Nos últimos meses, as tensões entre Brasil e Estados Unidos se intensificaram com o anúncio do tarifaço de Donald Trump sobre produtos brasileiros. A medida ultrapassou as justificativas econômicas e se destacou com uma tentativa de interferência na política, justiça e práticas comerciais brasileiras, além de buscar influenciar o julgamento de Jair Bolsonaro, preso no dia 4 de agosto, e favorecer as Big Techs. Essa ofensiva é resultado de relações costuradas com a extrema direita norte-americana nos últimos anos pelo deputado licenciado Eduardo Bolsonaro para enfraquecer a democracia brasileira e punir o Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o ministro Alexandre de Moraes, como mostra a cobertura da Pública.
Essas ações se inserem em um cenário de disputa geopolítica, marcado pelo fortalecimento do Brics, encarado por Washington como uma ameaça à hegemonia estadunidense no mundo, e pela liderança brasileira na presidência da COP. As tarifas estabelecidas pelo presidente Donald Trump entraram em vigor nesta quarta (6) e devem afetar 35,9% das mercadorias enviadas ao mercado estadunidense, o que representa 4% das exportações brasileiras, com exceção de quase 700 produtos que ficarão fora do tarifaço. Até agora, o Brasil é o país com o maior percentual de tarifas extras, uma retaliação direta ao processo que o ex-presidente Jair Bolsonaro sofre no STF por tentativa de golpe em 2022. “A forma como o Brasil tratou o ex-presidente Bolsonaro, um líder altamente respeitado em todo o mundo durante seu mandato, inclusive pelos Estados Unidos, é uma vergonha internacional. Este julgamento não deveria estar acontecendo”, escreveu Trump na carta aberta que enviou ao anunciar as sobretaxas.
Assista a entrevista na íntegra:
Durante uma live realizada na última terça-feira (5), o professor e colunista James Green analisou, em conversa com Natalia Viana, diretora-executiva e cofundadora da Agência Pública, as tentativas de interferência dos Estados Unidos na democracia e nas eleições brasileiras de 2026. Segundo Green, as ações do ex-presidente Donald Trump são influenciadas por figuras como Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, influenciador e neto do último presidente da ditadura militar, com apoio de Steve Bannon, ex-estrategista do republicano e aliado da família Bolsonaro. Colunista da Pública desde março deste ano, Green é professor emérito na Brown University e ativista pró-democracia desde os anos 1970, quando começou atuando junto a exilados brasileiros nos Estados Unidos durante a ditadura militar. Ele também é co-coordenador nacional da Rede nos Estados Unidos pela Democracia no Brasil, além de fundador e presidente do Conselho Diretivo do Washington Brazil Office, organização independente que promove cooperação para proteger os direitos humanos e fortalecer a soberania no Brasil.
Na última segunda-feira (4), Alexandre de Moraes decretou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, consequência do “reiterado descumprimento de medidas cautelares”, segundo entendimento do ministro. A decisão ocorreu após Bolsonaro participar por telefone em manifestação contra o STF e a favor de sua anistia no Rio de Janeiro, no último domingo, 3 de agosto, em que instigava ataques ao Supremo e apoio à intervenção estadunidense no Judiciário brasileiro. Com esta decisão, espera-se que haja uma nova retaliação de Trump ao Brasil e um acirramento das tensões entre os dois países. De acordo com Green, a possibilidade é real porque além de instigado pelas articulações conjuntas de Eduardo Bolsonaro, Figueiredo e Bannon, Trump se identifica com o ex-presidente brasileiro, uma vez que também se enxerga como uma figura injustiçada e perseguida pelo governo dos EUA.
Conforme a Públicajá mostrou em várias reportagens, a rede de contatos de Eduardo Bolsonaro com a extrema-direita dos Estados Unidos que resultaram nessas retaliações às decisões da política e Justiça brasileira tem sido construída antes mesmo da eleição de seu pai à presidência. O professor aponta que esses contatos foram feitos através do CPAC, Comitê Nacional de Ação Política Conservadora, do qual Eduardo Bolsonaro tem participado há vários anos. “Inclusive, ano passado, Steve Bannon apresentou ele como futuro presidente do Brasil. Isso já é uma indicação de uma relação muito forte.”, afirma Green.
