A ideia de que nações estariam prejudicando empresas locais ou deveriam contribuir mais com a economia dos Estados Unidos não é uma novidade. Nem para Donald Trump nem para a indústria brasileira. O tarifaço de 50% imposto unilateralmente pelo republicano ao Brasil, em vigor desde 6 de agosto, é, inclusive, inferior à penalização de 100% que parte da indústria nacional enfrentou há quase 40 anos. Mesmo com momentos políticos e econômicos bem distintos, o dispositivo legal usado em ambas as ocasiões foi o mesmo.
Os EUA representam cerca de 4% de todas as exportações brasileiras, ou aproximadamente 2% do PIB (produto interno bruto) do Brasil. Desde 6 de agosto, café, calçados, carne bovina, tecidos e frutas (exceto laranja e seu suco) estão entre os 3,8 mil produtos que passaram a ser alvos do tarifaço de 50%.
Por que isso importa?
Não é a primeira vez que os EUA usam um tarifaço para pressionar o Brasil. Em 1988, as taxas foram ainda maiores, de 100%, incidindo principalmente em produtos eletrônicos;
Para especialistas, a forma como o atual presidente dos EUA, Donald Trump, está usando as taxas é inédita, e se assemelha a uma “chantagem política”.
Apesar do que vem aparecendo, essa não é a totalidade da exportação feita pelo Brasil aos EUA. As cobranças consideram 35,9% das mercadorias exportadas (que representam 44,6% do valor total das vendas). Ou seja, metade do que o país vende aos norte-americanos seguirá a regra dos 10% impostos globalmente pelo governo Trump. Entre os produtos, alguns de alto valor, 694 ficaram de fora da cobrança de 50% determinada pela Casa Branca.
Tanto no fim dos anos 80 quanto em 2025, os EUA recorreram à Seção 301 da legislação comercial regulada pela Lei de Comércio e Tarifas de 1974. O objetivo era redefinir os tratados comerciais com o Brasil. A lei prevê que retaliações comerciais sejam impostas unilateralmente para coibir “práticas comerciais desleais”, de outros países, consideradas prejudiciais aos interesses norte-americanos. A justificativa dos Estados Unidos seria trocar a lógica do livre comércio (free trade) pelo comércio justo (fair trade).
Justo para quem?
A reprise de motivações e gosto duvidosos passou praticamente despercebida na histeria que se formou em torno do suposto cataclisma econômico anunciado diariamente pela imprensa e sofreu um apagão também na academia. Entre 1988 e 1991, empresas de tecnologia, como a Apple e, em especial, a indústria farmacêutica esteve nos bastidores da retaliação ao Brasil. Desta vez, como já mostrou a Agência Pública, as cordas estão sendo puxadas pelas big techs.
O embaixador Régis Arslanian, chefe do departamento de relações internacionais do Ministério Brasileiro das Relações Exteriores, publicou em 1993, para concluir o Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, um estudo de caso sobre o uso da Seção 301. Ele descreve que o dispositivo foi usado para “conter uma tendência de perda da hegemonia econômico-comercial norte-americana. Os EUA passaram a recorrer a mecanismos unilateriais de pressão comercial para defender, em mercados estrangeiros, aqueles setores de produção que podiam significar uma ameaça à sua competitividade externa”. É o estudo dele que norteia o resgate de parte dessa história.
O tarifaço dos anos 80 e lobby, baby, muito lobby
Na base do tarifaço de 100% sofrido pelo Brasil em 1988 estão dois bisavôs brasileiros de nossos notebooks pessoais: o Unitron AP II e MAC-512. Os projetos apresentados pela empresa Unitron Eletrônica à antiga Secretaria Especial de Informática (SEI), entre 1982 e 1985, fez a Apple acionar o governo norte-americano por ações contra o Brasil.
A revolta era justificada: a empresa pedia licença para produzir as máquinas no país, mas os modelos reproduziam os Macintoshes da Apple Computer. Algumas versões adicionavam formas de acentuação que fariam sentido em português, mas não no inglês. Até hoje este é conhecido como um dos primeiros casos de clones da Apple no mundo. E por que a empresa não produzia ela mesma os Macs da época? Por que a Política Nacional de Informática no Brasil proibia a fabricação de computadores estrangeiros justamente para desenvolver a indústria nacional. O mesmo valia para importações.
