Democracia brasileira sofreu sucessivos golpes sob Bolsonaro, diz Eugênio Bucci

No último domingo (29), a Avenida Paulista, em São Paulo, foi palco de mais um ato que pedia a anistia aos condenados pelos ataques do 8 de janeiro de 2023. O evento, chamado de “Justiça Já” e convocado por Jair Bolsonaro, foi o segundo ato realizado na cidade em resposta ao julgamento da tentativa de golpe de Estado, que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) e tem o ex-presidente entre os réus.

Refletir sobre os anos turbulentos da política brasileira durante o governo Bolsonaro é a proposta do livro Que Não Se Repita – A quase morte da democracia brasileira, do jornalista Eugênio Bucci, lançado agora em 2025 pela editora Seja Breve. No Pauta Pública desta semana, Andrea Dip conversa com o autor, que retoma de maneira reflexiva alguns dos acontecimentos desses anos, diagnosticando quais foram os erros cometidos e como a sociedade democrática precisa se preparar para que não ocorra novamente e, principalmente, que não haja impunidade contra um Estado democrático de direitos.

Para Bucci, a diversidade ideológica faz parte de uma sociedade democrática, mas não a qualquer custo, como defendem os discursos extremistas. “Não há nenhum problema na existência de propostas de direita, em defesa do mercado, da propriedade privada ou um tensionamento com relação à regulação, isso é até necessário para o debate público.” Afirma, mas acrescenta: “Estamos lidando com projetos cuja intenção declarada é desorganizar, desarticular e destruir o ordenamento democrático […] vislumbra um crescimento do capital que, na visão deles, precisa atropelar uma sociedade que assegure direitos e isso não é aceitável no universo da democracia.”

Leia os principais pontos da entrevista e ouça o episódio completo abaixo.

EP 175
A quase morte da democracia brasileira – com Eugênio Bucci


Jornalista analisa movimentos anti-democráticos em livro que retoma trajetória golpista do governo Bolsonaro

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No início da sua obra Que Não Se Repita – A quase morte da democracia brasileira, você faz um convite à memória imediata, para pensarmos sobre o que foi o governo Bolsonaro. Qual a importância deste livro da memória em tempos dessa tentativa constante de revisionismo histórico que vivemos hoje?

No Brasil, mas de uma forma um pouco mais abrangente no mundo todo, tem sido solicitado e com muita insistência para seguir uma existência em que só existe o presente. É uma espécie de presente totalizante. Isso já foi diagnosticado em diferentes estudos, como o do Marc Augé, um francês que se formou em torno da antropologia, que elaborou um conjunto de ideias interessantes sobre o não-lugar ou o lugar de passagem, um lugar que não é histórico, um lugar que não é identitário. É como estar permanentemente em trânsito. Ao mesmo tempo, esse estado de estar em trânsito, ele empurra o futuro para muito longe e esconde o passado. É como se vivêssemos num presente ampliado, expandido e, ao mesmo tempo, sufocante.

Isso é muito interessante como um traço da cultura porque explica, em boa medida, por que as nossas sociedades têm tantas dificuldades em aprender com o passado, em aprender com a experiência, em elaborar coletivamente, por meio de entendimentos, de diálogos, de divergências. Essa situação aparece agora no Brasil quando a gente muito rapidamente esqueceu o que foi, o que representou o período em que o ex-capitão esteve à frente da presidência da República entre 2019 e 2022.

Durante esses quatro anos se tentou reiteradamente e até de uma forma um pouco desinibida, não disfarçada, minar as bases da democracia no Brasil. E, com este livro, procuro lembrar alguns desses momentos com uma certa contextualização, procurando retomar o que houve naqueles dias para que a gente não repita esse erro como sociedade. Existe um risco muito grande de que esse erro seja repetido.

Recentemente, tivemos o caso de um governador [Romeu Zema, do Partido Novo de Minas Gerais] que disse que se houve ou não ditadura no Brasil durante o período militar é uma questão de interpretação. Isso é muito assustador, porque essa fala exprime com muita nitidez esse estado de viver num trânsito e, ao mesmo tempo, num presente expandido que não consegue se lembrar do passado. Porque a ditadura no Brasil não é uma questão de interpretação, isso é uma questão de fato histórico e essa fala nos coloca como uma sociedade incapaz de diferenciar o juízo de fato do juízo de valor, onde entra a interpretação e a opinião com base nos fatos. Colocar em dúvida um fato histórico é algo muito sério.

Temos visto também a extrema direita ganhando cada vez mais espaço no mundo, como pessoas, inclusive jovens, elegendo governos ultraconservadores, racistas e xenófobos, como no caso do Trump e do crescimento da popularidade do partido extremista da Alemanha, o AfD (Alternativa para a Alemanha). Como você avalia esse momento que estamos vivendo?

