As operações policiais não são a solução para os problemas de segurança pública brasileiros. Pelo contrário, as autoridades deveriam focar em inteligência e construir “estratégias de segurança pública que estejam à altura dos desafios que a gente enfrenta no Brasil”. É o que conclui o pesquisador Pablo Nunes, para quem a operação policial que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro (RJ) na terça-feira, 28 de outubro, “foi uma tragédia” a partir de “qualquer ângulo que a gente possa adotar” para conceituá-la.
“A gente já faz incursões há 40 anos, pelo menos. E nada, né? Nada. A gente não tem nada que tenha nos dado sinal de que isso tenha funcionado”, afirmou em entrevista à Agência Pública. Para ele, além de não gerar impactos relevantes para o combate à organização criminosa Comando Vermelho, a operação gerou um “desastre humano”, que agrava a desesperança da população, “que vê esses cenários de violência se repetindo sem que haja nenhuma solução para as suas vidas”.
Nunes é doutor em ciência política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), organização que busca produzir pesquisas que alimentem o debate público e contribuam para promover os direitos humanos no sistema de justiça criminal do Brasil.
Pablo Nunes, pesquisador em segurança pública, tecnologia e dados abertos
A Operação Contenção, conduzida pelas polícias militar e civil, mirou o cumprimento de mais de 60 mandados de prisão de integrantes do Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A troca de tiros entre criminosos e a polícia começou logo no início da manhã, e a facção reagiu em diversos pontos da cidade, com queima de ônibus e formação de barricadas. O conflito feriu inocentes e afetou moradores de diversas partes da cidade, com a suspensão de aulas e dos dias de trabalho pela insegurança generalizada.
Na noite de terça-feira, o governo do Rio de Janeiro divulgou que a operação havia deixado 64 mortos, incluindo quatro policiais. Entretanto, durante a madrugada da quarta-feira (29), moradores das áreas afetadas resgataram corpos na Serra da Misericórdia, uma zona de mata, e os expuseram na Praça São Lucas, na Penha. Segundo as testemunhas, foram encontrados 74 corpos, número que contradiz o oficial, de 63, citado em coletiva de imprensa realizada no mesmo dia. Ao todo, o governo confirmou 121 mortes, mas não divulgou quantos dos mandados de prisão que justificaram a operação foram cumpridos.
Ainda não foram publicadas informações que comprovem a ligação individualizada dos mortos com o crime organizado, e nem que mostrem que todas as mortes teriam ocorrido em conflito. O secretário da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Marcelo de Menezes, diz que “a opção pelo confronto se deu pelos marginais” e que “aqueles que quiseram ser presos, foram presos”.
Já os moradores denunciam que os corpos apresentavam marcas de tiro pelas costas e facadas. Taua Brito, mãe de um dos mortos, disse que encontrou o corpo de seu filho com os pulsos amarrados. “Dava tempo de socorrer, a corda mostra que ele estava preso, amarrado em algum lugar. Deixaram meu filho morrer”, afirmou à Folha de S. Paulo.
Dezenas de corpos trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro
Agentes da prefeitura limpam rua onde os corpos da chacina foram levados antes de saírem para o IML
De acordo com o secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, a operação terminou com a apreensão de mais de 90 fuzis e 113 presos. A reportagem pediu à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro a contagem atual de mortos, presos, feridos, e apreensão de armas e drogas, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria. Caso a secretaria se posicione, a matéria será atualizada.
O governador defendeu a ação com “muita tranquilidade”. Na tarde de 28 de outubro, Cláudio Castro se corrigiu após ter afirmado que o governo federal negou oferecer apoio à operação e ser rebatido pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. De acordo com o ministro, ele não recebeu pedido de apoio para a ação.
À TV Globo, o governador disse que sua afirmação foi mal interpretada. Segundo ele, o governo estadual pediu, em outras ocasiões, blindados ao governo federal, mas a Advocacia-Geral da União (AGU) disse que os veículos só poderiam ser cedidos em caso de declaração de ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que não foi feito.
Para Nunes, Castro é parte do problema que aflige a segurança pública no estado. O pesquisador diz que o governador já utilizou operações policiais e mortes para campanhas políticas — ele comandou três das quatro operações policiais mais letais do Rio desde 2007. “Não é novidade que operações de alta letalidade sejam realizadas e utilizadas como estratégia política para mobilizar setores da sociedade que clamam por mais violência”, explicou.
Leia os principais pontos da entrevista:
O que você destaca sobre a Operação Contenção?
Sob qualquer ângulo que a gente possa adotar para conceituar a operação de ontem, a gente chega à mesma conclusão: foi uma tragédia. Foi um erro imenso cometido pelas forças de segurança do estado. Foi um desastre humano, algo que, fundamentalmente, coloca em questão o próprio Estado Democrático de Direito.
Dentro das vítimas, há quatro agentes, então é a operação mais letal também para agentes do estado até o momento. E é um desastre também para a vida da cidade, né? A cidade do Rio de Janeiro simplesmente ficou parada por respostas violentas que o Comando Vermelho desfechou na cidade, fechando vias e causando terror em diferentes bairros. Há também uma certa desesperança da população, que vê esses cenários de violência se repetindo sem que haja nenhuma solução para as suas vidas.
