudando de acordo com a cultura local, mas que existem em outros estados. São grupos de extermínio, que fazem execução por encomenda, então isso tem em todo lugar, o tempo todo, desde muito tempo. O que conhecemos hoje são as outras faces, outras atividades da cartela de negócios da milícia do Rio, que são mais populares. Mas elas existem em outros estados, oferecendo outros serviços também, customizados de acordo com a clientela local.
Tem jeito de combater as milícias? Existe vontade política para esse combate?
Jeito até tem, [porque] todo mundo sabe quem são os policiais que estão envolvidos nisso e quanto eles estão ganhando. Enquanto não houver realmente uma decisão política de não tolerar mais esse tipo de conduta, não vai ter como [combater]. Não vai ter como mudar e as pessoas que deveriam ter essa vontade política muitas vezes estão comprometidas com essa bandeira. Então, fica difícil pensar que vai ter jeito, porque quem tem a caneta na mão está com o bolso cheio vindo desse pessoal.
Precisamos de mecanismos anticorrupção que sejam mais eficazes, mais efetivos e que não sejam trabalhados só na ouvidoria da polícia, mas o papel da Fazenda [Ministério, secretarias] nessas situações é muito importante. Como é que essas pessoas movimentam todo esse dinheiro e não acontece nada? Obviamente que nem sempre isso vai transitar na parte legal do sistema, mas é preciso desenvolver mecanismos para detectar.