Eu tenho tentado dedicar alguma atenção para esse tipo de coisa, porque isso tem uma relação muito direta com o comportamento dos meios de comunicação e do ambiente comunicacional. Isso tem a ver com as plataformas sociais, tem a ver com a maneira como a desinformação vai triunfando. É indissociável o sucesso das propostas da extrema direita, do sucesso das técnicas pelas quais a desinformação está triunfando. Uma coisa é produto da outra.

Durante um tempo, houve uma certa jogada de aparência pela qual o Facebook e outras plataformas diziam que apenas abriam canais para que as pessoas se comunicassem. Com a eleição de Donald Trump, pela segunda vez, conduzida à Casa Branca, nos Estados Unidos, vários desses mega-empresários desse campo das big techs saíram do armário. Desceram do muro e assumiram abertamente em falas, em discursos, em pronunciamentos que não deixam dúvidas, que estão ao lado de Donald Trump. Aquilo que existia de uma concessão, ainda que hipócrita, das boas maneiras das repúblicas democráticas, caiu por terra.

Mark Zuckerberg, dona da Meta, Facebook, Instagram, é também do WhatsApp, falou num pronunciamento amplamente difundido pelos próprios meios da sua organização que é preciso combater a regulação, que eles chamam de censura. Sendo que a regulação das big techs é uma tarefa necessária para as democracias do mundo todo. Também temos um temos outro barão das big techs, Elon Musk, prestando reverências ao Trump, partidarizando toda a ação empresarial das big techs e filiando essa ação empresarial à causa da extrema direita antidemocrática. Então eu vejo uma associação necessária e indisfarçável entre o ambiente da comunicação que nos levou à desinformação e o crescimento ou recrudescimento dessas propostas antidemocráticas com viés de extrema direita e os seus líderes.

Não há nenhum problema, para uma sociedade democrática, a existência de propostas de direita, em defesa do mercado, da propriedade privada ou do tensionamento com relação à regulação. Tudo isso faz parte do nosso universo de debate público. Não existe nenhum inconveniente nesse tipo de coisa, mas agora nós estamos lidando não com projetos de direita, mas com projetos extremistas, uns chamam de radicais, projetos que são antidemocráticos, cuja função e cuja intenção declarada é desorganizar, desarticular e destruir o ordenamento democrático. Um ordenamento que gera direitos, constrói direitos e amplia direitos. Essa extrema direita antidemocrática vislumbra um crescimento do capital que, na visão deles, precisa atropelar uma sociedade que assegure direitos.

Então, vem junto com essa proposta a concepção de que não vai ter comida para todo mundo mesmo, não vai ter conforto para todo mundo mesmo, que parcelas expressivas da população terão que ser descartadas, terão que ser jogadas no lixo, que a dignidade humana não pode ser obstáculo para a acumulação de capital e assim por diante. Isso não é democrático, isso não é aceitável no universo da democracia. Por isso que eu procuro fazer essa distinção. Nada contra uma proposta que a gente chamaria classicamente de direita, de conservadora, nada contra o liberalismo econômico, mas tudo contra a tentativa organizada de solapar os fundamentos da sociedade democrática. E é isso que vem acontecendo.

Ano que vem a gente tem eleições no Brasil. Você acha que, com o Bolsonaro inelegível, a extrema direita, essa extrema direita antidemocrática perde força ou o bolsonarismo está consolidado para além de Jair Bolsonaro?

Eu sou um estudioso da comunicação social, da informação e um observador da cultura. Nesse sentido, eu posso dizer que tenho tido contato com certos sinais que mostram que a sanha da extrema direita antidemocrática não está superada. Eu posso dar um dos indícios, nós vemos que a informação não é suficiente para resolver o monstro da desinformação. Por mais que sejam franqueados os acessos à informação e à verdade factual, conhecida, verificada, testada mil vezes, a fúria da desinformação não arrefece. E isso mostra que há pulsões não resolvidas e não canalizadas para uma esfera pública democrática. Podemos identificar aí ressentimento, que é algo que também escapa do meu campo de estudo.

Mas o fato é que essa fúria permanece e ela está um pouco à espera de um novo aventureiro que venha aí e comece a acenar para essa fúria com sinais de que vai acabar com a elite da política e tudo mais, e isso tem dado resultados. Então eu vejo o ano de 2026 com enorme preocupação. Há um esgotamento parcial, provavelmente, da representatividade do Estado Democrático de Direito. Vamos ver como isso poderá ou não ser capitalizado por alguma liderança aventureira. É possível, mas vamos ver.

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