Era 13 de novembro de 1987 quando Ronald Regan anunciou a primeira retaliação contra o Brasil, justamente de 100%, restrito a produtos de informática. O que foi feito à época? Os Estados Unidos abriram uma investigação contra a prática comercial brasileira e incluiu o país na lista “Special 301” de “observação prioritária”. Soa familiar?
O tarifaço mesmo, no entanto, só se apresentou um ano depois, após a indústria farmacêutica se juntar ao coro. À época, o Brasil era signatário das convenções internacionais que regiam a propriedade intelectual, industrial e de autoria. O “problema”, de fato, era que o país integrava também a lista de nações que não reconheciam patentes para medicamentos – o direito legal de explorar exclusivamente alguma substância descoberta, atualmente estabelecido em 20 anos.
Em 30 de outubro de 1988, as indústrias de papel e celulose, química fina e eletrônicos passaram a sofrer as retaliações americanas. Em sua publicação, Régis Arslanian recuperou a reação do presidente em exercício, o deputado Ulysses Guimarães, após a decisão que chegava a um Brasil poucas dezenas de meses após o fim da ditadura militar: “surpreendente e gratuita agressão contra o Brasil, uma atitude que revela desprezo pelas boas formas de coexistência internacional”. Guimarães ainda expressou, segundo a citação, “preocupação com os efeitos negativos da decisão norte-americana sobre a opinião pública, em um momento em que o país enfrenta sérias dificuldades econômicas, enquanto constrói seu caminho democrático de forma corajosa e independente”. Em 1º de janeiro de 1989, produtos com mentol em sua composição também passaram a ser taxados.
Ronald Regan era presidente dos Estados Unidos em 1988 e também usou a Seção 301 da legislação comercial dos EUA regulada pela Lei de Comércio e Tarifas daquele país
A briga pelas patentes e a decisão de Collor de Melo
A doutora em políticas públicas, estratégias e desenvolvimento, Renata Reis, explica que os medicamentos à época não tinham a patente reconhecida por serem considerados produtos muito essenciais à vida, que poderiam salvar vidas ou tirar alguém de uma fila de transplante, e por isso, respondiam a normas diferentes das que regiam a indústria comum.
“Nós nunca fomos um país pirata, como se dizia. Eram 48 países naquele momento que não reconheciam patentes para medicamentos. […] E havia uma pressão enorme do setor farmacêutico norte-americano para que o Brasil atualizasse a sua legislação de patentes, que era de 1971, e reconhecesse patentes para medicamentos e químicos”, pontua Reis, diretora-executiva da Médicos Sem Fronteiras.
O tarifaço dos anos 80 só foi suspenso após um compromisso público do recém-eleito presidente Fernando Collor de Melo, em 26 de junho de 1990, quando a investigação promovida pelos EUA também foi encerrada, já na era George Bush (o pai).
“Ele [Collor] foi a Washington antes da posse. Isso é um sinal muito claro. Ele foi com a sua ministra da Fazenda [Zélia Cardoso de Mello] para prometer que mudaria a lei de propriedade industrial. Veja o quão relevante é essa legislação! O primeiro governo eleito, pós-ditadura militar, antes da posse, precisou ir aos EUA se comprometer em alterar a lei de patentes do Brasil. Ele volta com esse compromisso e assim foi feito. Ele produziu a primeira versão dessa legislação. Reza a lenda que foi traduzido do inglês”, detalha Renata Reis, sobre o episódio narrado em seu livro Redes Invisíveis, que detalha o lobby na Câmara dos Deputados no que diz respeito à Lei de Propriedade Intelectual brasileira.
Fernando Collor de Mello, ex-presidente do Brasil, foi aos EUA antes da posse reiterar seus compromissos de revisar a Lei de Propriedade Intelectual, uma demanda dos norte-americanos
Cenário interno teve impacto mais significativo na indústria que tarifaço
Após a 2ª Guerra Mundial muitos países lançaram mão do protecionismo. Em outras palavras, governos faziam uso de diversos dispositivos, entre eles impostos elevados, para evitar a atuação de empresas estrangeiras, como uma forma de estimular o desenvolvimento da indústria nacional. Isso funcionou na Alemanha, no Japão, e isso não incomodava os Estados Unidos, que sozinho chegou a responder por 40% do PIB global.
