O futuro não é garantido

Obra caríssima e gigantesca, a usina hidrelétrica de Belo Monte trouxe uma série de consequências para a região de Altamira, no Pará. O ciclo do rio foi alterado, afetando flora e fauna e impactando diretamente a vida de povos indígenas e ribeirinhos. Quase dez anos depois de as águas começarem a ser desviadas para a geração de energia elétrica, eles ainda sofrem esses impactos e temem pelo futuro de suas famílias. 

Tudo isso para quê? O Brasil precisava de Belo Monte? E hoje a hidrelétrica faz sentido? São perguntas fundamentais no momento em que o Ibama está analisando se vai conceder a renovação da licença de operação da hidrelétrica, há anos vencida. No centro dessa análise, estão as duas questões tratadas nesta série: a quantidade de água para a Volta Grande do Xingu e o direito de retorno dos ribeirinhos para as margens do rio. O futuro de ambas também não está garantido. 

Leia abaixo o roteiro do episódio na íntegra:

[Isabel Seta]

Até ir para Altamira, eu não tinha ideia do que uma hidrelétrica faz com um rio. Quer dizer, eu sabia na teoria sobre os impactos sociais, os impactos ambientais. Sabia que alaga terras, expulsa pessoas, altera o fluxo das águas, afeta a vida aquática. Mas eu nunca tinha parado pra pensar o que realmente acontece com o rio. O que ele perde. Foi só ouvindo duas mulheres que eu comecei a ter alguma dimensão disso.

[Rita]

Você já pensou o poder de uma pessoa controlar um rio, dizer: “Hoje eu encho ele, amanhã eu vaso ele”, gente, é muito grande.

[Sara]

A natureza, ela tá presa. Ela foi presa.

[Isabel Seta]

Essas são as vozes da Rita e da Sara. Duas mulheres que têm muito em comum. As duas são mães, pescadoras e beiradeiras. Nascidas e criadas na beira do rio Xingu. As duas também estão entre os muitos impactados pela usina hidrelétrica de Belo Monte. E também estão, as duas, determinadas a proteger o Xingu. E a tentar recuperar as vidas que elas levavam antes da instalação da usina.

[Rita]

Mas só que tem gente que não desiste, tem gente que quer viver.

[Sara]

Eles podem estar usando, sim, as águas do rio Xingu. Mas o povo tá lutando para que eles não matem o rio. Nós estamos lutando para isso.

[Isabel Seta]

Eu sou a Isabel Seta e esse é o quarto e último episódio de Xingu em Disputa, um podcast da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Nessa série, a gente conta a história da transformação forçada do Xingu e das consequências que a usina hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores do mundo, trouxe para o rio e para os seus habitantes. Uma história em andamento, que ainda está longe de acabar.

A Rita e a Sara, que conduziram a gente pelos três primeiros episódios, fazem parte dessa história, uma de cada lado da barragem que dividiu o Xingu. Barragem acima, a Rita teve a sua ilha afogada. E hoje vive na margem da parte do rio que virou um lago para alimentar a hidrelétrica. Ela é uma das pessoas que trabalhou na criação de uma proposta inovadora para que os beiradeiros expulsos pela usina possam voltar para perto do rio, o Território Ribeirinho. Tema do nosso terceiro episódio.

[Rita]

Existe um projeto aprovado pelo órgão licenciador, pela Norte Energia, por todos os órgãos que tá lá e não sai. 

[Isabel Seta]

Barragem abaixo, a Sara viu o nome da sua comunidade ser apropriado pela usina que hoje desvia as águas da região em que ela mora. Ela faz parte de um grupo de beiradeiros indígenas que organizaram uma iniciativa inédita para monitorar os impactos que a falta da água está trazendo para a volta grande do Xingu, o MATI, que a gente falou no episódio 2.

[Sara]

Então a gente falou, se a gente é um povo, se o Xingu é um só, vamos nos unir em prol da vida do Xingu.

[Isabel Seta]

Até aqui a gente ouviu elas contarem sobre o que Belo Monte, a usina, fez com o Xingu. Sobre o que aconteceu quando o rio, fonte de vida, virou rio, fonte de energia. Então, se você está chegando nesse podcast só agora, eu recomendo que você volte lá no início para tudo fazer mais sentido. Porque agora a gente vai discutir o outro lado dessa história, na tentativa de responder algumas perguntas. Primeiro, para que tudo isso? O Brasil precisava de Belo Monte? E se precisava, precisava também causar todo o impacto que a gente mostrou aqui? Não dava para ser diferente? E hoje, Belo Monte faz sentido?

Episódio 4: O futuro não é garantido.

[Valeriano]

Gente, é, pra vocês poderem saber se acabou tem que ficar é junto com pescador. Não existe mais de você dizer assim vou botar um gelo na canoa, com meus filhos, pra ir pescar pra nós se manter com a produção desse peixe que nós vamos pegar, não existe mais isso, ninguém num conta mais com isso mais não. 

[Isabel Seta]

Esse é o seu Valeriano, o pai da Sara. 

[Valeriano]

Depois dessa barragem todo ano que se passa que nós fica, eu mais esses meninos direto nesse rio, todos os anos é perda de tudo. 

[Isabel Seta]

O seu Valeriano vive em Volta Grande há quase 5 décadas. Quando conheci ele lá na ilha Pacu de Seringa, ele falou uma frase que ficou comigo. Meu gravador estava desligado, bem nessa hora. Mas eu anotei. Ele estava falando sobre o tempo antes da hidrelétrica, quando pescava centenas de quilos de peixes, toda semana, com os filhos. E ele me disse: “antes, o futuro tava garantido”. 

Pra mim, uma das coisas mais difíceis da crise climática é essa perspectiva de que a gente tá caminhando rápido para um mundo em que o futuro não vai ser algo certo, algo garantido. Com o seu Valeriano, eu entendi que, no Xingu, ele já tinha deixado de ser faz tempo. O que me faz voltar pra pergunta que fiz: e pra que? Em nome de que estamos sacrificando o futuro do seu Valeriano, da Sara, da Rita, dos outros beiradeiros e indígenas que vivem do Xingu – sem falar no futuro de toda a biodiversidade da Volta Grande?

