O ministro do Trabalho e do Emprego (MTE), Luiz Marinho (PT), tomou uma atitude sem precedentes, segundo os auditores fiscais do trabalho, servidores públicos que averiguam o cumprimento da legislação trabalhista nas empresas. Por isso, todos os 19 coordenadores estaduais de combate ao trabalho escravo deixaram seus postos na última semana de setembro.
O ministro assumiu um processo administrativo, então concluído, que envolve a JBS Aves, uma das empresas apontadas como responsáveis por manter 10 trabalhadores em situação análoga à de escravo. O flagrante levaria à inclusão da multinacional brasileira JBS na lista suja do trabalho escravo, cadastro que expõe empregadores nessa situação, mas Marinhofreou o processo.
Por que isso importa?
Auditores fiscais denunciam que a interferência do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, em ação envolvendo a JBS é “sem precedentes” e incentiva outros políticos a tomarem a mesma atitude;
Desacordo dos servidores do Ministério do Trabalho, que fiscalizam as condições de trabalho nas empresas, com a ação do ministro foi parar no STF, como a Pública adiantou.
“É um caso inédito de interferência em algo que é eminentemente técnico”, explicou um dos auditores que deixou o posto. “Atitudes como essa deixam ainda mais longe a possibilidade de erradicar o combate ao trabalho escravo no Brasil”, concluiu. Ele será chamado de Antônio*, pois pediu anonimato. Os auditores seguem atuando no MTE, porém fora do posto de gestão.
Para auditora Bárbara Rigo, que deixou o cargo de coordenação do Rio de Janeiro, a ação de Marinho “esvazia” a “independência técnica” dos auditores, “desmoraliza” e “fragiliza” o combate ao trabalho análogo à escravidão. “[São] 350 anos de escravidão num país, [que] trazem problemas fundamentais e se enraízam de uma forma muito, muito avassaladora”, explicou, justificando a necessidade de fortalecer o combate à exploração, não fragilizá-lo.
Caso a JBS não seja incluída na próxima lista suja, os servidores pretendem escalonar o protesto. “Esse [saída dos postos] foi um ato nesse momento, mas [se] a avocação não for revista, a tendência é que isso escale”, disse Antônio. “A gente vai se reunir para definir os próximos passos e tentar realmente, junto às instituições associativas e sindicais, que isso seja mais contundente”, explicou Rigo. A publicação da nova versão da lista suja está prevista para esta segunda-feira, 6 de outubro.
A Agência Pública também revelou que a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra) apresentou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar o artigo que permitiu a ação do ministro. Trata-se de uma disposição de 1943 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que permite ao mandatário do MTE avocar um processo para reavaliá-lo. O caso está sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que pode emitir uma liminar para manter a empresa no cadastro.
“É a primeira vez, nem no governo Bolsonaro ele [o ministro do Trabalho] ousou fazer isso”, disse Mário Diniz, coordenador de relações institucionais da Anafitra.
No parecer jurídico que permitiu a avocação do ministro, solicitada pela JBS, a ação foi considerada “adequada e recomendável”. O documento destacou “o porte e a relevância econômica da empresa envolvida” e afirmou que sua eventual inclusão na lista suja “possui repercussão econômica e jurídica de ampla magnitude”, o que poderia gerar “significativo impacto no próprio setor econômico em nível nacional, inclusive com possíveis desdobramentos internacionais”. O documento foi emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao MTE.
Para Antônio, o precedente aberto pelo ministro gera “um desequilíbrio entre as diferentes empresas”. “A gente cria uma terceira instância exclusiva para pessoas que podem pagar por isso, só a empresa que tem poder econômico vai ter processo avocado”. Rigo questiona: “As empresas pequenas não podem cometer esse tipo de irregularidade e as grandes estão liberadas?”
Os 19 servidores que deixaram os postos coordenavam as atividades em alguns dos estados que lideram o ranking de trabalhadores resgatados, como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, de acordo com a última lista suja. Eles atuavam no planejamento das fiscalizações e na articulação com órgãos parceiros, como o MPT, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Polícia Federal (PF). Os oito estados restantes ainda não têm coordenações estaduais, situação que deve mudar no ano que vem, quando o trabalho de fiscalização será estruturado em todas as unidades federativas.
Em retorno à Agência Pública, o MTE disse que “o ministro exerceu o direito dele de avocar”, que a decisão não considerou a “relevância econômica” da JBS, e que o caso está sob análise da consultoria jurídica, porque há “uma demanda formal da empresa que se queixa que tem inconsistências no auto de infração e que os pareceres deles não foram analisados pelos auditores”. O ministro tem até 90 dias para avaliar o caso.
