O que acontece com um rio quando ele deixa de ter água suficiente para se manter? Desde que o Xingu teve suas águas barradas pela usina hidrelétrica de Belo Monte, indígenas e ribeirinhos sentem na pele a resposta dessa pergunta. Na Volta Grande do Xingu, trecho do rio de cerca de 130 quilômetros de extensão, eles foram os primeiros a sentir o impacto do controle das águas, imposto pela usina. Se antes o rio enchia e secava conforme as estações, num ciclo natural criado ao longo de milênios, agora as águas respondem à operação da hidrelétrica.
A usina e o governo federal sempre minimizaram os impactos dessa transformação, denunciados pelos povos locais. Por isso, os moradores resolveram que eles mesmos iam levantar provas dos problemas. E nenhuma evidência se mostraria mais visível do que episódios de morte em massa de ovas de peixes. Neste episódio, a repórter Isabel Seta nos leva para viajar pela Volta Grande com beiradeiros e indígenas que fazem parte dessa iniciativa inédita de monitoramento e descobrir o que eles vêm registrando.
Leia abaixo o roteiro do episódio na íntegra:
[Isabel Seta]
Paramos na beira do rio para esperar a família da Sara, que chegou na famosa canoa de alumínio do pai dela, que brilhava no sol forte. Vi primeiro o seu valeriano, um senhor alto, imponente, com a barba branca que contrasta com a pele escura, boné na cabeça, pilotando no motor. Na frente dele vinha a única mulher do grupo, a Sara, chapéu vermelho, camiseta azul, do lado do marido, o Zeca, também protegido por um chapéu. Na ponta da canoa vinha o Orlando, irmão da Sara, com uma camiseta de futebol com seu apelido escrito, Cocão. Ele também de boné.
Daí eu me dei conta. Todo mundo tinha coberto a cabeça, menos eu, meu primeiro erro de principiante naquele sol forte. O segundo veio quando eu fui entrar na canoa e quase caí, encharcando a minha calça. Disfarça. Fomos navegando o rio acima, até que o seu valeriano virou a direção da canoa e encostou num ponto que eu nem achava que dava pra desembarcar, de tão escondido pelas plantas que cresciam nas margens. Aquela ilha de mata densa era nosso primeiro destino naquela manhã de fevereiro de 2025.
A gente foi andando em silêncio, o som dos nossos passos marcados pelos estalos das folhas secas no chão. Eu caminhava olhando pro chão, primeiro porque eu não queria tropeçar em nenhuma raiz e passar vergonha de novo, mas também porque eu estava procurando formigas saúvas, ou melhor, os ninhos delas e os caminhos que elas abrem no chão. Essa era uma pista que tinham me dito para procurar, e logo eu vi, vários ninhos, bem grandes, com cara de que foram construídos tinha tempo.
Já o resto do grupo estava mais preocupado com as pistas acima do chão. Dava pra sentir a apreensão deles. Todo mundo com os olhos nas árvores, procurando frutos nos galhos. Mas nada. Aquela altura da viagem eu já tinha aprendido que folhas secas, saúvas e a ausência de frutos são sinais de que as coisas estão erradas, bem erradas. Sinais de um desequilíbrio, que só quem sabe entende.
[Orlando]
Pé de ingau. Isso daqui ó não acontecia.
[Sara]
E aquelas formigas, as formigas saúvas.
[Isabel Seta]
Mais uns metros pra frente, veio a confirmação que todos eles já sabiam que ia vir. E que eles tanto temiam. A gente chegou numa clareira com quatro réguas de madeira fincadas no chão. Elas estavam ali para medir o nível do rio, que antes já teria inundado a mata. Mas estavam todas no chão seco.
[Sara]
Que nem aqui, a gente tá numa piracema. Uma piracema sem água. Me diga, aonde que o peixe vai reproduzir?
[Isabel Seta]
Eu sou Isabel Seta e esse é o segundo episódio de Xingu em Disputa, um podcast da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Nessa série de quatro episódios, contamos a história da transformação forçada do Xingu, de rio fonte de vida para reservatório fonte de energia. É a história também das consequências que Belo Monte, a segunda maior hidrelétrica do país e a quinta maior do mundo, trouxe pro rio e pros seus habitantes. Uma história que ainda não acabou e, por isso mesmo, precisa ser contada.
Se você ainda não ouviu o primeiro episódio, sugiro que você volte lá pra entender essa história desde o começo. Mas se você já ouviu o episódio 1, deve-se lembrar que a gente estava na Volta Grande do Xingu, onde a construção da hidrelétrica atropelou todo mundo. Cientistas, técnicos e, principalmente, os ribeirinhos e indígenas.
[Sara]
Foi assim, a gente fala de goela abaixo porque a gente gritou. A gente falou que não queria a hidrelétrica, mas ela está aí.
[Isabel Seta]
A usina e o governo federal sempre minimizaram os impactos apontados pelos povos locais. Eles, então, resolveram que eles mesmos iam levantar provas de todos os problemas que eles estavam enfrentando. E nenhuma evidência se mostraria mais visível do que a mortalidade em massa de peixes.
Episódio 2: O sacrifício da Volta Grande.
O cenário de seca que a gente viu naquela manhã era na ilha Pacu de Seringa, uma das muitas ilhas da Volta Grande, no rio Xingu, no coração do Pará. Naquela altura do ano, fevereiro, era pra água do rio já ter entrado, inundando a mata.
E nessa época era pra ter água aqui, em fevereiro?
[Sara]
A água era pra tá.
[Isabel Seta]
Onde era pra estar assim?
[Sara]
Lá em cima.
[Isabel Seta]
Na 4?
[Sara]
Sim, tá inundando isso aí tudo pros peixe andar livremente!
[Isabel Seta]
Essa que você está ouvindo falar desde o início é a pescadora Sara Rodrigues Lima, que você conheceu no primeiro episódio. Como a Sara disse, era pros peixes estarem nadando livremente porque, quando o rio seguia seu fluxo natural, as águas inundavam parte da mata, criando uma condição que é, ao mesmo tempo, um lugar e um tempo. E que todo mundo lá espera ansiosamente: a piracema.