Em dezembro de 2012, naquela correria de final de ano, 18 meses depois de ter conseguido a licença de instalação, a Norte Energia tinha acabado de instalar uma barragem provisória, que desviava a água do Xingu. Era o primeiro passo para viabilizar a construção da barragem e da casa de força Pimental que, alguns anos depois, barraria o Xingu de vez. 

A mais de 2 mil quilômetros dali, no Rio de Janeiro, a cidade acabava de bater recorde de temperatura, 43,2ºC, era a mais alta, até então, desde o início dos registros, em 1915. Em alguns lugares, o calorão estava ainda pior.

[Arquivo TV]

Um problema na refrigeração do aeroporto Santos Dumont, no rio, fez muitos passageiros sofrerem hoje. Desde o início do mês, o sistema de ar condicionado do aeroporto apresenta problemas, mas hoje ele parou de vez em todos os terminais. Muitos passageiros reclamaram. 

[Isabel Seta]

Entre esses passageiros estava uma atriz famosa da Globo. Ela estava esperando no embarque quando lançou um: “Viva Belo Monte”. E continuou: “Essa é a prova de que precisamos de uma nova estrutura em energia. Do jeito que tá, não está dando. Os grandes eventos estão aí, não podemos pagar mico”. A atriz empolgada com Belo Monte e preocupada com o Brasil não pagar um mico nos grandes eventos – a Copa do Mundo e as Olimpíadas – era a Regina Duarte, anos antes de ela descambar oficialmente pro bolsonarismo.

A oferta de energia do país não tinha nenhuma relação com a falha pontual no sistema de ar condicionado do aeroporto. Mas essa fala da Regina Duarte, que o jornal Folha de S. Paulo noticiou na época, ilustra bem como a hidrelétrica vinha sendo promovida e, em parte, percebida por uma parcela da população: como fundamental para gerar a energia elétrica necessária para o crescimento e para o desenvolvimento do Brasil. 

Esse argumento vinha sendo repetido há anos – e por várias vozes diferentes.

“Nós estamos, efetivamente ampliando, a capacidade energética do Brasil. Energia não se faz de repente. Não é por causa da crise atual que essas obras estão sendo feitas. Vamos continuar investindo, e fortemente, na hidreletricidade.” Esse é um trecho de um discurso do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Era 2001 e o governo estava enfrentando a crise dos apagões, que obrigou o presidente a decretar um racionamento pesado de energia no país. Todo mundo queria saber o que ia ser da luz no Brasil. E o FHC foi pra São Paulo inaugurar uma turbina de hidrelétrica. E aí ele mandou essa: “Dentro de pouco tempo, vamos anunciar Belo Monte, que é uma usina equivalente a Itaipu e que vai ser feita com capitais brasileiros, tecnologia brasileira, apoio do governo brasileiro para o bem do nosso país”.

Sim, depois de toda a mobilização indígena e dos movimentos sociais de Altamira terem conseguido enterrar os planos de uma usina no Xingu, lá no início da redemocratização, Belo Monte agora estava de volta à mesa com o argumento de que ela era necessária para garantir a segurança energética do país. E nove anos depois, o presidente que de fato tirou ela do papel, também veio com o mesmo papo.

[Lula – Arquivo de TV]

O Brasil está crescendo forte e vai crescer ainda mais. Precisa e precisará cada vez mais de energia limpa, barata e segura. Razão pela qual nós temos a responsabilidade de fazer Belo Monte. 

[Isabel Seta]

Já em 2014, uma nova seca começou a impactar parte dos reservatórios do país, e o fantasma do apagão voltou a assombrar a então presidente Dilma Rousseff. Ela já estava em campanha eleitoral quando foi visitar o canteiro de obras de Belo Monte.

[Arquivo de TV]

A candidata à reeleição pelo PT cumprimentou funcionários e conversou com jornalistas. Dilma defendeu a construção de hidrelétricas para a geração de energia. E disse que, nesse momento, o Brasil não corre o risco de desabastecimento.

[Dilma – Arquivo de TV]

Não houve racionamento durante a Copa e nem vai haver racionamento depois da Copa. Porque nós vivemos numa situação em que investimos muito, tanto, pra se ter uma ideia, tanto em transmissão quanto em geração. 

[Isabel Seta]

A ideia, repetida pelos três presidentes, sempre foi essa: o Brasil precisava de uma usina imensa como Belo Monte. Era responsabilidade do governo fazer a hidrelétrica. Mas desde o início se sabia que ela não ia chegar perto dessa grandiosidade – por desenho do projeto mesmo. Ouve só essa reportagem da TV Brasil, de 2016: 

[Arquivo de TV]

A usina de Belo Monte no Pará entrou em operação hoje e a presidenta Dilma Rousseff participou em Altamira da cerimônia. A previsão é que a usina forneça energia elétrica para 60 milhões de pessoas em 17 estados do Brasil.

Localizada no Rio Xingu no centro do Pará está sendo projetada para produzir até 11.233 MW de energia, mas como o funcionamento da usina depende do regime de chuvas e da vazão do rio, a expectativa é de uma produção média fixa de 4.571 MW de energia. 

[Isabel Seta]

Esses 4.500 MW são o que nos termos técnicos eles chamam de a energia firme de Belo Monte, ou seja, o quanto, em tese, ela ia produzir na média. É menos da metade da potência instalada total. 

[Sara]

Uma energia onde só funciona seis meses. Os outros seis meses? Aí faz o possível para desviar mais água. Onde vai gerar uma, duas turbinas. Para quê que fizeram isso? 

[Isabel Seta]

Aqui é a Sara de novo, e ela tem um ponto: a sazonalidade do Xingu. Lembra? Belo Monte não tem um grande reservatório de acumulação. Depende, então, da vazão do rio. Mas essa vazão diminui muito no verão. Muito mesmo – quase 40 vezes. O que diminui, também, a geração de energia.

[Isabel Seta]

Só pra dar dimensão dessa diferença, se a gente pegar 2024, nos primeiros seis meses Belo Monte gerou, na média, por volta de 4 mil megawatts. Já no segundo semestre foram, na média, 500. Pra que construir uma usina com potência de 11 mil se ela ia gerar 4 mil megawatts e isso só em alguns meses do ano? Foi com essa pergunta na cabeça que eu fui falar com o Célio Bermann. 

