Trabalho como jornalista há mais de 20 anos. E sou dado a me meter em encrencas por causa do que escrevo. Minhas reportagens já motivaram a ira de juízes, policiais militares, delegado federal, pastor evangélico, padre, filho de governador e até de um dono de pizzaria que servia de fachada para um bingo clandestino. Todos me processaram. Todos perderam.
Um político conhecido por ser exímio dançarino – sapateia sob aplausos dos donos do poder –, apreciar verbas públicas e divulgar número de celular alheio se candidatou há poucos dias a quebrar minha invencibilidade jurídica. Veremos o que me reserva essa nova contenda, cônscio que estou da justeza dos meus procedimentos.
Confesso que já errei como repórter. Sem maiores prejuízos aos leitores, aos patrões, ou a mim mesmo. Vou descrever abaixo algumas das minhas trapalhadas.
Uma vez fui entrevistar Dona Canô, por ocasião de seu centenário natalício, e ao entrar, devidamente autorizado, no quarto da matriarca dos Veloso, sentei em sua cama. Guardo na memória que Dona Canô não ligou muito para meu equívoco de etiqueta, mas tomei uma sonora bronca do fotógrafo que me acompanhava. A entrevista transcorreu sem maiores sobressaltos.
Outra entrevista se deu sob o signo da tensão. Meu erro consistiu em sentar em cima dos meus óculos, poucas horas antes de fazer perguntas ao presidente Lula, que à época cumpria pena na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Não sou um homem previdente. Não tinha óculos reservas. Sou míope. Diria, um míope com louvor. E nossa audição piora consideravelmente quando ficamos sem nossos acessórios fundamentais. Pensei por um momento em desistir e deixar meu colega Leonardo Sakamoto se virar sozinho com o homem. Recobrei a lucidez e fui quase cego cumprir minha tarefa. Deu tudo certo. Acho.
Minha lista de desacertos é extensa. Já xinguei chefes ignorantes e agentes de Estado preconceituosos (pensando bem, essas atitudes são sempre corretas). Já cheguei atrasado em plantões de fim de semana, o flagelo de quem labuta nas redações.
Minha proverbial falta de pontualidade me colocou em apuros maiores. Certa feita, em uma noite de terça-feira de carnaval, eu rebolava ébrio em Ondina, em vez de me encontrar naquele exato instante com o motorista do jornal na Barra. Minha tarefa no plantão momesco era cobrir o encontro de trios elétricos na Praça Castro Alves, no centro de Salvador, que tradicionalmente fechava a folia no alvorecer da quarta-feira de Cinzas.
Quando me dei conta do meu descuido colossal, corri até o Farol da Barra, no caminho rasguei meu short, que se transformou numa saia, encontrei meu colega puto da vida e, depois de desculpas asmáticas, nos bandeamos para encontrar a estátua do poeta. Chegamos umas três horas depois do horário previsto. A praça estava vazia. Nem sinal de trio. Um policial militar vagava solitário. Me aproximei dele e disse: “Senhor PM, estou sujo, bêbado e atrasado, mas sou repórter! Rolou o encontro de trios?” Diante da sua negativa, dancei em comemoração. Uma tradição soteropolitana se quebrava, mas meu emprego estava garantido. Era só escrever sobre o encontro que não houve.
Quando cobri um fenômeno de mortandade de peixes na Baía de Todos os Santos, não entendi as instruções da chefe de reportagem que me instou a descobrir “onde as cobras dormiam”. Não conhecia o ditado popular que significa revelar o que está escondido. Achei que ela estava sendo literal – em minha defesa, era de manhã cedo e sou mais burro durante o dia. Passei as horas seguintes perguntando sobre cobras assassinas para pescadores atônitos e, por fim, mandei um email acusatório para o instituto ambiental que investigava o caso: “Quero que vocês revelem qual grau de participação de ofídios na morte dos peixes”. Um assessor me ligou assim que recebeu a mensagem. “Flávio, você enlouqueceu?”.
A mesma pergunta me fez um editor, em outra circunstância. Um pinguim tinha chegado à Praia do Porto da Barra. O coitado se perdeu da família (o que não é exatamente uma coisa ruim) e estava sob os cuidados de biólogos de Salvador. Me mandaram escrever um pequeno texto sobre a aventura do bichinho. Logo na primeira frase, meti um “simpático mamífero aquático”. Na minha cabeça tresloucada, o pinguim era uma espécie de primo da baleia. Convenhamos, pelo menos, que acertei em chamá-lo de simpático.