Um tiro de revólver calibre .38 matou Maria Fátima Muniz de Andrade, liderança indígena conhecida como Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, em 21 de janeiro do ano passado, na região de Potiraguá, no sul da Bahia. O ataque, perpetrado por um grupo de fazendeiros ligado ao movimento “Invasão Zero”, também baleou seu irmão, o cacique Nailton Pataxó e outros dois indígenas. Segundo a investigação, o tiro fatal foi disparado por um homem de 20 anos, filho de um fazendeiro, que foi preso e depois liberado mediante fiança.
Nega Pataxó foi uma 211 pessoas indígenas assassinadas em 2024, segundo o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – 2024”, lançado em 28 de julho pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e ao qual a Agência Pública teve acesso.
O ano passado, destaca a entidade indigenista, foi o primeiro sob vigência integral da Lei 14.701/2023, que instituiu o Marco Temporal. A tese “fragiliz[ou] os direitos territoriais dos povos originários, ger[ou] insegurança e foment[ou] conflitos e ataques contra comunidades indígenas em todas as regiões do país”, afirma o documento.
Por que isso importa?
Relatório divulgado pelo Cimi retrata aumento da violência contra povos indígenas no primeiro ano do Marco Temporal;
Vigência da tese criou ambiente de insegurança jurídica que promove a impunidade à violência contra os povos e seus territórios, diz secretário do Conselho Indigenista.
O Marco Temporal, que considera que só devem ser demarcadas as terras em que havia ocupação por indígenas na data de promulgação da Constituição de 1988, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2023, mas virou lei em dezembro do mesmo ano, depois do Congresso Federal derrubar vetos de Lula.
Contrariando as expectativas, o ministro Gilmar Mendes, relator das ações que questionam a lei, “decidiu não decidir”, aponta a entidade indigenista. Ao invés disso, manteve a vigência do Marco Temporal e estabeleceu uma Câmara de Conciliação, rechaçada por lideranças indígenas e até hoje não concluída.
Para o secretário geral do Cimi, Luis Ventura, a manutenção da tese “representa o maior retrocesso em matéria de direitos indígenas desde a Constituição Federal de 1988”. “O que foi criado em 2024 [com a vigência do Marco Temporal] foi um ambiente de insegurança jurídica absoluta, que além de atrelar os procedimentos de demarcação, acabou acobertando, promovendo, incentivando e garantindo impunidade à violência contra os povos e seus territórios”, afirma.
As tentativas de retomadas de territórios conduzidas por indígenas, destaca a organização, motivaram retaliações, e os povos originários “sofreram violentos ataques em série de fazendeiros e jagunços, com a conivência – e, em muitos casos, a participação direta – de forças policiais”.
“O Cimi espera que o Supremo Tribunal Federal assuma e retome sua missão institucional, que é a de ser guardião da Constituição Federal e, portanto, que declare de forma iminente a inconstitucionalidade da Lei nº 14.701/2023. E que, a partir daí, o Poder Executivo retome sua obrigação constitucional de demarcar e proteger os territórios indígenas. A retomada da democracia passa, necessariamente, pela garantia dos direitos dos povos indígenas”, diz Ventura.
O cenário de violências e violações registrado em 2024, ressalta a organização, foi agravado pela crise climática. Comunidades Kaingang e Guarani Mbya do Rio Grande do Sul estão entre as populações mais atingidas pelos alagamentos e inundações sem precedentes que atingiram o estado em maio do ano passado.
Os indígenas da TI Pekuruty, em Eldorado do Sul, além dos impactos das enchentes, tiveram suas casas e pertences destruídos em uma ação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) enquanto se refugiavam das chuvas. Depois, foram vítimas de ataques de fazendeiros. Em audiência de conciliação, o Dnit concordou em reconstruir as casas, mas o acordo não foi cumprido, de acordo com o relatório.
A crise climática também mostrou as caras nos episódios de secas e queimadas no Pantanal, Cerrado e Amazônia que atingiram populações indígenas.
No Brasil, o principal motor de emissões de gases do efeito estufa, que aceleram a crise climática, é o desmatamento, que tem justamente nas terras indígenas a maior barreira. A nível global, o principal responsável é a queima de combustíveis fósseis – que o Brasil quer explorar na foz do Amazonas. A possibilidade de exploração tem gerado impactos psicológicos aos indígenas da região, segundo o Cimi. “A perspectiva de destruição de seus locais de vida, da invasão das águas por máquinas perfurando leitos de rios e da contaminação iminente causa adoecimento, comprometendo relações sociais, culturais e espirituais”, afirma o relatório.
Casos de violência aumentaram em 2024
Mais uma vez, os estados de Roraima (57), Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33) foram os que mais registraram assassinatos de indígenas. A Bahia, onde morreu Nega Pataxó, teve 23 casos. Em comparação com 2023, a quantidade de assassinatos registrados pelo Cimi ficou praticamente estável. Foram 211 registros no ano passado e 208 no anterior.
Um dos casos destacados pelo relatório é o assassinato do jovem Neri Ramos da Silva, do povo Guarani. O crime ocorreu em setembro de 2024, durante um ataque da Polícia Militar em uma área de retomada na TI Nhanderu Marangatu, em Antônio João (MS).