O Célio é um grande especialista na área de energia. Ele é professor na Universidade de São Paulo, doutor em planejamento de sistemas energéticos e autor de vários livros. Ele participou do primeiro governo Lula, como assessor, justo da Dilma, que era ministra de Minas e Energia, entre 2003 e 2004. Depois, já fora do governo, ele foi um dos cientistas que se debruçou sobre os planos de Belo Monte e os impactos que a usina iria trazer. Eu queria saber do Célio se era normal no Brasil as usinas terem uma potência instalada tão maior do que sua real capacidade de geração média, como Belo Monte. A resposta? Não. Não era normal. 

[Célio Bermann]

Na época em que o governo Lula discutia a viabilidade dessa usina, eu tive a oportunidade de, convidado pelo bispo de Altamira, Dom Erwin Krautler, ele organizou uma comitiva junto com lideranças indígenas e lideranças das populações ribeirinhas atingidas ou potencialmente atingidas pela obra.

[Isabel Seta]

Esse é o Célio. E ele está falando de uma audiência com o presidente Lula, que aconteceu em 2009, antes do leilão de concessão da hidrelétrica.

[Célio Bermann]

E eu fui participar dessa reunião com o presidente Lula, em que estavam também presentes toda a direção da Eletronorte, e da empresa de pesquisa energética.

[Isabel Seta]

Na época, ainda era a Eletronorte que capitaneava o projeto de Belo Monte.

[Célio Bermann]

Então, foi bastante sintomático, porque nós sentamos numa sala em que as mesas estavam dispostas de um lado o bispo de Altamira, junto com as lideranças indígenas e junto com as lideranças das comunidades ribeirinhas, e do outro lado, todo o aparato tecnológico e interessado em, através da direção da empresa de pesquisa energética, de diretores da Eletronorte, interessados em viabilizar a usina. Eu tive a oportunidade de, durante não mais que cinco minutos, de fazer uma exposição mostrando ao presidente Lula que seria um erro a construção de Belo Monte, porque o preço da eletricidade que tinha sido definido no leilão não iria cobrir o investimento. A taxa de retorno seria negativa.

[Isabel Seta]

Taxa de retorno negativa. Ou seja: a usina ia dar prejuízo. E nessa apresentação, o Célio disse mais: que, se fosse pra construir mesmo Belo Monte, que ela não fosse tão imensa, que ela não tivesse tanta potência, que ela não fosse…

[Célio Bermann]

E que ela não seja maior que 4.200 MW, é porque era justamente a potência que ela poderia ter para poder ser útil durante todo o ano. Ah, não, mas tem 15 mil m³ em janeiro e fevereiro, então nós precisamos aproveitar, mas e o resto do tempo?

[Isabel Seta]

Basicamente, ele tava sugerindo que ninguém ali tivesse o olho maior que a boca. Se a média de geração não fosse mais que 4 mil megawatts, por que fazer um trambolhão daquele tamanho e com tanto impacto? Não adiantava mirar nos tais 15 mil m³, que era a vazão do Xingu quando ele ainda era um rio livre. Quando, realmente, era muita água que corria com muita força. 

[Célio Bermann]

Mesmo assim, mesmo assim, Belo Monte foi para frente. O resultado é que a gente tem hoje uma usina que traz problemas, né? Inclusive, do ponto de vista econômico-financeiro, para a Norte Energia, que é a empresa que administra a usina.

[Isabel Seta]

Eu fui procurar os relatórios financeiros da Norte Energia, os relatórios em que ela presta contas aos seus investidores. E a situação é a seguinte: desde 2010, a empresa só teve lucro em 3 anos – 2017, 2018 e 2019. Todos os outros anos foram de prejuízo. Em 2024, o prejuízo foi de mais de 1 bilhão de reais. É que ainda tem ainda outro problema – também bastante conhecido há décadas. As mudanças climáticas.

Em 2015, quando a água da Volta Grande começou a ser desviada, um grande estudo encomendado pelo governo Dilma já mostrava que, com o agravamento das mudanças climáticas, as secas iam ficar mais frequentes e mais intensas, reduzindo a vazão dos rios amazônicos até 2040, a ponto de ameaçar a geração de energia por hidrelétricas na região. 

Os pesquisadores fizeram uma análise específica pro Xingu e a previsão era de que a geração média, os tais 4 mil MW, poderia ser reduzida para metade. O estudo fazia projeções para 2040, mas a crise climática já chegou e a realidade já está se mostrando tão ruim quanto a previsão. 

[Célio Bermann]

A ausência de chuvas é cada vez mais significativa. Então, essas mudanças elas estão interferindo na produção hidrelétrica do Brasil, e não é só do Brasil no mundo também. Essa ocorrência de alteração no regime hidrológico faz com que países onde as usinas hidrelétricas têm uma presença significativa, como o Brasil, mas também a Noruega, o Canadá, faz com que a dependência hidrelétrica se torne cada vez mais uma questão de segurança energética.

[Isabel Seta]

No caso específico de Belo Monte, entre 2020 e 2024, a hidrelétrica gerou, na média anual, praticamente só um terço da potência instalada total. Vários desses anos, é importante lembrar, foram de secas recordes. Tanto é que teve mês em 2021 que a operação chegou assim no fundo do poço. 

[Arquivo de TV]

Em plena crise de falta de energia elétrica, por que só uma das 18 turbinas de belo monte está funcionando de verdade?

Belo Monte, no Pará, foi construída para contribuir com 12% do consumo nacional de energia elétrica, mas hoje não cobre nem 1% do país.

[Isabel Seta]

Então, só pra recapitular, até aqui a gente tem: uma hidrelétrica projetada para não chegar, na média, nem na metade da sua potência total, que, desde o início, podia não remunerar o investimento feito e pra completar, que ia ter sua operação ainda mais ameaçada com o agravamento das mudanças climáticas. Tudo isso a um custo de 60 bilhões de reais em valores atualizados – a maior parte de dinheiro público. E com impactos sociais e ambientais gravíssimos em um lugar de biodiversidade e riqueza cultural únicas.