Ainda, Eduardo Bolsonaro é visto como um projeto de Bannon, segundo análises de Natalia e Green feitas durante a entrevista. O Bannon chegou a apontar Eduardo como peça-chave para colocar em prática na América Latina seu projeto de unir a extrema direita global e derrotar a esquerda. Bannon foi o responsável por cunhar o termo Brazilian Spring (primavera brasileira, em inglês), para tentar associar os atos golpistas realizados após as eleições de 2022 a um movimento democrático de massa, nos moldes da Primavera Árabe.
Dias após o anúncio do tarifaço, Paulo Figueiredo afirmou estar agradecido pelas ações do presidente dos Estados Unidos, que além das sobretaxas, impôs ao ministro Alexandre de Moraes a Lei Magnitsky. De acordo com as apurações da Pública em parceria com a Mother Jones, veículo jornalístico norte-americano, o neto do último presidente da ditadura militar, chamado de “o cérebro” das articulações por Eduardo Bolsonaro, também está ligado a um esquema de fraude bilionária liderado pelo magnata chinês e trumpista Miles Guo. Guo foi colaborador e financiador de Bannon, além de apontado pela Justiça dos EUA como “controlador” da rede social Gettr, que patrocinou eventos em apoio à reeleição de Jair Bolsonaro em 2022.
Entretanto, Green observa uma reação à aliança bolsonarista-trumpista diferente da esperada pela ala da extrema-direita dos dois países, uma vez que as retaliações do presidente dos EUA podem ajudar a fortalecer e organizar a mobilização da esquerda e centro-esquerda no Brasil: “É um desastre [para a extrema-direita] esta proposta que Eduardo Bolsonaro está fazendo. Ele está criando o ressurgimento da popularidade de Lula, um sentimento de nacionalismo, a esquerda, o campo centro-esquerda, abraçou de novo a bandeira. Parece que ninguém está avisando a Trump: ‘olha, isso não vai ajudar você, pelo contrário: vai reforçar Lula, vai reforçar a esquerda, vai reforçar o Brics.”
O brasilianista ressalta ainda que um dos desafios para os meses que se aproximam das eleições de 2026 é a propagação do discurso falacioso de que o Brasil está em meio a um governo ditatorial e sem liberdade de expressão, difundido como forma de minar as mobilizações democráticas. Natalia e Green também destacam a dificuldade de chamar a atenção dos estadunidenses para as interferências dos EUAs no Brasil devido à desinformação da população sobre o que acontece dentro do próprio país, em especial na América Latina, vista ainda com um olhar cheio de estereótipos: “99% das pessoas não pode dizer mais que três coisas corretas sobre o Brasil porque é uma desinformação total.”
Neste cenário, a articulação e mobilização conjunta entre Brasil e Estados Unidos pela democracia dos dois países é estratégica. Segundo Green, os núcleos de mobilização nos Estados Unidos pela democracia brasileira cresceram a partir de 2016, antes do golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As ações realizadas na época movimentaram a comunidade acadêmica e também as pessoas brasileiras radicadas no país. A união desses grupos permitiu a formação de coletivos e grupos de resistência que seguem firmes nos atos em defesa da soberania brasileira. Um exemplo citado por Green na entrevista foi a realização de 55 atos em homenagem à vereadora Marielle Franco, organizados em várias cidades dos Estados Unidos por ocasião do aniversário de seu assassinato. Para ele, o propósito das ações realizadas pelo WBO em parceria com esses núcleos é promover um espaço para que os movimentos sociais populares brasileiros possam articular suas preocupações internacionalmente.
Apesar das tentativas de interferências dos EUA na democracia brasileira, Green reitera que a resistência a essas ofensivas bolsonaristas-trumpistas estão em todos os lugares: “Está na Câmara de Deputados, está no Senado, está no Judiciário, está na mídia, está nas universidades. Essa resistência é constante.” Sobre o futuro das democracias brasileira e estadunidense, Green afirmou que se mantém otimista: “Pela reação [dos estadunidenses] ao [filme] Ainda Estou Aqui, há um sentimento forte da democracia. Tem que trabalhar com isso, [esse sentimento] tem que crescer muito porque nos últimos anos o discurso pró-ditadura, pró-autoritarismo cresceu bastante na população. Eu acho que vai ter uma resistência forte às tentativas de golpe no Brasil e vai ter uma resistência às tentativas de construção de um estado neofascista nos Estados Unidos. Eu sou otimista. Sempre quero ver o lado positivo para poder seguir resistindo.”
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