Mais de dois meses após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando que os habitantes da fazenda Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto (GO), tenham suas casas de volta, as famílias da região ainda sofrem sem poder morar debaixo do próprio teto. Isso porque integrantes da família Caiado que retiraram os moradores dos imóveis continuam a ocupar o local.
O Metrópoles acompanha o imbróglio envolvendo a Antinha de Baixo desde o início. Como noticiado anteriormente, a família Caiado havia obtido decisão favorável por parte do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) e conseguiu desocupar 32 casas na região. Depois, porém, a Justiça Federal interveio sob a justificativa de que a Antinha é território quilombola, e o STF barrou a primeira decisão.
A ordem judicial mais recente no processo, do ministro Edson Fachin, cassou a medida que dava as terras aos Caiado. O magistrado levou em conta o autorreconhecimento dos moradores de que a Antinha de Baixo foi habitada, no passado, por pessoas escravizadas. Partindo desse pressuposto, particularizar uma região quilombola, para Fachin, “pode causar prejuízos irreversíveis” à identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação àquele espaço, conforme estabelece o Decreto 4.887/2003.
O Metrópoles visitou a região na última semana e constatou que as famílias não conseguiram voltar para as casas que haviam sido derrubadas. Um imóvel que foi utilizado por funcionários dos Caiado durante as desocupações segue funcionando como uma espécie de quartel-general, abrigando pessoas ligadas à família dos políticos. Lá, é possível ver tratores, carros, esferas de arame e roupas usadas por quem “tomou” a residência.
Na mesma casa, há uma placa com os dizeres: “Sítio Macaúba: espólio de Maria Paulina, propriedade particular. Não entre!”. Já falecida, Maria Paulina Boss é tia do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil).
A reportagem também constatou que alguns trechos da Antinha de Baixo estão arados e que há quilos de materiais semelhantes a calcário e sulfato de amônio espalhados pelas ruas. De acordo com moradores ouvidos em condição de anonimato, o objetivo seria plantar capim para um possível manejo de gado.
Confira:
Trator que seria de funcionários dos Caiado está estacionado em casa tomada pela família
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A casa, que era de uma mulher que cuidava da mãe idosa, hoje é ocupada por funcionários dos políticos
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Metrópoles localizou trator, carro, roupas no varal e bolas de arame na residência
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Os itens são dos novos ocupantes; casa funciona como um quartel-general dos Caiado, segundo moradores
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Na cerca da residência, há uma placa que denomina o local como “Sítio Macaúba” e que determina: “Espólio de Maria Paulina, propriedade particular. Não entre!”
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Outra placa instalada na casa que virou QG
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Além disso, há carregamentos de calcário e sulfato de amônio espalhados pela região
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Objetivo seria arar a terra para o manejo de gado, dizem moradores
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Os moradores que tiveram casas derrubadas nunca conseguiram recuperar os imóveis
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Sobrado destruído a mando dos Caiado
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Casa que virou QG dos Caiado, na Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto (GO)
Breno Esaki/Metrópoles (@BrenoEsakiFoto)
Entenda a batalha judicial entre os Caiado e as famílias da Antinha de Baixo
- O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) havia declarado, em decisão proferida na década de 1990, que três pessoas seriam herdeiras das terras da Antinha de Baixo. Os herdeiros são Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss. Essa última, já falecida, é tia do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil).
- Em 28 de julho deste ano, a juíza Ailime Virgínia Martins, da 1ª Vara Cível da comarca de Santo Antônio do Descoberto, ordenou que tal decisão do TJGO fosse cumprida e expediu mandado de desocupação compulsória de 32 imóveis da Antinha.
- A medida desapropriava os atuais moradores e dava posse das terras aos três herdeiros supracitados (Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss). Como esses dois últimos já faleceram, os herdeiros deles são os reais beneficiados com a decisão.
- Um dos herdeiros de Maria Paulina Boss é o desembargador Breno Caiado, primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, como citado anteriormente. Breno atuou como advogado no processo até 2023.
- Outro herdeiro é o empresário Murilo Caiado, irmão de Breno e primo de Ronaldo. Murilo esteve na Antinha de Baixo acompanhando as desocupações.
- Até que, em 5 de agosto, dias após o Metrópoles noticiar o caso, os moradores da região tiveram três decisões judiciais de âmbito federal favoráveis: o STF, a Justiça Federal de Anápolis e o próprio TJGO determinaram a suspensão das derrubadas para que se apure a autodeclaração da população que diz que a Antinha de Baixo é uma região quilombola.
- A determinação do STF tornou a Justiça Federal competente pela comunidade Antinha de Baixo. Assim, o TJGO perdeu autonomia para emitir novas ordens de despejo para outras casas.
- A decisão do Supremo não invalidava as medidas anteriores e, por isso, as 32 casas desocupadas após medida do TJGO seguiram sob posse dos herdeiros da família Caiado até a decisão assinada pelo ministro Fachin e divulgada nessa quarta-feira (24/9).
- A decisão mais recente, portanto, retira os herdeiros Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss da região e dá de volta a totalidade das terras aos antigos moradores da Antinha de Baixo.
- A entrega do caso à Justiça Federal vem após o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pedir à Advocacia-Geral da União (AGU) para atuar no processo como assistente. O pedido do Incra ocorreu após os moradores da Antinha de Baixo declararem ao órgão que aquela região foi ocupada por comunidade tradicional quilombola há cerca de 400 anos.
- Caso fique comprovado que a região foi habitada por cidadãos escravizados em séculos passados, cabe somente à Justiça Federal definições jurídicas sobre a área, como estabeleceu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2014. Mesmo antes dessa comprovação, as decisões recentes do STF consideram que a autodeclaração por si só é motivo suficiente para preservação da área e de seus moradores.
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Coação
Uma das moradoras que tiveram a casa derrubada é a agricultora familiar Katleen Katarine Silva, 38 anos. Ela conta que tentou voltar ao local após a decisão do STF, mas um caseiro teria a impedido.
“No dia em que saiu a decisão do STF, eu fui lá, parei o carro na porta e entrei. Imediatamente, veio um caseiro da casa onde funcionários do Caiado estão hospedados e pediu para que eu me retirasse”, conta. “Eu me retirei e nunca mais voltei”, explica Katleen.
Perder a própria casa causou danos à saúde da agricultora familiar. “Depois do acontecido eu não consegui mais trabalhar, vivo à base de remédios, moro de favor em uma chácara”, comenta. “Agora, na época das chuvas, vejo a chuva cair e imagino que eu poderia estar na minha terra, plantando o que é meu, e hoje estou sem teto. É muito triste, desesperador”, lamenta.
“Eles não saem das nossas casas, não dão espaço nem para que a gente faça um barraco de lona que seja. Não entendo por que eles continuam ali mesmo com a decisão judicial.”
Outro lado
Em nota, a defesa do espólio de Maria Paulina Boss afirma que a decisão do TJGO que deu aos herdeiros de Paulina o direito às terras “nunca foi revogada ou cassada”. “O que houve apenas foi a remessa de ofício, dos autos à Justiça Federal, onde foi determinado o congelamento do que já havia sido cumprido”, alega.
“A Reclamação Constitucional, em trâmite no STF, teve uma decisão monocrática que apenas determinou a manutenção da competência temporária na Justiça Federal, por suposta alegação de existência de terra quilombola”, cita o advogado Eduardo Caiado, que defende o espólio.
O advogado diz também que “o espólio de Maria Paulina Boss já tem posse de parte de sua gleba há mais de 50 anos, onde sempre imprimiu a função social da terra”.
Leia a nota na íntegra:
A decisão judicial proferida ainda pela 1ª Vara Cível da Comarca de Santo Antônio do Descoberto, que determinou a imissão dos proprietários na posse de suas glebas, nunca foi revogada ou cassada.
O que houve apenas foi a remessa, de ofício, dos autos à Justiça Federal, onde foi determinado o congelamento do que já havia sido cumprido.
A Reclamação Constitucional, em trâmite no STF, teve uma decisão monocrática que apenas determinou a manutenção da competência temporária na Justiça Federal, por suposta alegação de existência de terra quilombola. Desta decisão, os proprietários interpuseram o recurso de agravo regimental e aguardam julgamento.
Vale destacar que, dos 3 proprietários acima mencionados, o Espólio de Maria Paulina Boss já tem posse de parte de sua gleba há mais de 50 anos, onde sempre imprimiu a função social da terra.
No mais, cumpre pontuar que estes ocupantes buscam novamente fazer o parcelamento indevido do imóvel rural e alimentar a especulação imobiliária, abaixo do módulo rural mínimo, o que vai de encontro a lei de parcelamento do solo urbano.
Por fim, a tentativa destes ocupantes de voltar a supostas áreas ditas particulares dentro do imóvel vai contra a tese levantada por último de um suposto remanescente de área quilombola no local, onde este instituto jurídico apregoa a formalização de uma área de propriedade coletiva e indivisa, mediante prévia e justa indenização, e não uma área particular e divisível.