[Sara] 

Estudo? Será que eles fizeram estudo? Porque se fizeram estudo, eles não tinham construído ela, não. Se eles tivessem ido com o beiradeiro, com o indígena, com o pescador que está o dia todo no rio, que sabe, que se conecta, ele ia falar, não vai dar certo. É um tiro no pé.

[Isabel Seta]

Célio Bermann não tem dúvida que foi um erro gigantesco:

[Célio Bermann]

Então, talvez seja um dos piores projetos de usinas hidrelétricas que a gente pode considerar construídos aqui no nosso país.

[Isabel Seta]

E de novo: pra que? Essa pergunta, que me perseguiu o tempo todo durante a produção desse podcast, também assombrou mais gente. 

[Felício Pontes]

Não era para geração de energia, eles não conseguiam contestar os dados que nós trazíamos das universidades brasileiras, das universidades estrangeiras, dizendo que a geração de energia não seria de 11 mil MW, que ela não seria, ela não seria a terceira maior hidrelétrica do mundo, a segunda maior do Brasil, a primeira do Brasil, genuinamente nacional, aqueles dados estavam falsos, não iria gerar aquilo de energia. 

[Isabel Seta]

Esse é o procurador da República, Felício Pontes, que você já ouviu no primeiro episódio. O Felício é paraense e autor de muitas das primeiras ações judiciais contra a hidrelétrica. E ele também tentou entender: por que? 

[Felício Pontes]

E nós víamos pela reação a essas ações na justiça e também pelos argumentos falhos e mentirosos que vinham com muita ênfase do outro lado, que nós não sabíamos quais os interesses nós estávamos contrariando com aquela que era a obra mais cara do Brasil deste século. E aí nós nos perguntávamos, sabe, Isabel, naquele tempo, entre nós, os procuradores da República e a assessoria, nas reuniões que nós fazíamos constantemente sobre o caso, perguntávamos: Que interesses nós estamos contrariando, já que nós temos tão claros, as evidências estão tão flagrantes de que essa hidrelétrica não vai gerar essa energia, que vai ser um prejuízo para o Brasil. O que a gente está contrariando? 

[Isabel Seta]

A resposta levou anos pra aparecer.

[Felício Pontes]

E eu acho que isso, ao longo dessas ações judiciais, ao longo do trabalho que ainda continua conosco, a gente já pode ter uma ideia disso, né? A própria Lava Jato mostrou bem a que servia Belo Monte. Mostrou que tinha, é claro que tinha corrupção naquele meio, né? E era isso que pautava a construção de Belo Monte.

[Isabel Seta]

Nas investigações da Lava Jato, os executivos da Andrade Gutierrez disseram, em suas delações premiadas, que as construtoras tinham combinado o pagamento de 1% do valor da obra em propina para o PT e para o PMDB, hoje MDB. A empresa fechou um acordo de leniência, em 2016, e se comprometeu a devolver 1 bilhão e a fazer um pedido público de desculpas ao povo brasileiro. A Andrade Gutierrez, junto com a Odebrecht e a Camargo Corrêa, formavam o consórcio construtor da hidrelétrica. Sim, teve isso: um consórcio construtor formado por essas grandes empreiteiras e, depois, um consórcio para operar a Norte Energia. 

Os delatores da Odebrecht, por sua vez, implicaram o ex-senador Edison Lobão, do PMDB, que foi ministro de Minas e Energia entre 2011 e 2015. O que os delatores disseram é que ele, supostamente, teria recebido quase 3 milhões de reais, uma parte do valor do contrato da construção de Belo Monte. Ele se tornou réu em 2019, mas foi absolvido em 2024, depois que o Supremo Tribunal Federal declarou a nulidade das provas obtidas no acordo de leniência da Odebrecht. De lá pra cá, a Lava Jato, em grande parte, desmoronou sem que a gente tenha chegado ao fundo dessa resposta. Mas pro Felício, ela se insere numa dinâmica maior da história nacional. 

[Felício Pontes]

Durante a ditadura militar, era claro que havia esse clientelismo, havia essa relação muito intensa entre aqueles que executavam obras do poder público e o poder público, isso que a gente pensava que pudesse ser quebrado, não foi quebrado. Então, acho que ainda exerce, o poder econômico no Brasil exerce uma influência muito grande no governo, seja qual ele for, seja o governo da esquerda, da direita.

[Isabel Seta]

A Norte Energia é um consórcio de diferentes empresas, cada uma tem um pedaço, um percentual das ações. Entre elas, estão grandes empresas de mineração e siderurgia que, inclusive, compram diretamente parte da energia que Belo Monte gera. Mas enquanto isso… 

[Sara]

Esse daí é… É cruel, porque a gente tem uma hidrelétrica no fundo da nossa casa, no fundo mesmo, pode dizer que daqui dá quase de ver, onde pagamos uma energia mais cara, mais cara mesmo, uma energia onde vai para fora. Não beneficia nada a gente.

[Isabel Seta]

A conta de luz no Brasil varia de estado para estado por causa de vários fatores: as condições de distribuição, a base de consumidores, infraestrutura da rede, custo de investimentos, por aí vai… E adivinha quem, nos últimos dois anos, pagou a maior tarifa? Os consumidores no Pará. 

Se Belo Monte é parte dessa relação intensa entre poder político e poder econômico, ela também reflete o que esses poderes sempre consideraram como modelo de desenvolvimento para a Amazônia. Um desenvolvimento que como a Sara já disse aqui não serve pra ela – mas tem um custo enorme. 

[Sara]

Eu sinto falta de escolher o peixe para mim comer. Chegar lá no rio, pegar o peixe lá, não vou levar esse que está muito pequeno, vai crescer. Deixa crescer. Aí escolher o peixe que eu ia comer. A água, sinto falta da água, daquela água onde não tinha contaminação, que hoje a gente bebe água, mas a gente fica doente.

[Isabel Seta]

Eu comecei a entender esse “custo Belo Monte” antes de chegar na Volta Grande, anos antes, quando, em 2021, fui ler o livro Banzeiro Okoto, da jornalista Eliane Brum – que por sinal eu recomendo demais. A Eliane, que mora em Altamira desde 2017, faz reportagens sobre Belo Monte há anos e conhece essa história como poucos. No livro, ela diz que os povos da floresta desafiam as definições capitalistas de riqueza e pobreza, que só veem o lado material desses conceitos. Pros povos da floresta, ser rico é, pra começar, nem precisar de dinheiro. E ser pobre está muito mais ligado a não ter liberdade. Nas palavras de Eliane: “Ao arrancar beiradeiros do rio e da floresta, Belo Monte fez com que, de uma hora para outra, centenas de famílias se descobrissem pobres”. 

