Jornalistas americanos relatam pressão crescente

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É com muita alegria que compartilho que sou uma das vencedoras do prêmio Maria Moors Cabot 2025, de Universidade de Columbia. É a primeira vez que uma jornalista de um veículo independente do Brasil ganha o Cabot, o prêmio internacional mais antigo do mundo. Ele reconhece as mudanças no jornalismo e a força das redações independentes de fazer jornalismo de excelência. Como fazemos todos os dias aqui na Pública, graças aos nossos apoiadores, como você. Ajude o nosso jornalismo a seguir investigando os poderosos.

Nenhum de nós imaginaria, mas há algumas semanas estive em um encontro fechado onde jornalistas latinoamericanos ouviram como seus colegas dos Estados Unidos estão sofrendo pressões apenas por realizar o seu trabalho. A ideia do encontro, realizado pela Center for Media Integrity in the Americas (CMIA) e a Fundação Gabo, era reunir experiências sobre como a comunidade jornalística dos EUA deve se organizar para resistir ao crescente autoritarismo do governo Trump.

Duas palavras foram as mais ouvidas: “autocensura” e “negação”. Em um país que ainda hoje tem como ideologia fundamental o excepcionalismo – a ideia de ser o melhor e mais livre país do mundo – é difícil mesmo entre jornalistas a aceitação de que aquela democracia está indo para o beleléu.  

Os relatos reunidos pelo CMIA dão conta de um ambiente de medo dentro das redações. Um questionário respondido por 400 jornalistas concluiu que 45% deles disseram já ter se autocensurado alguma vez, enquanto outros 9,1% disseram que se autocensuraram “um pouco”. 

Um produtor de um canal internacional deixou claro que um dos temas mais sensíveis era o genocídio em Gaza. “O tema é abordado de forma indireta”, disse. “Eu tenho que me censurar também. Sei que não posso tocar nesse tema da forma como costumava fazer antes.” 

Dentre as palavras mais usadas pelos respondentes estão “prudência” “cuidado” e “evitar represálias”. 

Outro produtor de uma TV importante relatou como, depois de um processo iniciado por Trump, a pressão tem sido enorme sobre os jornalistas. Foi implantado, inclusive, um sistema de monitoramento: todos os roteiros do seu programa têm que passar por uma revisora. “A direção quer ditar o que podemos cobrir ou não”, disse. “Em todos os meus anos neste programa, nunca havia visto algo assim”. 

Muitos canais de TV e jornais têm sido alvo da cólera de Trump. O mais recente foi o Wall Street Journal, que pertence ao empresário australiano Rupert Murdoch, processado pela bagatela de 20 bilhões de dólares por ter publicado uma carta que Trump teria enviado a Jeffrey Epstein, com o desenho dos seios de uma mulher e referência a “segredos” entre os dois. Antes disso, Trump já processou os canais ABC e CBS, conseguindo acordos milionários. 

Há algumas semanas, Trump anunciou um corte de mais de 1 bilhão de dólares em fundos para os principais canais públicos, como a TV PBS e a Rádio NPR. 

Para os jornalistas presentes, Trump está segundo um “manual anti-imprensa” que já foi adotado muitas vezes por regimes repressivos latino-americanos, sejam de esquerda ou de direita. Ele consiste em travar uma guerra jurídica contra veículos, desmantelar os canais públicos que tinham independência, pedir a cabeça de jornalistas incômodos e atacar permanente e violentamente sua reputação. 

Não há dúvida: Trump quer destruir o jornalismo. 

Infelizmente, como relataram os latinoamericanos presentes, isso é um roteiro muito conhecido. Na Venezuela, muito antes de jornalistas serem encarcerados ou forçados ao exílio, amigos do governo chavista compraram os principais canais de TV e jornais de maneira a impedir qualquer cobertura crítica. Na Nicarágua, o que antes eram ataques apenas à liberdade de imprensa passaram, de maneira mais consistente, a serem ataques à liberdade de expressão. Hoje, ninguém pode retuitar uma postagem de um site crítico ao governo, por exemplo. A repressão tem sido tão pesada que mesmo ONGs e partidos não podem mais falar abertamente. “Isso dificulta muito o jornalismo”, disse um diretor de TV. “Porque é difícil, inclusive, encontrar quem possa ser fonte de informação sem deixá-los em risco.” 

Um dos alvos de Trump foi o Voice of America, canal inicialmente de rádio que serviu muito ao soft power americano durante a Guerra Fria, transmitindo informações para Cuba e outros países que os EUA queriam desestabilizar. 

Nas últimas décadas, o Voice of America havia se tornado uma espécie de BBC, um serviço de informações com reportagens internacionais de fôlego em 50 línguas e um jornalismo mais independente. 

O canal foi fechado por Donald Trump em março. Antes disso, a Casa Branca publicou uma Ordem Executiva anunciado os motivos para a decisão, chamando o serviço de “a voz da América radical”. O crime: além de ter questionado a história dos e-mails vazados de Joe Biden, o canal teria usado expressões como “privilégio branco” e “publicou uma reportagem sobre migrantes trans buscando asilo nos EUA”. 

Um dos maiores correspondentes de guerra brasileiros, Yan Boechat, trabalhava frequentemente como repórter freelancer para o Voice of America antes do fechamento. Segundo ele, a situação dos jornalistas estrangeiros que trabalhavam para o serviço em solo americano é péssima. “Muita gente de países com relação complicada com os Estados Unidos, como a Rússia, Belarus, China, Irã tinham apenas visto de trabalho e terão que voltar”. 

Já os americanos “ficaram desempregados, estão na luta para sobreviver e há alguns que, por questões burocráticas, ainda não foram desligados, mas não trabalham mais”. 

Acho que o que mais dói para muitos de nós foi entender que o tipo de cobertura que a gente fazia tá acabando e que trabalhar num veículo como a VOA era um imenso privilégio por se ter a chance de ir aos lugares mais difíceis e realizar as coberturas mais complicadas no mundo”, diz ele. 

Boechat diz ainda que sempre teve total liberdade para fazer jornalismo de qualidade quando trabalhou por lá.  

“Eu mesmo, quando fiz meu primeiro freela, fiquei morrendo de medo de ser algo só propaganda rasteira. Mas nunca tive isso. Sempre foi jornalismo. Acho que essa foi a razão que moveu Trump a destruí-la com tanta violência”.

Para os jornalistas norte-americanos, seus colegas da América Latina tinham alguns conselhos valiosos. O primeiro, da Venezuela, tem a ver com a importância dos sindicatos para proteger a profissão – algo que não tem tradição nos EUA. “Só sobrevivemos por muito tempo na Venezuela porque existiam os sindicatos”, disse uma repórter. Na Colômbia, durante os anos mais duros da guerra civil, uma jornalista veterana disse que o maior ensinamento foi que “toca a nós defender a democracia, assumir uma linha de combate”. 

É a mesma visão de uma jornalista televisiva mexicana, também preocupada pela situação dos EUA. “Que eles não duvidem: o que está em jogo é a democracia e as liberdades. Tudo isso que se construiu por décadas pode ir-se em um segundo”, alertou. “As liberdades e os direitos fundamentais não estão garantidos nunca”. 

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