Piracema é um lugar, como um igarapé, um fio de água, um laguinho, áreas que no geral são protegidas e adequadas pros peixes poderem se acasalar e depositar suas ovas em paz. Mas é também um tempo. O período da piracema. Ou seja, os meses do ano em que a água do Xingu, alimentada pelas chuvas do inverno amazônico, sobe e inunda esses espaços protegidos, nas matas das ilhas e nas margens do rio. Criando as condições ideais para as ovas se desenvolverem até virarem os alevinos, que são os peixinhos ainda bebês.
[Seu Valeriano]
Meu irmão, vou lhe falar uma coisa, eu moro bem ali, óh, a água entra bem ali, não tem um poução que tem bem ali, tem um baixão lá que era onde o peixe entrava, rodava por cima, no capinzão e voltava de novo pro rio, fazia assim, uma ilha.
[Isabel Seta]
Esse é o seu Valeriano, também pescador e pai da Sara.
[Seu Valeriano]
Isso de longe, daqui o rio passava lá, daqui você estava escutando o bagaço que trouxe pra lá. 100 mil peixes aí, tudo roncando, desovando, era um absurdo.
[Isabel Seta]
Já não é mais assim. Um antigo ciclo que foi, nas palavras da Sara:
[Sara]
Ele foi violado, ele foi arrancado à força pela usina.
[Isabel Seta]
A cena de mar de peixes que o seu Valeriano descreveu parou de acontecer faz um bom tempo. Mais precisamente desde o final de 2015, quando a água do rio Xingu foi barrada para alimentar a usina hidrelétrica de Belo Monte. Desde então, a água do rio está em disputa. De um lado, os beiradeiros, como a família da Sara, e os povos indígenas, além de muitos outros seres (os peixes, as tartarugas, as árvores e as plantas das florestas aluviais). Todos eles querem mais água para um longo trecho do Xingu, a Volta Grande. Do outro lado, a empresa que administra Belo Monte, que quer mais água para gerar energia elétrica.
[Sara]
Então, a falta da água, a falta do Xingu em inundar os igapó para as piracema, para os peixes poderem se reproduzir, a falta do Xingu subir em lavar, em cobrir o sarão para que ele possa brotar quando o rio secar. Não é? Então, isso tudo teve um impacto muito grande.
[Isabel Seta]
É para garantir que quem não mora na Volta Grande possa mesmo ver esses impactos, que a família da Sara passou a monitorar a situação da piracema na ilha Pacu de Seringa.
[Sara]
Você vê, a água numa situação que tá dessa daí, da cor, que não têm, que aqui não chegou. E nem vai chegar.
[Isabel Seta]
Não vai chegar porque a água tá indo para outro lugar, para as turbinas da hidrelétrica. Lembra? Para Belo Monte funcionar sem um grande reservatório, evitando o alagamento de terras indígenas, fizeram a usina a fio d ‘água. Para isso, barraram o Xingu logo acima da Volta Grande, que é esse trecho de uns 130 quilômetros em que o rio faz uma grande curva. Entre 70% e 80% da água que antes corria por essa região é agora desviada para a usina poder funcionar e gerar energia elétrica. Só que essa água alimentava muitas, muitas vidas.
[Sara]
Então, mês que vem já acaba a reprodução, porque a reprodução do peixe aqui é dezembro e janeiro. Sempre é primeiro aqui na Volta Grande do Xingu. Então a água não subiu agora, por esses dias, ela tá subindo. Mas pouquíssimo demais. É uma água que não dá pra entrar pros igapó para reprodução do peixe.
[Isabel Seta]
Aquela era a minha sexta piracema naqueles dias em Volta Grande. E em todas encontrei praticamente um mesmo cenário:
[Raimundo]
Não tem reprodução de peixe, todas as piracemas secas, seca mesmo, seca, seca.
[Isabel Seta]
Esse é o Raimundo da Cruz e Silva, outro personagem fundamental nessa história. E meu principal guia na Volta Grande. O seu Raimundo é beiradeiro, como se chamam muitos dos ribeirinhos na Amazônia, porque são os que vivem nas beiras dos rios. Aos 49 anos, ele é uma liderança reconhecida na comunidade Goianinho, lá em Volta Grande. Que ele diz que é o seu lugar preferido no mundo.
[Raimundo]
A primeira vez que eu coloquei o pé aqui foi em 94. Em 94, quando eu conheci minha esposa lá na rua, os pais dela já eram daqui. Então, eu vim para cá, e eu amei esse lugar.
[Isabel Seta]
Acho que dá pra dizer que a paixão do seu Raimundo por aquele canto da Volta Grande vem da paixão pela Rose, com quem ele está casado há três décadas. Desde então, ele se dedica a cuidar da comunidade. E mais recentemente, a lutar contra os impactos de Belo Monte.
[Raimundo]
A curimatá aqui na nossa região acabou. Não existe mais, não. Tu não vê que a curimatá está aqui.
[Isabel Seta]
O curimatá que ele está falando é uma espécie de peixe que, antes da usina, era bem comum em Volta Grande. Uma das preferidas da galera da região. Mas desde que a hidrelétrica começou a funcionar, a população de curimatá vem diminuindo ano após ano na avaliação dos beiradeiros. A ponto de hoje serem raras de encontrar. Foi justamente o sumiço das curimatás pequenas que levou a uma ação inédita dos povos na Volta Grande. Mas para chegar nela, a gente precisa voltar um pouco no tempo.
[Dilma – Arquivo de TV]
Senhoras e senhores, com a palavra, a presidenta da república.
[Isabel Seta]
Era início de maio de 2016. Há poucos dias de ser afastada do seu cargo pelo Senado, a presidente Dilma Rousseff foi até Altamira, inaugurar a operação comercial da hidrelétrica que ela tanto defendeu.
[Dilma – Arquivo de TV]
Essa usina, ela é do tamanho desse povo, ela é grandiosa, é uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra, grandiosa. Como uma obra de engenharia, ela causa um grande impacto.
[Isabel Seta]
É, acho que esse impacto que a presidente Dilma tinha em mente era outro. Mas a entrada em operação da usina, ainda que não com todas as turbinas, marcava o início da desidratação da Volta Grande.
[Raimundo]
O primeiro impacto foi justamente a falta de água mesmo. A água começou a diminuir, em 2016 já deu uma reproduçãozinha pequena, mas ainda deu água dentro da piracema, em 2017 a gente já viu que diminuiu. E diminuiu também a quantidade de peixe no rio.