Quando eu estava lá em Altamira, esse diagnóstico da Eliane voltou com tudo pra mim. Ele aparecia em todas as conversas que eu tinha. Todas as vezes que eu perguntava como era a vida antes, ou do que sentiam saudade, os beiradeiros e os indígenas Juruna tentavam me explicar que, antes da hidrelétrica, eles eram ricos. 

[Diel]

Se você precisasse de um peixe, a Volta Grande tinha muita riqueza em peixe, a Volta Grande tinha riqueza em fruta, em caça. 

[Isabel Seta]

Esse é o Diel Juruna que praticamente desenhou pra mim essa explicação. 

[Diel]

Então tudo o que você precisaria você tirava da Volta Grande do Xingu. É… e você tinha aquela liberdade de que você tinha de banhar, de pescar, de quando você ia, de quando você ia comer um peixe, quando você não ia. Se você queria trabalhar ou não, se… Você tinha sua liberdade. 

[Isabel Seta]

Mas, para as autoridades, para a empresa, para o olhar de fora, para a mentalidade urbana, riqueza é dinheiro, é infraestrutura, é casa de alvenaria, é rua asfaltada, é supermercado. Por esse olhar, Belo Monte seria o suposto vetor de riqueza, de desenvolvimento. Ninguém foi lá perguntar o que os povos do Xingu entendiam por desenvolvimento – nem se eles queriam isso – uma violação do direito à consulta que é garantido aos povos tradicionais. 

[Sara]

Com seis meses só gera um pingo de energia, não gera muito, porque se hoje tem um pouquinho de água é nóis brigando ali. E eles brigando: não, porque. Se a gente briga por água pra Piracema daí vai um decreto: “não, tem que colocar água pra volta grande do Xingu pras piracema”. A Norte Energia vai lá: “ah isso vai acabar com o desenvolvimento, com o progresso, com a economia”. Foi assim que eles falaram. Daí vão lá e massacram a Volta Grande. 

[Isabel Seta]

E o problema é que esse desenvolvimento massacrante não cansa de dar as caras. A ameaça mais recente é a mineradora Belo Sun que tenta, há anos, destravar seu projeto para instalar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Sabe onde? Bem em Volta Grande. 

O projeto, por enquanto, ainda não saiu no papel, porque, entre outros entraves, está em disputa na Justiça. Mas ele é mais uma ameaça de mega empreendimento que ronda a região – e não é a única.

[Arquivo de TV]

A maior usina hidrelétrica 100% brasileira é um pilar para a estabilidade do sistema interligado Nacional. Seu papel estruturante colabora com os reservatórios de outras usinas.

[Isabel Seta]

Esse é o trecho de um vídeo da Norte Energia, divulgado no canal da empresa no YouTube em novembro de 2024. Ele ilustra como a empresa vem respondendo a grande pergunta de “pra que?”. A ideia central, que aparece não só nesse vídeo, mas nos documentos da empresa pro governo, é a de que Belo Monte seria uma bateria do sistema elétrico nacional. 

A ideia é a seguinte: como a usina gera mais energia nos meses finais e iniciais de cada ano, isso permitiria poupar os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro Oeste, que daí teriam tempo para encher no verão e depois ter água nos meses mais secos do meio do ano. Pode até ser. Até porque esse argumento não é usado só pela Norte Energia. O Operador Nacional do Sistema Elétrico, o ONS, e o Ministério de Minas e Energia também costumam destacar a importância pro país da geração de Belo Monte nos meses chuvosos. Mas faltou falar de um problema fundamental. 

A época que Belo Monte tem mais água para funcionar é, justamente, o período de reprodução de muitas espécies de peixes da região, como a gente já falou aqui. É aquela disputa entre as vidas dos seres da Volta Grande e a geração de energia. 

[Sara]

Tão roubando água para reprodução do peixe que vai fazer 10 anos.

[Isabel Seta]

10 anos…

[Sara]

Sem reprodução do peixe. 

[Isabel Seta]

Acaba que são os povos, os peixes e todos os outros seres do Xingu que pagaram e continuam pagando o preço para que a hidrelétrica possa gerar alguma energia nos meses de chuva. E, recentemente, veio outra ameaça. 

Em abril de 2025, a Norte Energia levou alguns jornalistas para conhecer as operações em Altamira. Foi nessa ocasião que executivos da empresa contaram que eles tão com uma ideia, que seria ainda preliminar, de construir mais uma barragem no Xingu. Essa, disseram os executivos, seria feita para criar um reservatório de acumulação. Como se fosse uma “caixa d’água” que ia encher durante o período de chuvas para daí, na seca, essa reserva poder ser usada pela hidrelétrica para gerar energia. 

Um dos supostos objetivos seria o de minimizar o conflito em torno da água. Mas ninguém explicou se estavam falando do conflito com a Volta Grande, nem o que outra barragem pode fazer para minimizar a disputa pela água. O que eles disseram é que esse reservatório teria que ter, pelo menos, uns 1.000 km² – em um lugar que ainda não foi definido. 1.000 km² é quase o tamanho do reservatório do projeto original, que foi pensado décadas atrás pela ditadura. Aquela primeira ideia era ter um reservatório de 1.200 km², que ia alagar terras indígenas, e que por isso foi descartado pelo governo na hora de fazer Belo Monte.

Agora o que os executivos da Norte Energia falaram pros jornalistas é que o pressuposto básico para um eventual novo reservatório é que não vai alagar áreas indígenas, nem ribeirinhas, nem áreas de pesca… Eu perguntei especificamente sobre essa ideia de uma nova barragem para a empresa. Eu queria saber por que que ela é necessária, qual seria o tamanho do reservatório formado e, principalmente, onde ele seria implementado. Eu perguntei também se a empresa já informou essa ideia ao Ibama. A Norte Energia não me deu nenhuma resposta para essas perguntas. Já o Ibama me disse que não recebeu solicitação e que não tem registro de “qualquer processo de licenciamento ambiental relacionado à implantação de nova barragem”.

