Por que Odete Roitman nunca morre?

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

No dia 6 de outubro, a Folha de S. Paulo deu uma barrigada – jargão jornalístico que significa um “erro feio” – ao publicar o obituário de Odete Roitman. A vilã favorita dos brasileiros não morreu, e sobrou para a Ombudsman Alexandra Moraes lembrar que, mesmo em um artigo com tom de brincadeira, faltou apuração na vida real sobre o final da novela. Refletindo sobre o final inesperado da trama, um leitor provou: “a pergunta não é quem matou Odete Roitman, mas por que Odete Roitman nunca morre?”. 

A novela de Manuela Dias fez o Brasil parar de uma maneira que eu não via há muitos anos, desde que cresci num país que assistia todo mundo junto aos capítulos finais. E isso tem muito a ver com a fascinação que nossa sociedade tem com os ricos, com essa classe inalcançável que segue “construindo” o nosso imaginário sobre nós mesmos, segundo Michel Alcoforado, autor do celebrado livro Coisa de Rico (editora Todavia). No Brasil, país com uma das maiores populações carcerárias do mundo, criminoso rico é aplaudido quando chega ao Congresso com enormes capivaras nas costas, mesmo tendo roubado terras de comunidades inteiras, ameaçado, financiado madeireiro ou mineração ilegal. Afinal, são empreendedores, gente de visão. 

Odete Roitman continua viva porque, apesar de avanços significativos nas últimas décadas, ainda somos um dos países mais desiguais do mundo. Em 2024, a Oxfam demonstrou em um relatório que 63% da riqueza está nas mãos de 1% da população. Entre 2020 e 2024, 4 dos 5 maiores bilionários aumentaram em 51% sua riqueza desde 2020; ao mesmo tempo, 129 milhões de brasileiros ficaram mais pobres. 

Para Alcoforado, ser rico é uma condição “precária” que, no auto imaginário em especial dos novos ricos, pode ser retirada a qualquer momento. Portanto, diz ele, demonstrar ser rico e convencer os outros disso é uma tarefa árdua, trabalhosa, que exige um tempo de dedicação enorme. Na sua etnografia, Alcoforado enfocou os aspectos culturais do que é ser rico no Brasil. No seu podcast É tudo Culpa da Cultura, descreveu a maneira como, por exemplo, os ricos determinam a limitação entre quem é rico e quem não é pela maneira como sabem usar os diversos sofás que ornam as diversas salas. De classe média para baixo, a gente só tem um sofá, que serve para sentar e pronto.  

Comparando a autoimagem do rico brasileiro com o rico americano, o antropólogo afirma que, enquanto o último tem como mérito pessoal a “construção” e o trabalho árduo, criando para si a narrativa de que conseguiu sua riqueza pelas enormes oportunidades criadas por aquele país, no Brasil a lógica é a da “conquista”, da “superação” em relação aos inúmeros entraves criados pelo seu país. Aqui, os ricos acreditam que são ricos “apesar” do Brasil. 

Mas é claro que isso é apenas uma autoimagem, construída para justificar seu lugar ao lado de Odete Roitman. O Brasil é um país que favorece a concentração de renda de diferentes maneiras muito além da simbólica e subjetiva.  

Aqui, o imposto incide mais sobre os de baixo do que sobre os de cima, embora tenha havido alguns avanços, como a recente aprovação da isenção de imposto para quem ganha até 5 mil reais, em um momento de raro consenso entre o governo e os parlamentares. (O Congresso conta com mais de 50% de milionários, e, portanto, a taxação de grandes fortunas é outro gargalo muito mais complicado.) Existem ainda diversos mecanismos que permitem a ricaços e empresas ganharem subsídios, isenções, perdão de dívidas etc. Na semana passada, lançamos o edital de microbolsas “Super-Ricos” para provocar repórteres de todo o Brasil a fazerem no nosso campo o que fez Alcoforado na antropologia: buscar investigar as estruturas que permitem que os ricos sigam ficando mais ricos e que o Brasil tenha uma mobilidade social ainda baixíssima.

Afinal, como lembrou Flávia Oliveira na sua brilhante coluna sobre a ausência histórica de mulheres negras no STF, a chance de uma criança pobre chegar ao topo da pirâmide social – os 10% mais ricos, é de apenas 1,81%. Os dados são do Atlas da Mobilidade Social, que mostra que dois terços dos brasileiros permanecem no mesmo lugar onde estavam quando nasceram. 

Jamais seremos Odete Roitman – é por isso que, de longe, aplaudimos que a vilã cometa crimes, torture e maltrate filhos, use e abuse dos demais, um pouco como os adoradores de Donald Trump. É como nosso conselheiro Eugênio Bucci resumiu na sua coluna do Estadão: a Odete Roitman de 2025 sai anistiada.

O livro de Michel Alcoforado tem trazido os ricos para o debate, lembrando que é fundamental para as ciências sociais olharem também para essa fração da sociedade que tem um peso desproporcional não só no PIB, mas também na construção do nosso imaginário sobre nós mesmos. É uma provocação importante. Agora, cabe aos jornalistas também fazerem a sua parte, investigando como o estado brasileiro trabalha ainda hoje para fazer os super-ricos cada vez mais ricos, cada vez menos comprometidos com um projeto nacional, e cada vez menos sujeitos a prestar contas e pagar pelos crimes que cometem para enriquecerem ainda mais.  

Sair da versão mobile