[Isabel Seta]
Em 2016, a diminuição da água do rio estava ligada a dois fatores combinados: o barramento total do Xingu e, para piorar, uma enchente fraca. Isso porque naquele ano choveu muito pouco, especialmente nas cabeceiras do rio. Um reflexo do forte El Niño que começou em 2015. Mas ia ficar pior.
[Raimundo]
A gente começou já a ver que não tinha mais aquela quantidade de peixe. A partir de 2017, 2018, aí começou, aí todo ano foi só diminuindo, só diminuindo.
[Isabel Seta]
Conforme as turbinas da hidrelétrica iam sendo instaladas, aumentando a capacidade de geração de energia, mais a água era desviada da Volta Grande. Em novembro de 2019, as 18 turbinas da casa de força principal foram totalmente instaladas. E naquele mês a hidrelétrica entrou em plena operação comercial. Inaugurada, inclusive, pelo ex-presidente Bolsonaro. Foi nesse momento que entrou em cena um elemento importantíssimo, definidor, eu diria, nessa história de disputa de água. O chamado Hidrograma de Consenso.
Em linhas bem gerais, o hidrograma é um esquema que determina como fica a vazão do Xingu com a usina em funcionamento. O governo e a Norte Energia, a concessionária que opera a usina, definiram uma vazão mínima que deve ser liberada para a Volta Grande, com o objetivo de reproduzir, ou de tentar reproduzir, o pulso sazonal de cheia e seca do Xingu. Basicamente é uma tabela que diz que no mês tal tem que ter no mínimo tanto de água por segundo liberado pra Volta Grande. A ideia era tentar conciliar os dois usos da água, para a geração de energia e para a vida de todos os seres na Volta Grande. Daí o tal consenso. Mas não se engane. De consenso esse hidrograma não tem nada. Para começo de conversa, em nenhum momento ele foi combinado com os moradores da Volta Grande. A definição do hidrograma foi feita entre a empresa e o Estado, goela abaixo do povo mesmo, como tinha dito a Sara.
Naquele dia, em fevereiro, antes de sair para a ilha Pacu de Seringa, eu estava conversando com o seu Raimundo. A gente estava tomando um cafezinho na mesa da varanda da casa dele e da Rose, na comunidade de Goianinho, a uns poucos metros do rio. E eu perguntei se antes do desvio de água começar, eles tinham sido avisados sobre o hidrograma pela empresa.
[Raimundo]
A conversa da Norte Energia é assim, que o rio ia ficar natural. Natural, não ia ter impacto aqui.
[Isabel Seta]
Natural. Não ia ter impacto. Difícil de imaginar como isso ia ser possível, considerando a diferença enorme entre a vazão do rio antes e a vazão do hidrograma. Só para dar uma ideia, fevereiro, o mês que eu estava lá, tinha uma média histórica de mais de 13 mil metros cúbicos de vazão. O hidrograma definiu como vazão mínima para fevereiro 1.600 metros cúbicos. Era 13 mil, virou 1.600.
[Raimundo]
É tanto que a Volta Grande do Xingu, a Volta Grande do Xingu, foi impactada depois de 2019. Até 2019 ela não era tida como impactada.
[Isabel Seta]
É que naquele ano, com a usina já operando em plena capacidade, os danos causados pelo desvio da água ficaram mais do que evidentes. O Ibama logo começou a produzir documentos técnicos, relatando problemas tipo: dificuldades na navegação do rio, diminuição na quantidade e qualidade de peixes, desaparecimento de algumas espécies e redução das áreas que antes inundavam. O Ibama considerou que era impraticável continuar daquele jeito. Era preciso liberar mais água para a Volta Grande.
E aí foi o começo de uma batalha judicial sobre o hidrograma entre o Ibama e a Norte Energia. É uma história longa, cheia de detalhes técnicos, que eu acho melhor resumir. No final das contas, a Norte Energia levou a melhor. Mudaram um pouco o esquema, a operação seguiu, e o desvio da maior parte da água da Volta Grande continuou. Era hora dos povos locais tentarem outras estratégias.
[Diel]
A gente tava indo pescar e não tava vendo curimatazinha pequena, né? Então a gente parou pra pensar e falou: “opa, tem alguma coisa errada”.
[Isabel Seta]
E aqui a gente volta para o sumiço das curimatás, que o seu Raimundo tinha comentado.
[Diel]
Se não tem curimatá pequena, significa que elas não estão se reproduzindo.
[Isabel Seta]
Quem me falou mais sobre esse problema foi o Josiel Pereira, mais conhecido como Diel. O Diel é do povo Juruna, um povo indígena canoeiro que se autodenomina Yudjá, “os donos do rio”. Aos 33 anos, Diel é uma das lideranças da aldeia Miratu, da terra indígena Paquiçamba, localizada bem no meio da Volta Grande. E ele é outro personagem fundamental nessa história, porque desde o começo ele foi atrás de buscar evidências dos impactos da hidrelétrica. Até porque os indígenas sabiam o que ia acontecer antes mesmo da construção da usina.
Lembra que eu contei do cacique Juruna que fez uma previsão sombria para um procurador da república sobre os problemas que a falta de água ia causar? É que os Juruna sempre viveram nas ilhas e nas margens do Xingu, e conhecem, há muitas gerações, os hábitos de todos os seres do rio, inclusive das curimatás. Eles sabem que elas só se reproduzem nas piracemas. Então era só seguir a lógica: se não tinha curimatá pequena no rio, não estava tendo reprodução. Ou seja, tinha algo errado nas piracemas. Mas não adiantava só os Juruna desconfiarem disso. Eles precisavam provar. E o Diel logo sacou isso.
[Diel]
E aí foi quando a gente começou a monitorar as piracemas. E aí aqui, nesse local onde a gente está na Ilha do Zé Maria, a gente tem essas réguas aqui e elas servem para a gente ver o nível da água que está aqui nessa piracema.
[Isabel Seta]
As réguas foram instaladas em uma parceria com os professores da Universidade Federal do Pará e com o Instituto Socioambiental. Nascia então o Monitoramento Ambiental Territorial Independente, o MATI, que com o passar do tempo ganharia o reforço também dos ribeirinhos, como o seu Raimundo e a família da Sara. E, ainda, de pesquisadores da Universidade de São Paulo e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o INPA.
Em fevereiro, eu vi de perto o trabalho da equipe do MATI, coordenado justamente pelo Diel.