Por mais que seja uma ideia preliminar, ela dispara um alarme na região. Porque ia ser mais uma intervenção no Xingu, que já passou por tanto. E é uma intervenção que pode acabar nem resolvendo o problema. Como é que vai ter água para encher um novo reservatório se não choveu o suficiente? A crise climática está aí e ela é um problemão para as hidrelétricas. 

[Célio Bermann]

Os dados hidrológicos que temos no Brasil desde 1934, com o Código das Águas, se há registros históricos de vazões mínimas, vazões máximas, vazões médias, esqueçam esses dados, porque as mudanças climáticas elas estão hoje alterando o regime das águas no mundo inteiro. Então, isso é um problema para as futuras usinas hidrelétricas que se prevêem serem construídas, aumenta a questão da insegurança energética que as usinas hidrelétricas promovem. E a gente não vê, por exemplo… investimento através da Agência Nacional de Águas e através das instâncias regionais das bacias hidrográficas, de poder melhorar, tornar mais real os dados, as informações hidrológicas. E esse tipo de situação acaba fazendo com que a gestão de cada usina não encontre amparo nas informações necessárias para fazer isso. Então, é uma situação bastante delicada.

[Isabel Seta]

É uma situação bem delicada mesmo – e no geral, não tô nem falando só de Belo Monte. E é um negócio que realmente não é fácil de resolver. 

As hidrelétricas emitem menos gases do efeito estufa que outras fontes de energia, mais poluentes, como as termelétricas, por isso, costumam ser celebradas nas discussões sobre transição energética e energia limpa. Mas as mudanças climáticas tornam mais difícil de confiar nelas. A Coalizão Energia Limpa, formada por diferentes institutos, olhou para isso. Eles fizeram um estudo sobre as vulnerabilidades do sistema elétrico, e mostraram que a tendência é de uma diminuição na quantidade de energia que as hidrelétricas podem gerar na média. A solução proposta pela Coalizão, então, é investir mais em eólica e em energia solar, fontes que dependem de duas coisas que devem aumentar com as mudanças climáticas: a intensidade dos ventos e a irradiação solar. 

Ainda assim, a Empresa de Pesquisa Energética, que é vinculada ao Ministério de Minas e Energia, tem um projeto de uma nova hidrelétrica na Amazônia. É a hidrelétrica Bem Querer, que seria construída no rio Branco, em Roraima, a 24 km da Terra Indígena Yanomami. Essa hidrelétrica ainda não recebeu nenhuma licença do Ibama, que até devolveu os estudos do projeto, que precisam passar por mudanças. Esses estudos mostram que a hidrelétrica pode afetar milhares de pescadores e as rotas migratórias dos peixes, como revelou uma reportagem do repórter Vinicius Sassine do jornal Folha de S. Paulo. Deja vu que fala?

[Sara]

A gente está numa guerra aqui, porque todo dia a gente levanta, a gente tem que respirar fundo com a pouca força que tem e bater de frente.Todo dia a gente briga, todo dia a gente tá brigando pela vida do rio.

[Isabel Seta]

De volta à guerra que os beiradeiros indígenas estão vivendo na Volta Grande, dá pra dizer que eles são, hoje, os olhos do Xingu. E a boca também. São eles que vem denunciando a quem pare pra ouvir que o rio deles está definhando. 

[Sara]

Se não for os próprios pescadores indígenas, beiradeiros, pesquisadores beiradeiros, está aí fazendo monitoramento para mostrar o que está acontecendo no nosso rio Xingu.

[Isabel Seta]

O monitoramento que a Sara fala é o Monitoramento Ambiental Territorial Independente, o MATI, que a gente falou no segundo episódio. Um trabalho de indígenas e beiradeiros que está investigando a situação das piracemas. E mais que isso. 

[Sara]

O que precisa acontecer é que soltem água. Deixem a vida fluir em Volta Grande. Soltem água para as piracemas. Soltem água no momento certo, porque todo mundo sabe que hoje quem manda é ela, a hidrelétrica.

[Isabel Seta]

A disputa pela água para Volta Grande é um dos maiores enroscos do processo de renovação da licença de operação da usina, que está sob análise do Ibama. 

Lembra: a hidrelétrica controla a quantidade de água que corre pra região, a vazão, a partir de um esquema, o hidrograma, que foi definido junto com o órgão ambiental. Mas uma das condicionantes da licença de operação diz que a Norte Energia precisa controlar essa vazão de forma a reduzir os impactos na qualidade da água, na fauna, na vegetação, na pesca, na navegação e nos modos de vida das populações tradicionais. 

Os beiradeiros e indígenas vêm reunindo evidências de que isso não está sendo respeitado. A área técnica do Ibama também reconhece isso em vários documentos. E até já pediu para que seja definido um novo esquema de vazão – no termo técnico, um novo hidrograma – que garanta o modo de vida dos povos da Volta Grande. A Norte Energia quer manter o atual esquema em vigor. Já o pessoal do MATI tá na batalha por outra ideia. Um modelo alternativo. 

[Diel]

O hidrograma Piracema é diferente porque ele não é um hidrograma pensado para geração de recursos, né. 

[Isabel Seta]

Aqui, de novo, o Diel Juruna, que é coordenador do MATI.

[Diel]

Ele é um hidrograma que ele segue um pouco o ciclo natural de que era antes o rio. E… ele é um hidrograma pensado ecologicamente, né?

[Isabel Seta]

Ser pensado ecologicamente significa que o hidrograma piracema procura reproduzir de forma mais próxima o ciclo natural do rio. O pulso de cheia e de seca. Aquele pulso que sempre determinou toda a vida na região. O hidrograma Piracema ainda fica abaixo da média histórica da vazão do Xingu. Mas ele faz uma coisa fundamental: que é aumentar a água nos meses críticos para a reprodução dos peixes, entre dezembro e abril mais ou menos. 

[Diel]

Então é a quantidade de água e o tempo que essa água chega.

[Isabel Seta]

Água na quantidade e no tempo certo pras piracemas, para que os peixes possam se reproduzir. Água para garantir o futuro hoje ameaçado. 