“A avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa. Trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los. O MTE reafirma seu compromisso com a transparência, a legalidade e a atuação firme no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão, sempre em defesa do trabalho decente e da proteção dos direitos trabalhistas”, disse o ministério. Confira a resposta na íntegra.
Já a JBS afirmou à Pública, quando a interferência do ministro foi noticiada,que “suspendeu imediatamente o prestador de serviços em Passo Fundo, encerrou o contrato e bloqueou esta empresa assim que tomou conhecimento das denúncias”. De acordo com a nota, as condições de trabalho foram verificadas, “constatando o regular cumprimento da legislação em vigor”. “Todos os fornecedores estão submetidos ao nosso Código de Conduta de Parceiros e à nossa Política Global de Direitos Humanos, que veda explicitamente qualquer prática de trabalho como as descritas na denúncia”, afirmou.
“Quando não mata, aleja”
O relatório de fiscalização do caso, acessado pela reportagem, detalha as condições dos trabalhadores em 119 páginas. De acordo com o documento, os 10 trabalhadores resgatados trabalhavam até 16 horas por dia em atividades insalubres, se alimentavam de frangos considerados fora do padrão pela JBS e trabalhavam para pagar dívidas com transporte e alimentação. Os trabalhadores relataram que “para atender as cargas exigidas, não era possível parar o trabalho para descanso e alimentação”. A investigação registra que os trabalhadores costumavam dizer que “a MRJ, quando não mata, aleja”.
“MRJ” se refere à MRJ Prestadora de Serviços, que trabalhava para a JBS Aves e havia contratado os funcionários. O relatório aponta que era a JBS quem definia o ritmo de trabalho e as demandas a serem atendidas pela terceirizada, e por isso as duas companhias foram responsabilizadas.
“A atividade econômica – da forma como estava sendo organizada e executada – não garantia aos trabalhadores o direito fundamental ao trabalho em tempo e modo razoáveis, com preservação da saúde e segurança, com respeito aos períodos de descanso, lazer, convívio familiar e social”, conclui o texto.
O documento foi elaborado por uma equipe composta por 12 pessoas, entre auditores do trabalho e servidores do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da assistência social do município de Arvorezinha, no Rio Grande do Sul, onde os trabalhadores viviam.
Relatório aponta que MRJ não oferecia moradia adequada para os trabalhadores.
“É um relatório extremamente detalhado, super bem feito. Todos os critérios que servem para identificar situação análoga à de escravo estavam presentes, quando é necessário só ter presente um deles”, disse à reportagem Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o Trabalho Escravo. O artigo 149 do Código Penal define quatro critérios para caracterizar trabalho análogo à escravidão: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e a restrição da locomoção do trabalhador.
No parecer que permitiu a avocação do ministro, emitido pela consultoria jurídica, não há críticas sobre as evidências encontradas na fiscalização. Pelo contrário, o documento diz que uma análise preliminar mostra “a existência de indícios robustos”, mas depois destaca “o porte e a relevância econômica da empresa envolvida” e defere o pedido.
Além dos recursos oferecidos pelo processo administrativo, críticas técnicas ou nulidades também poderiam ser questionadas pelas empresas na justiça, como parte do rito normal, explicam os auditores.“Ela poderia buscar o judiciário, mas não um recurso político e vago nesse sentido de porte econômico”, explicou Emerson Costa, que coordenava o combate ao trabalho análogo a de escravo no Amazonas, e também deixou o cargo.
A Secretaria de Inspeção do Trabalho, que integra o MTE e é responsável pela elaboração da lista suja, defendeu a “estrita legalidade do processo administrativo”. Contatada, a MRJ não respondeu. Como a empresa não fez parte do pedido de avocação da JBS, ela segue o rito normal e deve ser incluída na lista suja, de acordo com os auditores.
Como funciona a lista suja do Ministério do Trabalho
Quando uma empresa entra para a lista suja do trabalho análogo à escravidão, o empregador permanece na lista por dois anos, podendo deixá-la após o prazo, se tiver sanado as irregularidades. A lista é renovada duas vezes ao ano. Depois da próxima versão, em outubro, será atualizada novamente em abril do ano que vem. O cadastro teve sua primeira publicação em 2003.
