Apesar das decisões judiciais que suspenderam as derrubadas na fazenda Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto (GO), ao menos 32 famílias chegaram a ser desapropriadas e estão sem lugar para morar. O Metrópoles conversou com algumas dessas pessoas durante a semana.
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Lídia Rosa Silva, 61, é uma das moradoras que perderam casa
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Katleen Silva, 38, também ficou sem teto
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Durante as gravações da reportagem, Katleen percebeu que havia deixado documentos para trás
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“Dor inexplicável”, lamenta a moradora
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Viviane Barros, 42, revisita os escombros da sua propriedade
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Ela e o marido, o rodoviário Wilson Rabelo, 38, ao lado do Pipoco, cavalo de estimação da família
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Viviane não sabe onde abrigar o animal após as derrubadas
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Viviane, Katleen e Lídia são moradoras da Antinha de Baixo, fazenda de Santo Antônio do Descoberto
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Região [é alvo de batalha judicial; na segunda-feira (4/8), houve derrubada
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Antinha de Baixo pode ter sido habitada por escravos e, por isso, moradores autodeclararam a região como quilombola
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A servidora pública Lídia Rosa Silva, 61 anos, é uma das moradoras que não teve a sorte de ser contemplada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu as desapropriações na terça-feira (5/8). Isso porque o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) havia determinado que os despejos começassem na segunda-feira (4/8).
Lídia alega nunca ter sentido tanta dor e decepção. Até a última quarta-feira (6/8), ela não havia criado coragem para visitar os escombros da própria casa. “Não consegui descer do carro. Quando passei e vi os tijolos no chão, não consegui”, relata.
“Eu sei cada tijolinho que tem ali. Quantas vezes eu mesma trabalhei fazendo massa de cimento porque eu não tinha dinheiro para pagar o servente…”, afirma Lídia, que mora na Antinha de Baixo há 12 anos.
A servidora conta que, em meados de 2023, foi diagnosticada com depressão ao descobrir que aquela região era alvo de disputa judicial. Desde então, vive à base de medicamentos e vê o quadro se agravar de tempos em tempos. “Não consigo me alimentar, passo o dia deitada. Tomo três tipos de remédios diferentes. [Perder a própria casa] foi uma das piores tristezas que passei na vida”, lamenta a mulher.
“Eles tiraram tudo que era meu. Minha casa, meus bichos, minhas galinhas, minha horta. Acabou tudo, foi tudo destruído.”
Na visão de Lídia, os beneficiados pela decisão do TJGO antes da intervenção do STF têm agido com ganância. “Ganância por dinheiro, ganância por terra… não tem necessidade disso, de tomar as coisas dos mais humildes”, opina.
Passeando sob os destroços da própria casa, a agricultora familiar Katleen Silva, 38, também foi obrigada a deixar o lar na segunda-feira (4/8). Na correria para salvar móveis, animais e outros bens, ela percebeu no momento da gravação do Metrópoles que havia esquecido de recolher os documentos pessoais dela e da esposa que estavam numa cômoda.
“A palavra é dor. O sonho de toda uma vida hoje está aqui”, diz Katleen, apontando para os tijolos de casa quebrados, os móveis largados e algumas peças de roupas perdidas. “Tem mesa, guarda-roupa que eu não dei conta de recuperar”, aponta. O trator passou por cima dos bens dela e da esposa.
“Nem lágrima eu tenho mais. É uma dor inexplicável na alma.”
A motorista de transporte coletivo Viviane Barros, 42 anos, é mais uma moradora da Antinha de Baixo que viu um trator destruir um imóvel que levou anos para ser erguido.
Viviane cuidava de bichos de diversas espécies, como patos, galinhas e peixes. A motorista também tem um cavalo, o Pipoco, e uma cabra, a Dolly. Conforme ela temia, nenhum responsável pelas desocupações deu um lar temporário aos animais, e ela teve que pedir socorro a conhecidos.
“Eu estou procurando lugar para poder colocá-los, não tenho lugar”, conta Viviane, em prantos. “Ainda tem coisa minha nos escombros, não me deram tempo para nada. Alguns dos meus bichos estão sumidos no mato”, lamenta.
“Nossa vida toda estava aqui. São mais de 10 anos.”
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Entenda a batalha judicial
- Em 28 de julho deste ano, a juíza Ailime Virgínia Martins, da 1ª Vara Cível da comarca de Santo Antônio do Descoberto, expediu mandado de desocupação compulsória de 32 imóveis localizados na fazenda Antinha de Baixo, na zona rural de Santo Antônio do Descoberto (GO).
- A medida desapropria os atuais moradores e dá posse das terras a três pessoas: Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss. Como esses dois últimos já faleceram, os herdeiros deles são os reais beneficiados com a decisão.
- Um dos herdeiros de Maria Paulina Boss é o desembargador do Tribunal de Justiça (TJGO) Breno Caiado, primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Ele atuou como advogado no processo até 2023.
- Outro herdeiro é o empresário Murilo Caiado, irmão de Breno e primo de Ronaldo. Murilo esteve na Antinha de Baixo acompanhando as desocupações no início dessa semana.
- Até que, nessa terça-feira (5/8), houve uma reviravolta, e os moradores da região tiveram três decisões judiciais de âmbito federal favoráveis: o STF, a Justiça Federal de Anápolis e o próprio TJGO determinaram a suspensão das derrubadas para que se apure a autodeclaração da população que diz que a Antinha de Baixo é uma região quilombola.
- A determinação do STF, a mais recente, torna a Justiça Federal competente pela comunidade Antinha de Baixo. Assim o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) não tem mais condições de emitir novas ordens de despejo para outras casas.
- A decisão não invalida medidas anteriores. Por isso, as 32 casas já desocupadas por ordens passadas seguem sob posse dos herdeiros de Luiz Soares de Araújo e dos herdeiros de Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss.
- A entrega do caso à Justiça Federal vem após o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pedir à Advocacia-Geral da União (AGU) para atuar no processo como assistente. O pedido do Incra ocorreu após os moradores da Antinha de Baixo declararem ao órgão que aquela região foi ocupada por comunidade tradicional quilombola há cerca de 400 anos.
- Caso fique comprovado que a região foi habitada por cidadãos escravizados em séculos passados, cabe somente à Justiça Federal definições jurídicas sobre a área, como estabeleceu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2014.
Respostas
O Metrópoles buscou contato com a Prefeitura de Santo Antônio do Descoberto (GO) para saber que assistência será ofertada às famílias. Em nota, a pasta informou que tem adotado o “Aluguel Social” para atender temporariamente os cidadãos. O Aluguel Social é um programa de moradia da Agência Goiana de Habitação (Agehab).
A Prefeitura afirmou ainda que esteve na Antinha de Baixo no início da semana “com o objetivo de identificar as famílias impactadas e oferecer suporte emergencial, incluindo o encaminhamento a programas sociais já existentes no município e doações de cestas básicas”.
Quanto a denúncias de ameaças feitas contra os moradores que permanecem na Antinha, o órgão declarou que “tem ciência” dos casos. “Informamos que estas informações foram encaminhadas aos órgãos competentes para apuração, como a Polícia Civil e o Ministério Público”, encerrou.
A Secretaria de Comunicação (Secom) do Governo de Goiás alegou que “o governador Ronaldo Caiado não é parte do processo”. “Não cabe, portanto, comentário do governador sobre a decisão judicial”, afirmou.
“O eventual parentesco de 4º grau com uma das partes do processo não implica envolvimento do governador em qualquer ato, e por isso a citação do seu nome em reportagem sobre o assunto causa estranheza”, encerrou.