Entre a Norte Energia e o MATI tá o Ibama. Como eu falei, a área técnica já fez vários pareceres e vistorias lá na Volta Grande que mostram como a falta de água no Xingu tá trazendo impactos além dos que foram previstos inicialmente. Vários deles a gente já falou aqui: redução na riqueza e abundância de peixes, problemas na reprodução deles, falta de alagamento nas áreas de piracema, morte da vegetação e mudanças negativas na vida dos moradores da região.

Diante de tudo isso, agora em agosto de 2025, a diretoria de licenciamento do Ibama concluiu em um documento: “fato é que, após uma década de operação do empreendimento e realização de diversos estudos ainda não foi possível estipular um ciclo de vazões que permita assegurar a manutenção dos ecossistemas naturais, os modos de vida das comunidades residentes e a compatibilização com a geração de energia”. 

Isso é importante, porque a diretoria de licenciamento foi além e recomendou que em 4 meses a Norte Energia apresentasse uma proposta de um novo ciclo de hidrogramas. Basicamente sugerindo que do jeito que tá não dá pra ficar. A diretoria disse que essa proposta de novas vazões deve considerar os aspectos da geração de energia, as orientações do Ibama para reduzir os impactos ambientais e, mais que isso, que deveria levar em conta também as sugestões do MATI. Essas recomendações foram passadas para a presidência do Ibama, que está acima da diretoria de licenciamento. Então, está na mão da presidência do órgão decidir se encaminha, ou não, esse pedido para Norte Energia. Um novo hidrograma é tudo que os povos da Volta Grande vem pedindo. E eles têm pressa. 

[Raimundo] 

Cada ano diminui, diminui, diminui, que tá quase estaca zero. Com certeza, daqui cinco anos não vai ter mais nada de peixe nessa Volta Grande. Então, praticamente vai extinguir tudo, vai ficar do zero, né, curimatá vai acabar que quase já não tem. Os tucunaré vai sumir tudo.

[Isabel Seta]

Este é o seu Raimundo, pesquisador do MATI e liderança na Volta Grande, que nos conduziu pelo episódio 2.

[Raimundo

Entendeu? Então, o meu medo é de nós não conseguir reverter a vazão, no tempo certo, aqui para a Volta Grande, entendeu? E o rio entrar num colapso total assim de falta de peixe, de acabar mesmo, de ir para extinção as espécies, né, de ficar de você quando pegar um peixe aqui dentro da Volta Grande você se admirar, tá pensando que tá pegando uma coisa de outro mundo.

[Isabel Seta]

Por isso, a ideia do hidrograma Piracema é tão importante. 

[Raimundo]

Porque se não reverter esse quadro da vazão de água no período certo, o que vai acontecer é isso. 

[Isabel Seta]

O Ministério Público Federal também está de olho nessa ameaça. Em 2024, a procuradora Thais Santi abriu um inquérito para investigar a destruição dos modos de vida e dos ecossistemas em Volta Grande. Ela pediu, inclusive, um estudo técnico sobre o conceito de ecocídio. 

Enquanto isso, o Ibama segue analisando se a Norte Energia cumpriu todas as medidas que condicionam a licença de operação. Essa análise é parte do processo de renovação da licença, que está vencida desde 2021. O Ibama me disse que algumas obrigações foram sim cumpridas, outras ainda estão em andamento e algumas apresentam pendências, para essas, eles pediram adequações e informações complementares para empresa. Entre as muitas medidas, duas são especialmente importantes e seguem em aberto. São as duas que a gente tratou nessa série, uma que mencionei há pouco: o hidrograma de vazões para Volta Grande. A outra é o reassentamento das famílias beiradeiras no Território Ribeirinho. Essas duas medidas passam pela luta diária dos povos tradicionais da região. São duas medidas que, para centenas de famílias, vão determinar suas fontes de renda e seu jeito de estar no mundo. 

[Diel]

Que o nosso monitoramento vem com a intenção de tanto manter vida na Volta Grande, como manter cultura, como manter o modo de vida, como manter um povo naquela região, né, que não queira sair, tanto nós, eu, como indígenas, como ribeirinhos, que nascemos e se criamos nessa beira de rio, né, que a gente consiga água para que esse povo não saia dos seus locais, né, que vem de gerações, vem de povos ancestrais, nossos ancestrais

[Isabel Seta]

Manter a cultura, o modo de vida. Isso ia permitir, por exemplo, que o Diel tivesse a chance de ensinar pro filho dele o que ele aprendeu com as gerações anteriores. 

[Diel]

Eu tive a oportunidade de aprender a mergulhar. Eu tive a oportunidade que o meu pai me ensinou a pescar de caniço, a botar uma tiradeira, a conhecer várias espécies de frutas, quando caía, quando não caía, que tempo caía, que tempo a água estava bom para pegar uma espécie de peixe.

[Isabel Seta]

O mergulho que o Diel fala é uma tradição dos juruna de pegar peixes ornamentais, Hoje, não dá pra fazer mais nada disso, porque os ambientes deixaram de existir.

[Rita]

E o que eu acho mais grave em toda essa expulsão do ribeirinho com toda a sua tradicionalidade do Beiradão, são essas crianças. Tem criança com 8 anos, 9 anos que nasceu em Altamira, que foi retirado do Beiradão. Será que quando o pai dela voltar vai ser reassentado, essa criança vai ter? Foi um rompimento de laços.

[Isabel Seta]

Voltar para a beira do Xingu no Território Ribeirinho poderia retomar esses laços. E fazer com que os pais possam compartilhar com seus filhos o rio que eles conheceram.

[Sara]

Aí os nossos filhos, que hoje muitos que estão nascendo por agora e os que não conseguiram ver o que era o rio Xingu antes, a gente conta a história do que foi o rio Xingu. O meu filho, a gente tava na balsa, a gente tava passando na balsa, e eu contando pra ele como é que foi a minha a minha a experiência de criança no Xingu. Que meu primeiro banho foi com a água do Xingu, que eu fui pega por parteira. Aí eu mostrei pra ele: “ó, tu tá vendo aquela pedra, a mãe pulava lá de cima. A gente pula, a gente ia pro rio pescar, eu via tucunaré, muito tucunaré, nadando assim. A mãe naquela época pescava com os anzolzinho que tinham na ponta tinha uma minhoca, e eu tentando pegar o tucunaré com quase 5kg”. Aí falando pra ele: “e era, mãe?”, contando dos filhotes que existia, que hoje não existe mais, tucunaré lá também não existe mais. 