Há também um desastre político. A gente chega em 2025 com um total descontrole das agências policiais do estado. O governo do Rio de Janeiro perdeu há muito tempo a sua legitimidade e autoridade frente às polícias. É muito refém de pressões políticas vindas da Assembleia Legislativa, o que nos traz a esse contexto de total falta de uma autoridade que realmente consiga produzir um projeto, uma direção, um plano de segurança pública.
É lamentável o que aconteceu. Eu acho que a gente realmente atravessou uma linha, a gente está em outro patamar, e que vai ter impactos significativos para o Rio de Janeiro.
O que seria recompor essa autoridade política?
Já tem tempo que o governo do Rio de Janeiro não tem um plano para a segurança pública. Desde o caso das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], um programa que teve todos os seus limites e problemas, mas que havia um plano, um direcionamento para que a gente pudesse questionar e até ser contrário a essa direção. Havia um projeto estruturado em que as forças do Estado se direcionavam para não só cumprir o plano, mas também observar os resultados e acompanhar os seus efeitos.
De lá para cá, o Rio de Janeiro teve uma sucessiva mudança de governos que não conseguiram produzir nada significativo na segurança pública. Foi se abandonando cada vez mais a ideia de uma política estruturada, integrada, baseada em metas e objetivos, e [se criando] uma política em que o empoderamento e autonomia das forças policiais foram dados como uma chave para lidar com esse tipo de problemas.
Isso encontra um cenário final no governo Witzel, em que há a dissolução da Secretaria de Segurança Pública e a elevação das chefias das polícias ao status de secretarias com autonomia. Isso trouxe uma série de prejuízos para a integração entre as forças policiais. Foi um tiro no pé esse processo. [O governador Cláudio Castro recriou a Secretaria de Segurança Pública em novembro de 2023]
Hoje, a autoridade política está totalmente questionada por uma série de escândalos. O Rio de Janeiro está convivendo já há muito tempo com diversos dos seus governadores e ex-governadores, sendo não só processados, condenados, muitos deles presos. São processos sucessivos que parecem não encontrar um resultado ou uma solução, pelo menos no curto e médio prazo. O Wilson Witzel tem o impeachment, tem todas as denúncias de corrupção. E o Cláudio Castro, por mais que ele tenha sido reeleito, há muitos questionamentos sobre possíveis casos de corrupção. Há uma falência dessa elite política.
Em entrevistas, o governador Cláudio Castro defendeu que a operação foi bem-sucedida. Existe uma percepção de que a letalidade da operação está ligada à sua eficácia, que a operação foi um sucesso não apesar das mortes, mas em razão delas. Como o senhor vê isso?
Nenhum parâmetro, seja nacional ou internacional, dá a possibilidade de nomear uma operação com o tamanho e a letalidade dessa como um sucesso. Até se a gente adotar o parâmetro mais conservador e mais alinhado às forças policiais, uma operação que deixa quatro policiais mortos e uma série de feridos não pode ser compreendida como uma operação de sucesso.
E, obviamente, do ponto de vista alinhado à defesa dos direitos humanos e ao Estado Democrático de Direito, não é razoável que aquela pilha de corpos que foi formada na Praça São Lucas possa ser enquadrada como um sucesso.
É o que o Rio de Janeiro tem feito há décadas, com incursões policiais em favelas, com muitos mortos, muitos tiros, fechamento de escolas, de postos de saúde. Áreas da cidade ficam completamente paralisadas por conta das operações, e o que que tem acontecido? As facções têm cada vez mais se fortalecido, têm expandido o domínio. Então, a gente não pode ser inocente de imaginar que na semana que vem vai ter uma redução do domínio do Comando Vermelho, seja no Complexo do Alemão, na Penha, seja em outras áreas da cidade. Muito pelo contrário. Na verdade, a gente está contratando novos problemas que chegarão em um curto espaço de tempo.
Protesto contra a operação policial que deixou mais de 119 pessoas mortas no Complexo da Penha, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Estado
Protesto contra a operação policial que deixou mais de 119 pessoas mortas no Complexo da Penha, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Estado
E como a gente deveria combater o crime organizado? Quais são os caminhos para fazer esse enfrentamento sem gerar uma chacina como essa?
O problema do crime organizado no Rio de Janeiro, das facções e toda essa violência urbana, está sendo cozinhado há décadas. É preciso entender a dimensão desse problema, e é necessário que as respostas a esse problema sejam tão grandes quanto a estatura do problema. É muito ilusório imaginar que uma incursão de um dia numa favela localizada na zona norte do Rio de Janeiro vai responder a uma cadeia do crime organizado que não está apenas nas favelas, está em diferentes espaços.