[Diel]
Desde 2019, quando eu comecei a monitorar, não houve reprodução aqui nessa piracema. Porque agora que seria a época de reprodução, né, dos peixes, agora que eles estavam entrando para desovar. E como podem ver, está totalmente seco.
[Isabel Seta]
Naquele dia, na piracema do Zé Maria, o Diel me contou porque o monitoramento do MATI começou bem ali.
[Diel]
E aqui é um local que a gente identificou como piracema Baixa, porque a gente consultou os mais velhos, né. Então, quem indicou essa piracema foi meu pai, que hoje está com 75 anos, né. Ele que indicou essa piracema pra nós, então ele contou o histórico dessa piracema para nós e ele falou que antes da barragem, no final de novembro, entrando em dezembro, já entrava peixe aqui.
[Isabel Seta]
Esse é um dos grandes diferenciais do monitoramento do MATI. Ele é completamente informado pelo conhecimento tradicional, mantido pelos mais velhos e experientes e passado de geração em geração.
piracema baixa significa que ela é uma das primeiras a alagar, por estar num nível mais próximo do nível do rio. Ou seja, quando o período de cheia começa, a água não precisa subir tanto para já conseguir alcançar a piracema e as curimatás começarem a entrar para desovar.
[Diel]
Mas aí agora depois da barragem não entrou mais água. A água que chega aqui em abril e é uma água que não é pra questão reprodutiva, é uma água que não serve, uma água que não vale a pena, né. Até porque a desova, ela acontece ali mês de… Acontecia antes, né. Novembro, dezembro, janeiro.
[Isabel Seta]
A falta de água na quantidade e no período adequado para ter reprodução só foi ficando mais e mais evidente, ano após ano. Os pesquisadores indígenas do MATI percebiam isso no monitoramento, mas os reflexos estavam sendo sentidos por todo mundo na Volta Grande.
[Raimundo]
E a gente sempre procurava nossos direitos, mas sempre era barrado, né?
[Isabel Seta]
De novo aqui o seu Raimundo. Ele me contou que foi nesse momento de desesperança, nos idos de 2022, que rolaram as primeiras aproximações para os beiradeiros passarem a fazer parte do MATI. O seu Raimundo se animou.
[Raimundo]
E eu disse, eu digo, a oportunidade é essa de nós mostrar o que realmente está acontecendo dentro da Volta Grande. É porque não adianta a gente ficar gritando para cá, para lá, se não tem uma ajuda, tipo, um setor mais científico, uma coisa mais científica para mostrar. É porque só gargalo, meu amigo, não dá.
[Isabel Seta]
Para ele, era a chance de tentar mudar a conversa e, quem sabe, falar uma língua que a empresa ouvisse. A língua da ciência ocidental, da universidade. Já que a língua dos povos e dos conhecimentos tradicionais, a empresa ignorou desde o começo.
[Raimundo]
Precisa mostrar o que está acontecendo na Volta Grande, dentro da nossa comunidade, porque aqui é a nossa vida, né? A gente tem que mostrar o que está acontecendo.
[Isabel Seta]
O MATI é uma iniciativa inédita no Brasil, uma parceria entre o conhecimento tradicional e a ação dos indígenas e beiradeiros, com o conhecimento científico, de pesquisadores de universidades e institutos, para reunir as evidências dos impactos na Volta Grande.
[Diel]
Com certeza, o conhecimento da gente, tanto nós indígenas como ribeirinhos, o nosso conhecimento influenciou muito na academia, com os professores também, os professores tinham outros olhares, como fazer monitoramento, mas também eu acredito que eles também, como professores, eles sempre escutaram a gente, sempre deram voz ao nosso conhecimento. Eu acho que isso é o que faz o monitoramento ter essa complexidade, ser o que é hoje. E tanto a gente também, como a gente aprendeu com eles também. Então está uma troca de saberes que está sendo muito bem importante.
[Isabel Seta]
Os pesquisadores formais, digamos assim, trouxeram a metodologia científica e a técnica rigorosa de amostragem. Mas eles mesmos se veem como coadjuvantes no MATI. Os pesquisadores principais são os da “universidade” da floresta, 15 indígenas e ribeirinhos que monitoram as piracemas. Há alguns meses, eles publicaram seu primeiro artigo científico em uma revista internacional. E num reconhecimento bem significativo, quem assina primeiro são os indígenas e ribeirinhos, entre eles alguns que você já conheceu aqui, o Diel, o seu Raimundo, a Sara e o seu Valeriano.
No artigo, os pesquisadores defendem a criação de um grupo de trabalho que inclua as comunidades locais para que possa ser definida uma nova vazão para a Volta Grande. Essa vazão teria que equilibrar as necessidades dos ecossistemas e a produção de energia. E teria que passar por uma revisão de tempos em tempos, por causa das mudanças climáticas.
E eu vou ler aqui só um trechinho da conclusão deste artigo: “A real magnitude dos impactos em curso da hidrelétrica de Belo Monte na região da Volta Grande só vem sendo revelada pela iniciativa das comunidades locais, que começaram o monitoramento independente dos seus territórios. Fruto da percebida desconexão entre o monitoramento oficial, conduzido pela Norte Energia, e as experiências diárias, percepções e mudanças no modo de vida das comunidades”. Em outras palavras, é uma disputa técnica.
[Raimundo]
Para a empresa, as coisas estão andando normalmente, tudo caminhando perfeitamente, né? Só mandam dados assim: ah, como a coisa está maravilhosa. Quando o pessoal da Norte Energia abre a boca aí, pra quem não conhece, meu amigo, diz: “rapaz, eu quero ser um ribeirinho, eu quero ser um indígena, [ri] eu quero morar naquela região, porque as coisas lá acontecem”, tá entendendo? “Porque para lá, para eles, está tudo a mil maravilhas”. É porque você não vai fazer um relatório, né, e mandar para um órgão licenciador dizendo que isso aqui está mal feito, isso aqui está desse jeito, isso aqui está errado, ele vai colocar tudo que está tudo perfeito, né.
[Diel]
E o MAT hoje é um monitoramento que ele vem para mostrar a realidade que está acontecendo na Volta Grande, né? Colhendo os dados, informações para poder rebater os monitoramentos que a Norte Energia vem fazendo, né?