[Isabel Seta]

Como é pra você como mãe contar essas histórias e não poder mostrar tudo isso?

[Sara]

É triste, porque hoje em dia ele vê a piraíba, que é o filhote, por foto, ele vê por foto. E não é, assim, ah tem gente que conta uma história, que essa história eu conseguia alcançar pelo meu pai, eu vi o rio, o que era o rio Xingu. E hoje eu tá falando pro meu filho o que era o rio, e ele não poder ver o que era o rio Xingu que eu vi, que eu presenciei. Não é bom, é triste. É triste a gente contar a história de um rio que está sendo morto.

[Isabel Seta]

Tá sendo morto. Mas ainda não morreu. Como mostram as propostas do Território Ribeirinho e do hidrograma Piracema, a briga ainda não acabou. 

[Sara]

Todo dia a gente tá brigando pelas violações. Com tudo que estão fazendo contra nós. As violações da natureza. Estão violando, todo dia estão violando a natureza. Então… Não é fácil, não.

[Isabel Seta]

Nas conversas que eu tive lá em Altamira, eu comecei a perceber esse cansaço em bastante gente. E perguntei sobre ele. O Diel, apesar de toda sua disposição, me disse que às vezes se sente esgotado. O Seu Raimundo, por mais bem humorado que seja, também tem seus momentos de desânimo, como mostra um dos poemas que ele leu pra mim.

[Raimundo]

Insensatez. Uma muralha que estrangula. O rio que definha. A insensatez que impulsiona a caneta e destina, destina a vida que tinha vida perder a vida. E a escassez é rotina.

[Isabel Seta]

Por trás de toda a firmeza da Rita, também desamparo. E, no caso da Sara, por mais determinada que ela seja, tem hora que uma melancolia vem com tudo. 

[Sara]

Tem dia que eu não quero nem levantar. Tem dia que eu… Aí eu deito, eu levo. Hoje mesmo foi um dos dias. Falei: “Ish… ai meu Deus”, eu levantei, botei a cabeça pra cima assim, aí fiquei pensando. Aí me deu vontade assim, vontade de desistir, sumir, deixar. Deixar aí o que tem que acontecer. Se quer destruir, destrói, acaba logo com tudo. Porque se vai acabar com o rio, se vai acabar com a floresta, se vai acabar com tudo, todos vão padecer. Aí eu… Parece que tem uma força maior, que chega: “Epa, tá falando besteira”.

[Isabel Seta]

O que você acha que é essa força?

[Sara]

É o rio. É a floresta. Chega e fala: “Tá falando besteira, mulher. Porque eu preciso de ti. Nós precisamos de cada um de vocês”. Então é isso. A gente não desiste ainda. A gente não desistiu ainda. Porque o rio, ele é a nossa maior inspiração. É a nossa maior força de resistência.

[Isabel Seta]

Quando a Sara me falou isso, eu voltei a pensar nos rios da minha cidade. Eles começaram a ser mortos há muito tempo. Eles também foram desviados, concretados e asfixiados. E mesmo que alguma vida continue resistindo neles, e que as margens até ganhem ciclovias e projetos de revitalização, não dá pra gente dizer que tem um grande movimento da sociedade paulistana para recuperar esses rios. Se a gente ainda conseguisse ouvir, o que os nossos rios diriam?

[Sara]

Ele está resistindo ali, isso para nós é gratificante, a gente tem força. Porque quem tá aguentando o pepino todo, aguentando tudo isso é ele. Então, a gente tem força para poder falar em nome dele.

[Isabel Seta]

Se o rio Xingu ainda não morreu é por causa da luta de muita gente. Principalmente dos beiradeiros e dos indígenas, que falam com o Xingu e pelo o Xingu. E, por isso mesmo, não pretendem desistir. Eles ainda querem garantir um futuro. 

[Sara]

As pessoas falam assim: “ai, é fato consumado”. Tá certo é fato consumado até quando a gente permitir. Porque enquanto a gente tiver vida, não vai ser fato consumado, não!”

[Isabel Seta]

Esse foi o podcast Xingu em disputa, uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Para fazer essa série, eu li centenas de páginas de documentos oficiais e entrevistei mais de 25 pessoas, algumas que você ouviu aqui. Eu deixo meu agradecimento a todas elas. E agradeço a você também, que chegou até aqui. Muito obrigada por acompanhar essa história. 

E se mexeu com você ou despertou o seu interesse, te digo que essa é uma das muitas histórias de Belo Monte. O gigantismo da usina significa que seus impactos também são muitos. Eles vão além dos tratados nesta série. A hidrelétrica também trouxe também trouxe consequências para diferentes povos das várias Terras Indígenas da bacia do Xingu, para toda zona urbana de Altamira, pros municípios do entorno, para diferentes espécies de animais e plantas. Muitos desses impactos vêm sendo relatados em livros, reportagens, documentários e pesquisas. Então, quem quiser, pode seguir na trilha dessas histórias. 

Esse podcast foi produzido e escrito por mim, Isabel Seta, que viajei para Altamira com apoio  do Instituto Socioambiental. A edição dos roteiros é de Giovana Girardi. Sofia Amaral fez a direção da locução e a coordenação geral da série. A pesquisa de arquivos é da Rafaela de Oliveira, da Stela Diogo e minha. A locução foi gravada no estúdio da Agência Pública, com trabalhos técnicos da Stela Diogo e do Ricardo Terto. O design de som, edição e finalização são do Pedro Pastoriz, com trilhas sonoras do Epidemic Sound. A identidade visual é do Matheus Pigozzi. A equipe de divulgação é formada por Marina Dias, Lorena Morgana, Renata Cons, Leticia Gouveia, Ethieny Karen, Ester Nascimento, Edgar Chulve e Vanice Christine. Nesse episódio, usamos áudios da TV Globo, da TV Brasil, da Band Jornalismo e do canal no Youtube da Norte Energia. A gente usou também material do Instituto Socioambiental captado pela fotógrafa Jennifer Bandeira. Obrigada pela companhia e até uma próxima. 

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