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Não faltaram alertas de todas as partes. Ambientalistas, cientistas, promotores de justiça da área ambiental, especialistas em saúde e até em corrupção. Todos disseram que o projeto de lei que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental é um retrocesso que pode levar a mais desmatamento, poluição, riscos de desastres e à saúde, além de violação de direitos de populações tradicionais.
Mas na madrugada desta quinta-feira (17), em um plenário esvaziado, a Câmara dos Deputados, sob comando de Hugo Motta (Republicanos-PB), ignorou os apelos e aprovou o famigerado texto por 267 votos a favor e 116 contra.
Como definiu a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que até o fim batalhou para adiar a votação a fim de buscar um acordo para a elaboração de um novo texto, o projeto “fere de morte um dos principais instrumentos de proteção ambiental do país”. Não à toa, foi apelidado por ambientalistas como PL da Devastação, ou “mãe de todas as boiadas”. Já que ele implode o processo e torna o licenciamento no país mais exceção do que regra.
Depois de ser aprovado originalmente na Câmara, em 2021, e no Senado, em maio deste ano, com modificações que criaram ainda mais flexibilizações – o que fez com que ele voltasse para a primeira Casa –, o texto foi endossado novamente pelos deputados e agora vai para apreciação do presidente Lula, que pode sancionar, vetar ou vetar parcialmente o texto.
Nas redes sociais, já está tomando corpo uma onda de pedidos para que Lula vete totalmente o projeto. Como diz o Observatório do Clima, “não há como salvar o texto com vetos pontuais”.
A rede de ONGs tinha divulgado na segunda (14) um parecer sobre o PL dos pesquisadores Luís Sánchez, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e Alberto Fonseca, da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto, em que eles são categóricos ao dizer que o texto é a “antítese da solução para o licenciamento ambiental”.
Isso porque o texto, como resume a organização: “Não resolve a quantidade excessiva de regras e procedimentos e, na contramão, abre espaço para que estados e municípios criem suas próprias regras sem parâmetros nacionais mínimos. Não equaciona a falta de critérios gerais para o enquadramento de tipologias de atividades e empreendimentos – ao contrário, incentiva isenções de licenciamento. Não traz critérios para as simplificações e, em vez de propor uma solução técnica, legitima a ampla aplicação da Licença por Adesão e Compromisso (o chamado autolicenciamento, em que o empreendedor faz uma declaração pela internet sem apresentar qualquer estudo ambiental), e ainda promove a Licença Ambiental Especial, que dará tratamento político a grandes projetos”.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, também divulgou um manifesto na segunda alertando que o “PL representa o mais grave retrocesso ao sistema de proteção ambiental do país”. A mais abrangente organização científica do país afirma que o projeto “fragiliza as regras e mecanismos de análise, controle e fiscalização. E, ainda, ignora solenemente o estado de emergência climática em que a humanidade se encontra e o fato de que quatro biomas brasileiros (floresta Amazônica, Cerrado, Pantanal e Caatinga) estão muito próximos dos chamados de ‘pontos de não retorno’”.
Foram vários apelos nesta mesma linha. Vou destacar mais dois: o da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e o da Transparência Internacional Brasil.
Em textos anteriores, eu já destaquei os principais problemas do projeto e como a desinformação foi uma das estratégias usadas pela bancada ruralista para incensar o PL, como a divulgação, à exaustão, do “número mágico” de que haveria cerca de 5 mil obras paradas no Brasil supostamente por causa do licenciamento.
Mas queria me ater aqui a dois pontos. O primeiro é que, mais uma vez, o Congresso brasileiro altera uma lei ambiental totalmente ao arrepio do que diz a melhor ciência. E eles já deveriam ter aprendido que negacionismo tem preço: só que é o país que paga a conta de uma mudança que só beneficia alguns.
Foi isso que deveríamos ter aprendido com a alteração do Código Florestal, em 2012. Durante a tramitação do projeto houve uma enxurrada de alertas muito parecida com o que a gente está vendo agora, e os 13 anos que se passaram desde então são a prova de que aquela mudança teve vários equívocos.