[Isabel Seta]
O seu Raimundo e o Diel estão falando dos relatórios que a Norte Energia precisa mandar para o Ibama, desde que em 2023 o órgão ambiental determinou que a empresa também tinha que monitorar as piracemas, como o MATI já vinha fazendo. A Norte Energia diz que fez um levantamento com pescadores locais e identificou mais de 140 áreas de piracema na Volta Grande. Para o Ibama, a empresa diz que monitorou 22 delas semanalmente. A gente foi procurar a empresa para perguntar como é que foi esse monitoramento e com qual metodologia. Eles responderam que: “boa parte dessas áreas passa a ser inundada já no início da cheia, garantindo condições adequadas para a reprodução de muitas espécies”. A gente vai deixar a nota completa com o posicionamento da Norte Energia lá no nosso site, apublica.org.
Acontece que os pesquisadores do MATI me explicaram que várias dessas piracemas que a Norte Energia levantou estão em igarapés. Um igarapé é basicamente um córrego que muitas vezes deságua em um rio maior. Isso significa que ele tem o seu próprio fluxo de água, criando um ambiente que não serve para a reprodução de todas as espécies. O que os moradores da Volta Grande sabem muito bem.
[Raimundo]
E o que acontece? Esse igarapé, ele é mais de enxurrada, ele joga, ele fica correndo forte demais. Ele não tem o mesmo ambiente do igapó. O igapó é aquela marasma, aquela água parada. O igarapé não, o igarapé é aquela água corrente todinha.
[Isabel Seta]
O Ibama se ligou nisso e disse basicamente que não adianta a Norte Energia olhar apenas para as piracemas em igarapés, porque elas não refletem a diversidade de habitat de reprodução na região. Eu também perguntei para a empresa se eles já incorporaram essas orientações do Ibama, mas eles não mandaram nenhuma resposta sobre isso.
[Raimundo]
Vai ter algum peixe que vai reproduzir lá? Claro. Com certeza tem tipos de peixe que reproduzem, na água mais corrente, não reproduzem na água tão parada, que nem a curimatá, que praticamente sumiu, né? Mas aí a pergunta é, essa reprodução é suficiente que tá dando nesses igarapés pra ter uma sobrevida na Volta Grande?
[Isabel Seta]
É justamente esse o principal ponto que o MATI procura responder. E as evidências que eles vêm reunindo são assustadoras.
[Diel]
2023, foi dia 3 de fevereiro, quando eu vim aqui, né? Os peixes tinham desovado e as ovas tinham ficado no seco. 2024, foi dia 8 de fevereiro também, quando eu vim, né? Caiu uma chuva grande, eu vim aqui. E tinha muita ova no seco também, os peixes entraram, a água tinha secado e as ovas tinham ficado no seco. E esse ano, é, agora, 2025, né? Quando eu vim aqui, foi dia 19 de janeiro.
[Isabel Seta]
Isabel: Mesma coisa?
[Diel]
Mesma coisa, as ovas no seco.
[Isabel Seta]
Ovas no seco é uma sentença de morte. As ovas de peixe precisam ficar na água para sobreviver. Mas não é o que tem acontecido na piracema do Odilo, outra piracema com o nome de gente. Aquele dia 3 de fevereiro de 2023, que o Diel citou, foi a primeira vez que ele encontrou um cemitério no que devia ser um berçário, como revelou na época a agência de jornalismo Sumaúma.
A antropóloga Thais Mantovanelli, do Instituto Socioambiental, que participa do trabalho do MATI, estava lá também. E ela me contou que quando eles chegaram na piracema e se depararam com as ovas no chão seco da mata, não conseguiram conter as palavras de desespero. Até que eles começaram a andar pela área e perceber que tinham muito mais ovas do que imaginavam. Era um tapete de ovas no chão sem água. Metros e metros de ovas que jamais se tornaram peixes. A cada passo, as palavras deixaram de dar conta do horror. Thais e Diel ficaram em silêncio. Só faziam chorar.
O pior é que esse não foi o único episódio de morte em massa. Aconteceu a mesma coisa em 2024. E de novo no começo desse ano. Três anos de curimatás perdendo seus filhotes. Pouco antes de eu chegar na Volta Grande, tinha acontecido de novo. Dessa vez, em outra piracema.
[Jani]
Óia o tanto de peixinho pulando dentro, ainda tão vivo esse aqui. Mas esses outros aqui. Aqui também ó. Óia só aí a quantidade, muito muito muito, uma tristeza.
[Isabel Seta]
Quem encontrou as ovas no seco foi a Jainy de Almeida, que também faz parte do monitoramento do MATI. Alguns dias depois eu encontrei com ela nessa piracema. Ela me contou que quando ela chegou, a água devia ter acabado de descer, porque ela ainda conseguia ver os peixinhos dentro das ovas, se mexendo. É que o problema não é só a quantidade de água, mas também o efeito sanfona causado pela usina.
O hidrograma define a vazão mínima que a Norte Energia precisa liberar para a Volta Grande por mês. Mas além desse mínimo, o controle da vazão é uma operação diária, que responde não mais ao antigo ciclo natural, mas sim às determinações da Agência Nacional de Águas e às ordens do Operador Nacional do Sistema Elétrico. Quando é preciso colocar mais energia no sistema nacional, as comportas da barragem se fecham e menos água corre para a Volta Grande.
O hidrograma tem regras que determinam que essa variação da vazão não pode ser muito grande em um mesmo dia. Mas o que os moradores da Volta Grande vêm denunciando é que tem vezes que o rio enche, ou desce, vaza, como eles dizem, da noite para o dia, bagunçando a vida das pessoas e dos peixes.
É esse efeito sanfona, como chamam os beiradeiros, que causa esses episódios de morte em massa. Quando tem um pouco de água, as curimatás entendem que é hora de entrar para desovar. Mas daí, em poucos dias, a água recua, volta para o rio, e as ovas vão parar no seco. Às vezes, até peixes adultos ficam presos, sem conseguir voltar para o rio, e acabam morrendo.
Quando eu estava lá na ilha Pacu de Seringa, eu perguntei para o Sário e para o seu Valeriano sobre esse problema do efeito sanfona:
[Seu Valeriano]
Isso daí é uma derrota muito grande.
[Sara]
Principalmente para o peixe.
[Seu Valeriano]
principalmente para o peixe, confunde tudo.
