Arrumador de alma

Estava na cara que ia acontecer, e aconteceu. A fechadura vinha avisando, cada dia era mais difícil entrar em casa, até que no sábado passado simplesmente não consegui. Tive que chamar o chaveiro, que chegou depois de meia hora, deu um tranco na porta e ela abriu. E lá se foi toda a grana que me pagaram um dia antes por uma resenha literária. “É caro assim por ser fim de semana?”, perguntei quase com lágrimas nos olhos. “Não, o preço é esse mesmo sempre”, respondeu o rapaz já pronto para ir embora.

Expliquei a ele que ter aberto a porta não era suficiente porque o problema era a fechadura. Se ele não a consertasse, eu não poderia sair de casa — ou melhor, não conseguiria voltar a entrar em casa uma vez que saísse à rua. Ele argumentou que não tinha como trocar a fechadura porque não tinha no carro nenhuma daquele modelo. E, além de tudo, tinha pressa pois já havia outra pessoa à sua espera. 

Chorei as pitangas e consegui convencê-lo a fazer algo para que eu não ficasse o fim de semana preso em casa. Meio a contragosto, o rapaz desmontou a fechadura, desapertou aqui, apertou ali, passou um óleo, rodou a chave algumas vezes, abriu e fechou a porta, e depois decretou que estava arrumada. “Normalmente não faço isso não, viu. Já cobro uma fechadura nova”, afirmou. Juntou rapidamente as ferramentas, apresentou a maquininha do débito com os três dígitos (que ainda me provocavam incredulidade) brilhando no visor, e foi embora ganhar dinheiro em outra freguesia. 

Fechei a porta com cuidado, rodei a chave e comprovei que o problema estava resolvido. Fui até a sacada e vi o rapaz cruzar a rua com a sua caixinha de ferramentas na mão. Caminhei até a cozinha para preparar um café, olhei novamente para a porta e pensei que o contrário nunca aconteceria, aquele homem nunca me ligaria aflito num sábado à tarde para requisitar os meus serviços. Mas bem que poderia. Se vivêssemos num mundo em que a sensibilidade e a beleza ocupassem o lugar que merecem, certamente existiria o ofício do arrumador de almas. Alguém ligava dizendo que precisava de assistência porque tinha sofrido um mal de amor, perdido um ser querido, entrado numa crise existencial terrível ou simplesmente estivesse sentindo uma tristeza profunda e inexplicável, e lá iria o profissional ajudá-lo.

Eu me imagino chegando à casa do chaveiro num sábado, com uns quantos livros e discos na mochila, para lhe curar a alma. “Leia estes poemas do Drummond de Andrade e também estas crônicas do Paulo Mendes Campos. Se não melhorar, consuma este romance de Clarice Lispector, é tiro e queda”, diria eu. “Você também pode escutar estes discos do Tom Jobim a quantidade de vezes que quiser, tenho certeza que sentirá um alívio imediato”, acrescentaria eu, colocando uma mão nos ombros do rapaz enquanto apresentava a conta pelo serviço. “E agora me desculpa, preciso ir porque vou levar um paciente ao museu. Se necessitar outra visita, uma nova dose, pode me ligar a qualquer hora que eu venho”. E, então, após receber um bom dinheiro pelo meu fundamental trabalho, eu cruzaria a cidade na minha caminhonete, feliz da vida, em direção a outra casa para curar outro coração machucado. 

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