O território, homologado em 2005 por Lula, teve seu processo demarcatório suspenso por um Mandado de Segurança no STF e desde então estava em disputa, com recorrentes ataques aos indígenas. Após a morte de Neri Ramos, foi feito um acordo de indenização entre o governo estadual e o grupo de fazendeiros que reivindicava a área, com previsão de pagamento de indenização de R$ 146 milhões, entre benfeitorias e terra nua. Depois do acordo, a homologação foi restaurada, em um processo visto com ressalvas pelo Cimi.
Ao todo, o Cimi registrou 37 ataques violentos contra comunidades indígenas em 11 estados do país ao longo de 2024, a maioria com uso de arma de fogo. Ao menos dez pessoas ficaram com projéteis alojadas em seus corpos, sendo nove Avá-Guarani e um Guarani Kaiowá. Duas TIs habitadas por esses povos, a Panambi-Lagoa Rica, no Mato Grosso do Sul e a Tekoha Guasu Guavirá, no Paraná, foram alvos recorrentes de ataques, o que tornou a contagem nessas localidades “praticamente inviável”, segundo a entidade.
Um dos ataques registrados pelo Cimi em uma retomada na TI Panambi-Lagoa Rica teve ao menos 11 indígenas com ferimentos. Um dos atingidos, um jovem Kaiowá de 20 anos que ficou com uma bala alojada na cabeça, foi hostilizado por um policial militar quando buscou atendimento no Hospital da Vida, em Dourados. “Ele disse que o tiro foi errado. Que deveria ter atingido no meio do peito. Que assim matava mais rápido”, relatou ao Intercept Brasil na ocasião.
Em 2024, o Cimi registrou 37 ataques violentos em comunidades indígenas, a maioria com arma de fogo
Em 2024, a entidade registrou 208 suicídios de indígenas, a maior parte deles no Amazonas (75), Mato Grosso do Sul (42) e Roraima (26), e 84 mortes por falta de assistência à saúde, 18 delas no Acre e 16 no Pará.
Além disso, foram 922 mortes de crianças de 0 a 4 anos, quase 500 delas por causas evitáveis. Gripe e pneumonia (103), infecções intestinais, diarreias e gastroenterites (64) e desnutrição (43) foram as principais causas de mortes na infância que poderiam ter sido evitadas por ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequados. A maior parte das mortes na infância registradas pelo Cimi ocorreram no Amazonas, com 274 casos, em Roraima, com 139, e no Mato Grosso, com 127.
O Cimi registrou ainda 20 ameaças de morte, 39 casos de racismo e discriminação étnico-cultural, 31 tentativas de assassinato e 20 casos de violências sexuais contra indígenas, sendo 14 contra crianças e adolescentes, entre outras agressões. Ao todo, os casos de violência contra a pessoa em 2024 foram 424, um aumento de 3% em relação a 2023.
Demarcação avançou timidamente e incêndios dispararam em 2024
De acordo com o levantamento do Cimi, há 857 terras indígenas que ainda não tiveram seu procedimento de demarcação concluído; destas, 555 ainda não tiveram nenhuma providência administrativa tomada.
O governo Lula, que prometeu demarcar todas as TIs até o final do mandato, teve avanços tímidos: foram cinco terras homologadas (uma delas suspensa pelo STF), 11 portarias declaratórias assinadas pelo ministro da Justiça e 16 novos Grupos Técnicos (GTs) para Identificação e Delimitação de Terras Indígenas. Nenhuma TI teve relatório de identificação publicado ao longo do ano.
Segundo a própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP), em resposta a pedidos via LAI registrados pelo Cimi, a “Lei [do Marco Temporal] afeta todos os procedimentos de demarcação que ainda não foram concluídos, ou seja, os procedimentos que ainda não chegaram à fase de Terra Indígena Regularizada”.
O impedimento foi reforçado pelo ministro Ricardo Lewandowski, que afirmou que “a demarcação não pode avançar enquanto o STF não decide quem tem razão: se ele mesmo, ou se essa lei editada pelo Congresso Nacional”.
Além dos 857 casos de terras indígenas que ainda não tem seu território regularizado, o Cimi registrou outros 384 casos classificados como “violências contra o patrimônio”. Foram 154 conflitos relativos a direitos territoriais, que atingiram 114 terras indígenas em 19 estados, dois terços em terras não regularizadas. Também ocorreram 230 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, que afetaram 159 TIs de 21 estados, incluindo áreas com 48 registros de indígenas isolados.
A entidade indigenista ressalta que, mesmo com esforço de desintrusão de invasores por parte do Governo Federal, em contraste com a gestão anterior, as áreas prioritárias não ficaram totalmente livres de invasores, caso das TIs Apyterewa (PA), Karipuna (RO) e Yanomami (AM, RR). Paralelamente a isso, terras indígenas como a Sararé (MT), viram um intenso avanço da devastação garimpeira, como registrou a Públicaem abril.
O relatório também destaca dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre focos de incêndio em terras indígenas já delimitadas. No ano passado, foram mais de 29,6 mil focos, 11% do total registrado no Brasil e mais que o dobro do total de 2023. Na TI Utiariti, no Mato Grosso, 28% dos 412 mil hectares queimaram no ano passado. Na TI Pareci, no mesmo estado, as queimadas atingiram mais de 280 mil hectares.
Os dados do Cimi são colhidos pelas equipes missionárias da entidade ao redor do país e junto a meios de comunicação, organização da sociedade civil e órgãos como o Ministério Público Federal (MPF). Também compiladas a partir de bases de dados públicas, como o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), junto a secretarias estaduais de saúde, à Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (Sesai) e via Lei de Acesso à Informação (LAI).