[Isabel Seta]
Confunde porque é a língua da hidroelétrica, e não da natureza, que os peixes sabiam falar. E além de não conseguirem se reproduzir, os peixes também parecem não estar comendo como antes. O Diel explica:
[Diel]
Antes desse… da barragem de Belo Monte, até esses locais aqui, além de ser um local de desova, era um local de alimentação dos peixes. O Igapó, ele inundava, né, um metro, dois metros de água e várias frutas caíam, né. Tanto o pacu, como o matrinxã, a curimatá que entrava para fazer a desova, para se alimentar também, trairão, traíra, arraia, tudo você via dentro dessas ilhas, a gente entrava pra pescar e via, né. E agora não dá mais, né. Essas frutas caem tudo no seco.
[Isabel Seta]
Os pesquisadores do MAT trabalham para registrar tudo isso nas 12 piracemas que eles monitoram em Volta Grande. Eles registram se as árvores estão dando flores e frutos, e se os frutos também estão ficando secos. Mais recentemente, o monitoramento também está olhando para o lençol freático e para as árvores, para descobrir se elas estão deixando de crescer por falta de água.
É uma relação tão próxima a dos peixes com os frutos que vai parar até no nome deles. A ilha Pacu de Seringa, por exemplo, onde fica a piracema monitorada pela família da Sara, tem esse nome porque tem um tipo de pacu, um peixe gordo muito apreciado na Volta Grande, que come justamente o fruto da seringueira. Na ilha, eles vinham em bandos para fazer banquete. Hoje, a água não chega nas matas. Ano a ano, os beiradeiros percebem a diminuição dos frutos. A Sara tem certeza que os peixes estão passando fome.
[Sara]
Antigamente, quando a gente abria, principalmente, um pacu, a banha do pacu era diferenciada, era uma banha clara. É uma banha, assim, onde a gente tinha gosto de abrir um peixe para ver o que tinha dentro. Ah, será que ele está gordo? Sempre estava gordo, porque ele tinha alimentação. Hoje não, a gente pega um peixe. Além dele estar muito magro, ele está cheio de verme e cheio de pintinha preta. Principalmente, o pacu-seringa era um pacu muito, muito apreciado aqui na Volta Grande, que é um pacu de carne mole, era um pacu mesmo, assim, que era chamado “isso aqui é peixe de primeira”, leva quase um ano para a gente pegar um pacu-seringa. Quando a gente pega, a coloração que ele tinha, uma coloração alaranjada, aquele alaranjado mesmo, assim, que tu via de longe, assim, chega a cor da escama do pacu-seringa, era tão, assim, quando o sol batia, assim, brilhava, parecia um diamante. Hoje em dia, ele perdeu, ficou opaco, a cor dele, e sem contar que está magro, não existe mais, assim, ele está, parece, assim, tipo que pegou uma doença, assim, não está conseguindo se desenvolver mais.
[Isabel Seta]
Opacos, magros, doentes, os peixes também estão ficando meio estranhos. A família da Sara foi uma das primeiras a encontrar a pescada, uma outra espécie que era comum na região, com um formato estranho. Em vez de alongada, como de costume, era uma pescada arredondada, com a cauda mais curta. Outros pescadores e beiradeiros também me contaram que viram essa pescada esquisita.
Essa anomalia acabou chamando a atenção de pesquisadores da Federal do Pará, que até publicaram um artigo científico em 2023 descrevendo essa má formação. Segundo eles, ela pode estar sendo causada nos estágios iniciais do desenvolvimento dos peixes. E por causa de dois fatores: primeiro, pela redução do fluxo de água no Xingu, que está sendo provocada pela hidrelétrica. E segundo, pela presença de metais pesados nas águas, que vêm dos garimpos ilegais e do uso de agrotóxicos na agricultura. Agora, é curioso que esse trabalho científico contou com o financiamento da Norte Energia, mas para o Ibama, a empresa diz que está tudo bem com os peixes da Volta Grande.
Para os beiradeiros indígenas, não está nada bem, e eles sentem isso todos os dias há anos, no prato e no bolso.
[Seu Valeriano]
Nós passamos dois dias pescando, nós passamos, a gente trazia, ele trazia, cansava de trazer 600 quilos de peixe, eu trazia 400, 500, que era só eu e minha esposa, viu? Esses outros ali traziam 300 quilos. O peixe era bastante, nós não adiantava, nós era tanto peixe que nós nem imaginava de se esforçar, porque peixe tinha bastante.
[Orlando]
Nosso salário mensal era entre 12 e 13 mil todo mês.
[Isabel Seta]
Esses são o seu Valeriano e o filho, Orlando. Pelo que eles me contaram, era uma renda confortável. E não só para eles, inclusive. Vários pescadores, tanto indígenas quanto beiradeiros, me falaram que viviam muito bem da pesca, que nunca precisaram de auxílio nenhum do governo, que tinham tudo o que precisavam e queriam para sustentar suas famílias e criar seus filhos. Essa realidade acabou.
[Orlando]
Nossos filhos, o que eles queriam, a gente dava, porque a nossa renda era boa. Hoje, para estar o que está hoje, a gente chega na casa da gente, o filho da gente chega e diz: “pai, eu quero isso dali, pai”. Poxa, para a gente, hoje, o que a gente está passando hoje, o que essa empresa velha fez com nós aí, essa maldita fez com nós hoje, é uma humilhação muito grande o que a gente está fazendo com a gente, para a gente estar passando o que está passando hoje.
[Isabel Seta]
O que ofereceram de alternativa? O que vocês estão fazendo?
[Orlando]
Nós? Olha o jeito que tá meu braço, óh…
[Isabel Seta]
O que o Orlando estava me mostrando era o braço dele, todo pipocado com feridas. Já o seu Valeriano me mostrou uma ferida grande, vermelha, bem no meio do pescoço, ainda longe de cicatrizar.
[Orlando]
Queimando castanha de caju para sobreviver.
[Isabel Seta]
A Norte Energia me disse que os monitoramentos que ela desenvolveu com a Universidade Federal do Pará, e que têm sido feitos ao longo de 13 anos, mostram que: “a maioria das espécies manteve a proporção de peixes maduros”. Proporção. A empresa não está falando de números absolutos. Nessa resposta que a Norte Energia me deu, ela reconhece que algumas espécies tiveram mudanças no padrão de reprodução, mas disse que isso estava previsto no estudo de impacto ambiental. E falou que o monitoramento do MATI tem “lacunas metodológicas relevantes e têm indicado alterações já previstas no licenciamento”. Para essas alterações, a empresa diz que faz ações de mitigação e compensação.