“[A lista] gera uma repercussão financeira para a empresa, que tem restrição de crédito, e a sociedade em geral pode ter acesso e escolher contratar ou não serviços e produtos dessas empresas”, explicou Emerson Costa.
“O maior instrumento de combate ao trabalho escravo sempre foi a lista suja, para prevenir e para a sociedade ter a transparência das empresas que estão nessa situação, e aí ter uma pressão nacional e internacional”, acrescentou Antônio.
Impactos da saída dos coordenadores estaduais
De acordo com os auditores, a saída dos postos de coordenação já está afetando o trabalho, porque eles eram os responsáveis por manejar as equipes e “usar da melhor forma os recursos humanos”, em especial em um contexto de falta de reposição de trabalhadores, como explicou Barbara Rigo. Publicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), baseada em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirma que o Brasil tem déficit de 3,5 mil auditores fiscais do trabalho. Na última edição do Concurso Nacional Unificado (CNU), o MTE disponibilizou 900 vagas, mas os auditores ainda não foram chamados.
“As ações que já estavam planejadas, nós estamos cumprindo, porque respeitamos as pessoas, e os principais atores afetados nesse momento são os trabalhadores, mas outras ações não serão planejadas já em função dessa retirada dos coordenadores”, completou outro gestor, que também deixou o cargo e pediu anonimato. “É uma pena, porque quem se entrega a esse trabalho se indigna com as condições que os trabalhadores se encontram”, lamentou.
“Se o trabalho nosso está sendo colocado em dúvida, nós temos que parar pra resolver. Não dá pra gente ficar aí correndo risco de vida dentro desses sertões do país afora, pra depois, em Brasília, num gabinete com ar-condicionado, uma autoridade dar um canetaço. Isso aí é um precedente, um esvaziamento perigosíssimo pro Estado Democrático de Direito. Então, se o ministro não recuar, eu, particularmente, defendo que toda fiscalização do trabalho escravo deve ser paralisada no país”, afirmou Mário Diniz, da Anafitra.
Questionado sobre a saída dos servidores, o Ministério do Trabalho e Emprego disse que os cargos “não existem formalmente”.
Precedente pode ir além do combate ao trabalho escravo
O artigo 638 da CLT usado como base para a avocação do ministro não trata apenas de combate ao trabalho análogo à escravidão, o que pode abrir um precedente para que qualquer fiscalização trabalhista seja reavaliada fora das instâncias previstas no processo administrativo, explicam os auditores.
“O despacho ocorrido trata de uma competência recursal sobre os autos de infração da fiscalização trabalhista em geral, de segurança, saúde, FGTS [Fundo de Garantia sobre Tempo de Serviço], qualquer auto administrativo. E o precedente administrativo disso é que o ministro, não só esse, todos os outros ministros que vierem, podem avocar os processos. Isso abre caminho para que qualquer auto de infração lavrado contra grandes empresas, em qualquer ramo, possa ser revisto politicamente”, explicou Rigo.
Após a decisão do ministro, a CPT solicitou uma reunião para debater o caso na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), coordenada pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). O encontro ocorreu na quinta-feira (25) e, de acordo com os presentes, registrou posição unânime de crítica a Marinho. “Você não encontra, entre as pessoas que refletem um pouco sobre o assunto, ninguém que ampara a decisão do ministro. Ela é insustentável”, disse Frei Xavier. Foi durante o evento que os primeiros auditores divulgaram que deixariam os cargos em protesto.
Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o Trabalho Escravo.
A comissão também solicitou uma reunião entre a ministra Macaé Evaristo, do MDHC, e o ministro do Trabalho, e produziu um posicionamento que foi assinado por 63 entidades, divulgado na quinta-feira, 2 de outubro. “A proteção contra o trabalho escravo constitui obrigação erga omnes [expressão em latim que significa “para todos”] do Estado brasileiro, não podendo estar sujeita a cálculos políticos ou econômicos que comprometam sua efetividade”, diz o documento.
“O Brasil foi o último país a abolir a escravidão clássica, a escravidão colonial, que durou por três séculos, mas que ainda hoje perdura na sociedade. Depois da abolição, o Brasil demorou cerca de mais de um século para reconhecer que ainda existia trabalho escravo aqui. Só em 1995 houve a construção dos grupos móveis e o início da política pública de enfrentamento. De lá para cá, são mais de 60 mil resgates, e nos últimos anos a gente tem um pouco mais de investimento em políticas públicas de forma mais estrutural. Para quem está lá hoje sendo explorado, sendo escravizado, é preciso que o Estado esteja presente”, finaliza Emerson.