Tem aquele grupo de meninos que estão no varejo do tráfico de drogas. Eles só estão ali sustentados por toda uma cadeia que está por trás, que é uma cadeia que mantém o poder financeiro, o dinheiro circulando, e fluxos de armamentos e munições que chegam a esses territórios. E uma certa elite política que tem interfaces com esses grupos também, como a gente sabe no caso das milícias, talvez o caso mais expressivo dessa relação muito próxima entre poder político e criminalidade.
É uma cadeia que implica em muitos elos e grande parte desses elos, que são os mais fortes, e que sustentam essa cadeia, não estão nas favelas. Então é preciso pensar para além de incursões. As incursões não dão certo, não têm dado certo.
Recentemente a teve a Operação Carbono Oculto, que foi uma prova do que pode ser feito no combate ao crime organizado de uma maneira mais inteligente, sem violência e focando na face monetária que mantém essas organizações reproduzindo o seu modo de violência. Foi uma operação gigantesca, que envolveu muitos agentes e investigações de fôlego. [Eles] colocaram e desnudaram os esquemas financeiros que mantêm o PCC. [Miraram no] dinheiro que iria significar mais compras de armamentos e munições, sem que, contudo, tivesse um disparo de arma de fogo. A gente precisa ver mais disso no Rio de Janeiro.
A gente já faz incursões há 40 anos, pelo menos. E nada, né? Nada. A gente não tem nada que tenha nos dado sinal de que isso tenha funcionado.
O governo tem divulgado dados, como a apreensão de mais de armas, como uma das formas de justificar a operação. Como o senhor vê isso?
É bom lembrar isso. O governo tem comemorado um dos “sucessos”, que foi a apreensão de quase 100 fuzis. Na época da prisão do Ronnie Lessa foram encontrados mais de 100 fuzis, sem o disparo também de uma arma.
Essas grandes apreensões de fuzis acontecem em aeroportos, portos e grandes rodovias, sem nenhum tipo de violência envolvida. Por que a gente continua não investindo nesse tipo de operação, que produz um baque real ao tráfico, sufocando esses fluxos que mantêm esses territórios com muitos armamentos? Tem muitas outras estratégias.
A operação repercutiu bastante no Congresso Nacional hoje, com parlamentares inclusive pedindo rodadas de aplausos em comemoração às mortes. De que forma uma operação como essa vira uma estratégia política para determinados grupos?
Não é novidade que operações de alta letalidade sejam realizadas e utilizadas como estratégia política para mobilizar setores da sociedade que clamam por mais violência. Esse apelo existe na população. Há setores que acreditam que essa é uma resposta eficiente. E, principalmente, tem alguns outros setores que não veem mortes sendo cometidas como uma resposta, mas querem ver alguma coisa sendo feita na área de segurança pública e acham que essas operações acabam sendo essas respostas.
Há um contexto no Rio de Janeiro em que essa ideia de, como eles chamam, “neutralizar” pessoas durante as operações, significa um avanço na segurança pública. Produzir esses corpos vira uma resposta, um apaziguamento, pelo menos, para os medos e os anseios da população que muitas vezes se vê cercada, com medo da violência urbana. Não é surpreendente que essa operação esteja sendo tão politizada por parte desses setores políticos, porque é isso que tem sido feito.
Como isso se relaciona com o governador do Rio, visto que ano que vem é um ano eleitoral?
[O uso político das mortes e das operações policiais] já foi feito muitas vezes pelo Cláudio Castro. Normalmente, o que a gente vê são grandes operações que ocorrem nos anos eleitorais com uma forma de “mostrar serviço”, entre muitas aspas, por parte do governo do estado. Mas, dessa vez, isso acabou sendo antecipado pelo governador do Rio de Janeiro. Sem sombra de dúvidas, tem um ativo eleitoral que ainda vai ser muito mobilizado e explorado pelos setores bolsonaristas.
Por fim, o senhor avalia que a PEC da Segurança Pública, que tem sido proposta pelo governo federal, pode ser um caminho para criar soluções de segurança pública a partir de outras perspectivas?
Eu acho que a PEC é insuficiente para os problemas que o Brasil tem, mas a PEC acerta em um diagnóstico consolidado na área, de estudiosos de segurança pública, que é a falta total de cooperação entre os entes federativos em relação à segurança pública.
O desenho constitucional de 88 não dá mais conta do grave momento de segurança pública que o Brasil enfrenta. É preciso repensar o papel dos municípios, e muito fundamentalmente, pensar o papel do governo federal frente à segurança pública. O que ocorre é que, por mais que essa PEC seja importante para abrir esse debate e ter uma proposta a se debater sobre isso, boa parte dos governadores de direita, inclusive o Cláudio Castro, se colocaram contra, fizeram pressão para que a PEC fosse rejeitada.
Agora, chama a atenção que Cláudio Castro vá à TV cobrar por participação do governo federal, justamente uma das tentativas que a PEC busca responder. É preciso haver diálogo sobre como essa repactuação da segurança pública vai ser feita, para que a gente não fortaleça estratégias que já vêm se mostrando falidas. E, [se] busque estratégias de segurança pública que estejam à altura dos desafios que a gente enfrenta no Brasil como um todo hoje.