A percepção de muitos peradeiros é diferente. Para muitas das mais de mil famílias da Volta Grande, pescar ficou muito difícil. Se sustentar também. E determinações do Ibama não estão conseguindo resolver os problemas.
[Raimundo]
Foi em 2021, uma coisa que nunca tinha acontecido aqui. O meu filho estava na rua e ele disse: “pai, eu vou passar o final de semana aí”. Eu disse: “vem que nós vamos pescar”. E ele veio em setembro, o mês de setembro era o melhor período de peixe aqui, o mês de setembro. Era um período que, moço, pra tucunaré não tem período melhor não. E ele veio e nós fomos, aí que chegou cedo, nós saímos, fomos remando mesmo, batendo tela e remando. Nós saímos sete horas, chegamos lá onze horas, na hora do almoço. Nós não tínhamos pego um peixe, nós não tínhamos pego um peixe para poder se alimentar, né? Não, esse dia, esse dia eu falei, rapaz, foi tipo assim um balde de água fria. Eu digo, óh, acabou, acabou o peixe da Volta Grande. Acabou mesmo. E de lá pra cá está dramático.
[Isabel Seta]
Perguntei para o seu Raimundo se ele tinha vivido algo assim antes da usina. Ele deu uma risada melancólica. Antes da hidrelétrica, ele me falou que ninguém nem sequer fazia esse trajeto que ele e o filho fizeram nesse dia em 2021. Não precisava. Era só entrar no rio, rodar por coisa de uma hora e o peixe da semana estava garantido.
A ironia é que, bem nesse período que seu Raimundo falou, agosto e setembro de 2021, a hidrelétrica também não estava a pleno vapor. Bem longe disso, na verdade. Belo Monte foi obrigada a desligar 17 das 18 turbinas da casa de força principal. Estava funcionando só com uma, porque não tinha água, uma consequência da grave seca que tinha atingido o Brasil naquele ano. Isso só acirrou a disputa pela água na região. 2021 era governo Bolsonaro, e o então presidente do Ibama, Eduardo Bim, atropelou pareceres dos técnicos do órgão que recomendavam que a Norte Energia aumentasse a vazão do Xingu. Ele simplesmente foi lá e assinou um termo de compromisso ambiental com a empresa. O TCA, como é conhecido esse termo, até hoje dá o que falar em Volta Grande.
Ele determinava que a empresa poderia continuar tocando o hidrograma que estava secando a Volta Grande. Mas tinha uma contrapartida. A Norte Energia ia ter que investir 157 milhões de reais em medidas de mitigação e compensação para a região. As medidas incluíam criar ações experimentais de alimentação de peixes e tartarugas, fazer melhorias nas estradas e no saneamento da Volta Grande, e desenvolver programas de geração de renda para a população. Para pessoas que estavam acostumadas a todo dia sair para pescar e pegar peixes com a maior facilidade do mundo, foi dada a opção de criar tambaquis em tanques. Esses tanques são colocados dentro do rio com algumas centenas de tambaquis, que precisam ser alimentados todos os dias, duas vezes por dia, num programa que também é alvo de várias críticas.
Um dos beiradeiros com quem eu conversei, o seu Zeca, me disse que na primeira vez que a Norte Energia entregou para ele 500 alevinos de tambaqui, todos morreram. Porque eles foram levados no verão e a água estava muito quente para eles. Só na terceira tentativa o seu Zeca teve sorte. Só que o ciclo do tambaqui é de nove meses. São nove meses para o peixe crescer e poder ser vendido. Na última leva, o seu Zeca vendeu todos os que sobreviveram. Tirou 6 mil reais. 6 mil reais para nove meses.
Outra opção oferecida no TCA é a plantação de cacau, o fruto nativo da Amazônia. Não muito longe de Altamira tem uma cidade, inclusive, que se intitula como a capital do cacau, Medicilândia, com cooperativas que viram no cacau uma alternativa ao gado e que já trabalham também no desenvolvimento de chocolates mais finos. Mas na Volta Grande do Xingu, essa nunca foi uma tradição. Ninguém ali fazia a menor ideia de como lidar com uma produção de cacau em escala.
[Raimundo]
Então, o cacau foi introduzido, você foi obrigado a fazer aquele trabalho mesmo sem conhecer o procedimento.
[Isabel Seta]
Sem conhecer o procedimento. Você imagina iniciar uma nova empreitada assim, um novo negócio? A coisa que tem que dar certo para sua família poder comer?
De todas as ações previstas pelo TCA, metade tinha sido concluída até outubro de 2024. Isso segundo o Ibama. E algumas com atraso. A outra metade não tinha sido concluída. Estavam, portanto, atrasadíssimas, já que o TCA acabou, pelo menos em tese, em 2024. Eu também perguntei para a Norte Energia sobre esse atraso e sobre os problemas que os moradores relatam, mas eles não me deram uma resposta. Eles só disseram que investiram 8 bilhões de reais em ações socioambientais para proporcionar melhor qualidade de vida e moradia para as pessoas. Já o Ibama me disse que várias dessas medidas ainda estão em execução e que devem ser continuadas por outros programas. E é assim que, sem piracema, com menos peixe no rio, sem apoio, os moradores vão fazendo de tudo para segurar as pontas.
[Raimundo]
E aí ficou uma região desorganizada, entendeu? Eu digo que ficou uma região desorganizada, onde nós tínhamos uma vida pacata e uma vida que nós conseguíamos dar um sustento para os nossos filhos. E hoje ficou uma região que tem que se voltar para outra cultura de trabalho, uma galera que vai para um cacau, para um gado, sem ter nunca mexido com esse projeto de nada. E acaba que muitos quebram a cara, você sabe, que a gente entra num trabalho que a gente não sabe lidar com ele, às vezes não consegue e fica mais frustrado. Acaba o que? Acaba que vende a propriedade para outras pessoas que não aguentam mais, entendeu? Tem gente que desiste: “não, não aguento mais aqui não, eu não consigo mais pegar um peixe pra alimentar meus filhos”.