No entanto, na década de 80, os norte-americanos enfrentaram um declínio econômico e o cenário no Brasil era de puro protecionismo – o que envolve desde regras de patentes até, simplesmente, impostos. Para se ter uma ideia, no setor de bebidas as tarifas que o Brasil impunha chegavam a 184% e haviam as chamadas “redundâncias”, em que um mesmo produto poderia ter diferentes taxações somadas.
De acordo com o professor de história econômica da Universidade de São Paulo (USP) Guilherme Grandi, os setores nacionais mais protegidos à época eram, além de bebidas, fumo, borracha, perfumaria, material de transporte, plástico, vestuário e o setor farmacêutico. Uma primeira reforma da estrutura tarifária teve início em 1987 e foi implementada no ano seguinte para diminuir as redundâncias, mas apenas em setembro de 1989 o processo passou a ser efetivo.
“O mundo vai seguir a doutrina do neoliberalismo e economias emergentes passam por esse processo de diminuição generalizada dos níveis tarifários. A mudança da proteção nominal, em si, foi estruturada quanto aos bens intermediários de capital, passando de 32% entre 1990 e 1991 e diminuindo até chegar a 14% em 1994”, explica Grandi.
No meio do caminho, no sentido contrário, de impostos praticados de outros países quanto ao Brasil, houve o tarifaço de 100%. Segundo o doutor em economia e professor da Universidade de Brasília (UnB) Alexandre Andrada, os setores de eletrônico e química foram escolhidos, respectivamente, em razão do protecionismo que privava empresas estadunidenses de um imenso mercado consumidor e pela regulação que não privilegiava os direitos de propriedade e patentes.
“Os Estados Unidos já reclamavam do excesso de protecionismo brasileiro na área de informática havia algum tempo, como também queixavam-se de outra política de viés nacionalista do país, que não permitia a patente de remédios estrangeiros, algo que a indústria farmacêutica americana criticava duramente […] O objetivo era pressionar o Brasil a adotar regras em acordo com a visão de mundo da Casa Branca”, explica.
Na avaliação de Andrada, no entanto, o tarifaço da ocasião, não teve um peso histórico no desenvolvimento dos setores atingidos e o impacto das tarifas teria sido “pontual e relativamente breve”. “Tanto na área de informática quanto na de química fina, o Brasil nunca chegou a se consolidar como grande exportador. O desempenho limitado desses setores está ligado a uma série de fatores internos — como instabilidade econômica, hiperinflação, baixa capacidade de investimento em pesquisa e desenvolvimento e instabilidade regulatória — e não pode ser atribuído de forma significativa ao chamado ‘tarifaço’ imposto pelo governo Reagan. […] Já o setor de papel e celulose conseguiu superar esse choque e ainda hoje somos grandes produtores e exportadores”, pontua.
694 produtos ficam de fora do tarifaço em 2025
Trump muito além do Yes, we can
O ano era 1988. Com uma pele menos alaranjada e cabelos ainda escuros, Donald Trump já fazia discursos inflamados e à vontade com a alcunha de “polêmico”, mas ainda estava longe da Casa Branca. O assunto, no entanto, foi tópico de uma entrevista com a apresentadora Oprah Winfrey, então no segundo ano de seu programa que alcançou uma das maiores audiências da TV dos Estados Unidos, por 25 anos.
Na ocasião, ele dizia não ter intenção de concorrer, mas que provavelmente venceria as eleições, se candidato, com o deboche e a confiança que ainda lhe são característicos. Não apenas os trejeitos do norte-americano resistiram à prova do tempo, mas suas ideias. A entrevista foi desenterrada do cemitério analógico e ganhou novamente os streamings após os anúncios de tarifas contra dezenas de países no primeiro semestre de 2025.