A anistia a desmatamentos anteriores a 2008 gerou um efeito de expectativa a novas anistias, o que aumentou a derrubada da floresta nos anos subsequentes à aprovação da lei. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), proposto na lei de 2012 como uma ferramenta que traria mais transparência ao que acontece no campo e uma forma de facilitar a punição a crimes ambientais, até hoje não foi totalmente validado. E isso abriu brechas para que o documento, auto-declarado pelo proprietário da terra, fosse burlado, como revelou análise do Center for Climate Crisis Analysis.
Um dos alertas importantes que vêm sendo feitos sobre o PL do licenciamento é justamente a possibilidade de ele abrir margem para mais desmatamento. “O PL limita a responsabilidade do empreendedor diante dos danos causados ou agravados pelo próprio empreendimento, inclusive em casos de grandes obras que pressionam serviços públicos ou estimulam desmatamento e grilagem. Esta falta de responsabilização poderá agravar ainda mais o avanço do desmatamento ilegal e da grilagem, em especial na Amazônia”, apontou a SBPC em seu manifesto.
Nesta seara, preocupa particularmente a tal Licença Ambiental Especial (LAE), incluída pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, durante a votação na Casa. O instrumento permite que obras consideradas “estratégicas” pelo Conselho do Governo, vinculado à Presidência da República, possam ter um processo de licenciamento mais rápido, em apenas uma fase, sem muitos cuidados.
“Sabe-se, por exemplo, que 70% de todo o desmatamento na Amazônia está concentrado ao redor de obras de infraestrutura. A tal LAE poderá, portanto, agravar esta condição, em especial nas iniciativas que buscam a abertura e pavimentação de rodovias (Ex. BR-319) e ferrovias (Ex. Ferrogrão) e a exploração de petróleo e gás em áreas ecologicamente sensíveis (Ex. Margem Equatorial)”, aponta a SBPC.
Isto me leva ao segundo ponto que eu gostaria de destacar. Nesta quarta, enquanto a Câmara estava correndo para votar tudo o que fosse possível antes do recesso parlamentar – em um claro mau humor diante das decisões do presidente Lula de vetar o aumento do número de deputados no país e do ministro do Supremo Tribunal Federal decidir de modo parcialmente favorável ao aumento do IOF –, o resto do Brasil só falava na guerra comercial do presidente dos EUA, Donald Trump, contra o país.
E os parlamentares ruralistas, que estavam dando entrevistas cobrando de Lula mais rapidez em negociar com os americanos pela derrubada da tarifa de 50% sobre os produtos exportados pelo Brasil, deveriam ter atentado ao fato de que eles mesmos estavam colocando mais lenha nessa fogueira.
A tal investigação comercial que os EUA resolveram abrir contra o Brasil traz, como uma das justificativas, que “o Brasil parece não aplicar de forma eficaz as leis e regulamentações destinadas a impedir o desmatamento ilegal, prejudicando a competitividade dos produtores americanos de madeira e produtos agrícolas.”
Hipocrisias à parte, claro, visto que Trump está revertendo medidas de proteção ao meio ambiente dos Estados Unidos em prol de grandes obras e abandonou o Acordo de Paris, principal instrumento para o combate às mudanças climáticas.
Mas claro que nada disso está nas preocupações dele. O americano está de olho no comércio, e ele não deixa de ter alguma razão em dizer que gado criado em área desmatada ou madeira retirada ilegalmente são mais baratos do que onde isso não ocorre.
Injusto também que isso seja cobrado quando a gestão ambiental do Brasil está a cargo de Marina Silva, que tem feito de tudo para conter o desmatamento no país – com resultados significativos nos dois primeiros anos de governo. Trump nunca exigiu isso de Bolsonaro, que, sim, aumentou o desmatamento em 60% nos quatro anos de governo e fechou os olhos para a exportação ilegal do país – com anuência de Ricardo Salles, seu ministro do Meio Ambiente, e de Eduardo Bim, então na presidência do Ibama.
Independentemente de tudo isso, o Congresso não precisava ter dado mais um argumento de mão beijada para Trump retaliar o Brasil, né? Afinal, o PL do licenciamento abre mil brechas para aumentar o desmatamento no país. Quero ver eles se responsabilizando pela lei quando o bicho pegar.