[Isabel Seta]
A própria Norte Energia já disse para o Ibama que a cada ano percebe uma diminuição de cerca de 10% das famílias de beiradeiros que vivem em Volta Grande. A Volta Grande vai lentamente deixando de ser o que era. As pessoas viviam de um jeito, até serem forçadas a viver de outro. E o conhecimento que tinham perde seu lugar no mundo. Como resume o Diel:
[Diel]
Então tudo que a gente sabe hoje, a gente aprendeu com nossos pais na Volta G. E hoje ela está se acabando, a gente está vendo ela sendo destruída. E tudo que a gente aprendeu, tudo que a gente viveu, hoje a gente só tem memórias. A gente não consegue fazer o que a gente fazia antes, nem ensinar para os nossos filhos o que a gente fazia antes.
[Isabel Seta]
É claro que o mundo muda, transformando o jeito que as pessoas vivem. Mas aqui a gente está falando de uma mudança radical de todo o universo, em menos de uma geração. E de forma mais objetiva, a gente está falando também de uma mudança que nem podia acontecer. Já que a licença de operação da hidrelétrica estabeleceu como medida condicionante a garantia do modo de vida tradicional.
Em outubro de 2024, a área técnica do Ibama terminou uma avaliação dessas medidas do TCA, o Termo de Compromisso Ambiental, que tinha sido assinado com a Norte Energia. Eu li esse e muitos outros documentos do licenciamento de Belo Monte, mais de 200 páginas. Eles são a forma de comunicação no governo federal. Com o tempo, a gente vai pegando o jeito para ler as entrelinhas desses textos técnicos. Vai percebendo quando eles são mais leves e quando eles são mais categóricos. E esse parecer do TCA me marcou, porque ele era muito direto, muito incisivo. E aqui eu vou ler só um trecho:
“O insucesso das medidas mitigadoras propostas no TCA nos leva novamente a informar às autoridades competentes que este empreendimento gera impactos sociais inaceitáveis relacionados à perda do modo de vida ribeirinho na Volta Grande do Xingu. Portanto, é de suma importância e urgente definir um hidrograma que garanta o modo de vida dos ribeirinhos da Volta Grande do Xingu”.
“Impactos sociais inaceitáveis”. “Perda do modo de vida”. São palavras duras, mas que ainda assim não dão conta da dor de quem vive, na pele, um fim de mundo.
[Sara]
Ai, a gente chega com o documento, a gente vai, muitas das vezes, no Ibama, que nem aconteceu já, aí, falar assim, olhar, pegar, aí eu vou olhar com carinho. Ai, meu Deus do céu. Se carinho resolvesse alguma coisa, o rio não estava nesse estado. Porque mais carinho do que a gente dá para esse rio. Mais cuidado do que a gente dá para esse rio. A gente cuida do rio. Eu só sei dizer que quem está dentro de um ar condicionado, sentado em uma mesa, assinando papel, para eles lá é fácil eles fazerem isso. Só vai assinar. Mas para nós aqui, que somos linha de frente, estamos lutando aqui para que ele não destrua, eles não destruam o nosso território, a nossa casa.
[Isabel Seta]
A Sara me falou que, recentemente, uns representantes da empresa passaram perguntando se os moradores iriam embora caso recebessem uma indenização. Ela ficou revoltada com a mera possibilidade.
[Sara]
Antes deles chegarem aqui, da Hidrelétrica chegar aqui, eu já existia, o meu pai já existia, todos já existiam aqui, os ancestrais da Volta Grande já existiam. Todos eles. Vem falar em dar dinheiro pela morte dos não-humanos? Não. Falar em indenização e querer que a gente vá embora do que é nosso? A nossa vida toda está aqui. Toda está aqui a nossa vida. Tem uma família…Eu tenho entes queridos que foram enterrados aqui. Então, para nós isso é solo sagrado. O rio para nós é sagrado.
[Isabel Seta]
No próximo episódio, a gente vai para uma outra região afetada pela usina, de onde os ribeirinhos também não querem sair. No trecho do rio acima da barragem, que virou um reservatório, eles lutam há anos para não deixar de ser ribeirinhos. E ser ribeirinho, como me falou o seu Raimundo, é ainda mais do que um modo de vida. E nada melhor do que um poema dele próprio para demonstrar isso. A gente termina com um trechinho desse poema:
[Raimundo]
Sou ribeirinho de várias etnias, caboclo, preto, branco, pardo, amarelo, de mista tradição. Sou legado, sou paixão, que guardo no peito. Sou ribeirinho do Alto Iriri, que faz do caxiri pernas e mãos. Do extrativismo, sua renda, a roça, sua fazenda, da mandioca, o pirão. Do peixe, a mistura, do milho, o pão. Sou ribeirinho, a parte esquecida pela ferida que corrompe nosso país. Não tenho visão, mas sou da nação, nação mista, esquecida, brasileira. Sou ribeirinho de coração.
[Isabel Seta]
Xingu em Disputa é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Para fazer essa série, eu li centenas de páginas de documentos oficiais e entrevistei mais de 25 pessoas. Algumas que você ouviu aqui. Deixo meu agradecimento a todas elas.
Esse podcast foi produzido e escrito por mim, Isabel Seta, que viajei a Altamira com o apoio do Instituto Socioambiental. A edição dos roteiros é da Giovana Girardi, com colaboração da Cláudia Jardim. Sofia Amaral faz a direção da locução e a coordenação geral da série. A pesquisa de arquivos é da Rafaela de Oliveira, da Stela Diogo e minha. A locução foi gravada no estúdio da Agência Pública, com trabalhos técnicos da Stela Diogo e do Ricardo Terto. O design de som, edição e finalização são do Pedro Pastoriz, com trilhas sonoras do Epidemic Sound. A identidade visual é do Matheus Pigozzi. A equipe de divulgação é formada por Marina Dias, Lorena Morgana, Renata Cons, Leticia Gouveia, Ethieny Karen, Ester Nascimento, Edgar Chulve e Vanice Christine.
Nesse episódio, a gente usou áudios da TV Brasil. Os sons de ambiente gravados em Altamira são do Instituto Socioambiental e foram captados pela fotógrafa Jennifer Bandeira. Raimundo da Cruz e Silva gentilmente cedeu áudios gravados na sua comunidade no Xingu. Muito obrigada por acompanhar a gente até aqui. Até o próximo episódio.