Donald Trump on the Oprah Winfrey show in 1988. He was right about everything. pic.twitter.com/Jm3I58ILzU
O discurso de Trump à época sobre como as empresas dos EUA seriam injustamente prejudicadas e os demais países deveriam pagar para que os norte-americanos vivessem melhor, se assemelha ao que fez em relação ao Brasil, até mesmo no quesito estatísticas chutadas aleatoriamente. No lugar dos videocassetes e carros japoneses, os anúncios de julho de 2025 traziam dados incorretos sobre a balança comercial com o Brasil – que, aliás, só esteve favorável ao nosso lado entre os anos 2000 e 2009.
De acordo com os economistas ouvidos pela Pública, o comportamento do presidente Donald Trump vem caminhando num sentido inédito quanto ao uso da Seção 301 e das imposições de tarifas. Uma espécie de chantagem que encobre questões geopolíticas mais delicadas, que incluem, mas vão muito além do processo envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
“[Trump] está muito insatisfeito com a postura brasileira recente. Ele entende ser um país que está gravitando na órbita chinesa. Os ideólogos do governo Trump veem a China como uma verdadeira ameaça econômica e militar ao seu país, com alguns deles antevendo a possibilidade de conflitos militares diretos e indiretos entre as duas potências. Assim, como qualquer país que seja visto como auxiliar do projeto hegemônico chinês”, avalia o professor da UnB Alexandre Andrada.
“Ainda que Lula e o Itamaraty afirmem que os BRICS não são uma ameaça ou mesmo um substituto à ordem norte-americana, essa não é a visão de muitos analistas estrangeiros, especialmente aqueles ligados ao governo Trump”, complementa.
Os então presidentes de seus respectivos países, Brasil e Estados Unidos, Jair Bolsonaro e Donald Trump se encontraram em Washington em março de 2019
O movimento, no entanto, pode acelerar o estabelecimento de relações comerciais com outros países. “O Canadá, por exemplo, já sinalizou a intenção de estabelecer acordo com o Mercosul. Isso pode envolver também outros países”, lembra o economista da USP Guilherme Grandi.
Para ele, o presidente norte-americano não estaria dando a devida atenção às cadeias de valor ao redor do mundo e desmerecendo os fluxos comerciais que envolvem commodities. Isso coloca em xeque preocupações de produtores de seu próprio país quanto ao acesso à matéria-prima, sem, no entanto, apresentar fundamentações quanto à política praticada. “Essa tem sido uma característica do presidente Trump: ele não se dá muito trabalho de justificar as medidas, que acabam envolvendo outros aspectos que não estão ligados apenas à economia”, afirma.
O professor aposta numa possível elevação da inflação em território norte-americano e acredita que o ajuste natural esperado para o mercado norte-americano configura uma retórica falaciosa. “Na inflação corretiva, os preços aumentam num primeiro momento para depois cederem. Mas nada garante que esse movimento vai ocorrer dessa maneira. O mercado pode se estabilizar num novo patamar de preços, vai depender da capacidade da economia americana de se adaptar a essa nova conjuntura criada”, completa.
Sobre o tarifaço de 50%, já em vigor no Brasil, Grandi afirma que esse recurso nunca foi usado da maneira que vem sendo por Trump. “Elas (as taxas) foram, sim, usadas para proteger o mercado norte-americano, para diminuir custo de produção das empresas. Foram, sim, usadas como uma forma de pressionar rearranjos das trocas internacionais no mundo em relação a algumas cadeias, mas dessa maneira como ele está fazendo? […] Para ameaçar outros países parceiros comerciais importantes, visando garantir outros recursos que não têm necessariamente ligação direta com a questão das tarifas? Ele está usando a proposta tarifária como moeda de troca: ‘se você não ceder isso daqui, se você não aumentar a nossa participação no mercado desse ou desse mineral, ou o acesso àquele outro, a gente vai continuar taxando os seus calçados, a gente vai continuar taxando os seus aviões… isso nunca foi feito’”
Apesar do impacto no mercado interno, para Andrada, o movimento dos Estados Unidos “é, sim, do jogo” e finaliza: “vale a máxima de Theodore Roosevelt: ‘fale suavemente e carregue um grande porrete’. Ou seja, as potências gostam de convencer seus adversários e aliados com a “fala suave”, mas quando isso não funciona, eles usam o ‘porrete’”.