“Tudo é escuro na minha vida, e o ciclismo é o que preenche essa escuridão.” Aos 57 anos, Genival Ribeiro, servidor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), encontrou na bicicleta a luz que perdeu aos 22, quando um grave acidente de carro o deixou totalmente cego. Anos depois, o pedal de longas distâncias se tornou mais do que um hobby: virou direção, liberdade e recomeço.
Com apoio de Silomar Rodrigues de Matos, 48 anos, técnico agrícola da Novacap, a dupla batizada de Olhos Para Dois fez a façanha de percorrer 160 quilômetros, na Prova Rota 66, em Valparaíso (GO). A prova aconteceu em setembro deste ano. Eles concluíram o percurso em cerca de sete horas, com uma velocidade média de 22,7 km/h e máxima de 70,6 km/h.
Conheça a dupla:
Antes de sofrer o acidente automobilístico, a corrida e o ciclismo já estavam presentes na vida de Genival. Depois que perdeu a visão, ele precisou encontrar uma forma de retomar a prática de atividades físicas com autonomia.
Os primeiros movimentos foram dentro de casa, correndo enquanto se apoiava nas paredes. Com mais segurança, comprou uma esteira. Com o tempo, o equipamento estragou. Sem condições de consertá-lo, ele decidiu se aventurar correndo pelas ruas de Santa Maria.
“Tinha uma bicicleta parada lá em casa, e eu tive uma ideia de amarrar uma corda no sino traseiro e prendê-la em mim. Chamei a minha esposa para pedalar, enquanto eu corria ao lado. No início, ela temeu que pudesse me machucar ou me derrubar. Mas deu tão certo essa parceria que já são 15 anos que a gente percorre diariamente de 10 a 12km às 4 horas da manhã”, comemora o auxiliar de serviços gerais.
O contato com o ciclismo adaptado aconteceu por meio do Projeto Deficiente Visual na Trilha (DV na Trilha). Uma ação social realizada por voluntários e ciclistas de Brasília que dividem uma de suas maiores paixões, o pedalar, com quem de outra forma não teria como fazê-lo, as pessoas com deficiência visual.
Para tornar a atividade possível, o grupo utiliza bikes tandem — bicicletas duplas para dois ciclistas. Na frente, vai um condutor, voluntário do projeto, e atrás, o deficiente visual. O encontro ocorre quinzenalmente, no Jardim Botânico de Brasília.
“Para mim, pedalar é muito emocionante. Sentir a brisa bater no rosto, aquela euforia de passar por um quebra-molas. Eu gosto de superar meus limites com a deficiência. É uma forma de eu não abalar o meu ego e não me sentir solitário”, expressa o servidor.
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“Olhos Para Dois”
A partir da capacitação no esporte, Genival começou a participar de competições de mountain bike e ciclismo. Foi nesse meio que o caminho dele cruzou com o de Silomar. