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A palavra “soberania” está na moda. Ela tem sido alvo de propagandas do governo Lula, tem estampado editoriais e artigos de opinião e virado o centro das perspectivas eleitorais desde que o governo de Donald Trump decidiu penalizar o Brasil por investigar e processar a tentativa de Golpe de Estado de 8 de Janeiro – seja com tarifas de 50%, seja com a Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes e sua esposa. Do lado de cá, o que tem melhorado a popularidade de Lula são recados de que ninguém pode interferir no nosso judiciário, saudações ao PIX e ameaças de que o Brasil vai retaliar.
Para mim, que há anos investigo a influência dos EUA no nosso continente, é impossível ver esse novo capítulo de interferência descarada como um episódio isolado nas relações bilaterais. Verdade seja dita, o governo americano nunca viu com bons olhos a aspiração do governo Lula – desde o primeiro mandato – de ampliar as relações sul-sul e transformar o Brasil em uma potência mundial. Isso era verdade nos governos democratas de Obama e de Biden, e é verdade absoluta agora.
Mas mais do que isso, a chave para entender esse embate atual – inclusive a postura altiva do governo Lula – está na participação decisiva que o governo americano, por meio do Departamento de Justiça, teve na Lava Jato. Durante os 580 dias que Lula ficou na cadeia, e nos anos seguintes, o presidente nunca escondeu sua desconfiança de que foram os EUA que gestaram a Lava Jato, ou pelo menos a instrumentalizaram para quebrar o monopólio da Petrobrás no pré-sal e acabar com a predominância da esquerda no poder – que se alia à uma visão de independência em relação aos EUA. Isso é uma certeza para Lula e para seu entorno próximo, para aqueles que, hoje, dirigem o Brasil.
A resposta às ameaças de Trump é informada por essa certeza.
Sob essa perspectiva, estamos vivendo apenas uma nova etapa de uma longa história de interferências mais ou menos violentas, que incluiu o apoio e financiamento ao golpe de 64, a estruturação da tortura no cone sul, a instrumentalização da guerra às drogas, a cooptação da Polícia Federal (PF) nos anos 90, e o fomento à Lava Jato como instrumento de desorganização da ordem institucional e derrocada do domínio petista.
Mas descobrir o que de fato aconteceu nos meandros da Lava Jato, e até onde vão as pegadas do FBI e do governo americano, não é nada fácil.
No último ano, me dediquei ao lado das repórteres Alice Maciel e Amanda Audi a tentar buscar as pistas soltas que ajudam a entender até que ponto foi a influência dos americanos na Lava Jato. Nos debruçamos sobre a nebulosa história do início da operação, que inclui doleiros espalhados pelo país, mas também dois inquéritos da PF concomitantes – um deles, sobre um esquema internacional de tráfico de drogas. Buscamos entender os fundamentos da participação dos procuradores americanos e agentes do FBI em solo brasileiro, soubemos detalhes de como foram feitos os interrogatórios nas dependências do MPF aqui no Brasil, conduzidos por agentes americanos.
Mas talvez o processo mais difícil e demorado tenha sido buscar os rastros daqueles que atuaram nessa investigação – os agentes do FBI e procuradores americanos. Tive que esperar meses e percorrer os EUA de Leste a Oeste para poder convencer alguns desses agentes americanos a falar conosco. Me lembro de uma noite particularmente angustiante, quando estava perdida na cidade de Mount Dora, uma espécie de balneário infestado de crocodilos na Flórida, aguardando uma entrevista com uma agente que poderia – ou não – acontecer na manhã seguinte. Pela televisão, no restaurante do hotel centenário e todo de madeira, casais idosos davam as mãos entre uma apresentação de piano. Na TV, eu via o rosto enorme de Kamala Harris, durante seu discurso aceitando a nomeação para ser candidata do partido democrata nas eleições presidenciais.
Tanta coisa aconteceu. Consegui, afinal, a entrevista com a agente e também com outros que atuaram em nome do Tio Sam em solo brasileiro. São pessoas que conhecem por dentro como opera nossa PF quando trabalha com os americanos, e abriram seu coração sobre o impacto que essa investigação teve nas suas vidas.
O resultado dessa investigação é a áudio série Confidencial: as digitais do FBI na Lava Jato, um original Audible produzido pela Agência Pública que foi lançado na semana passada. Aqui você pode ouvir o primeiro episódio e aqui pode ouvir todos os demais, na plataforma da Audible. Você pode assinar por um mês grátis e ouvir a série. Quero saber sua opinião.
Na nossa busca, levamos muita porta na cara, mas conseguimos, juntando os retalhos de informações, fazer a investigação mais completa sobre essa parceria, que revela um dos capítulos mais fundamentais da nossa história recente.
Com certeza, nossa série em áudio é apenas uma contribuição para a construção de uma história que dê conta de explicar as turbulências políticas que têm assolado o Brasil na última década. Outras pesquisas e revelações virão (aliás, se você tem dicas sobre influência americana, basta me mandar um e-mail ou uma mensagem criptografada).
Mas, aqui na Pública, nós decidimos que não dá para esperar 50 anos para entender as tramas que levaram ao perigoso momento atual de crise na democracia. É preciso ter um jornalismo corajoso para puxar esses fios – antes que seja tarde demais.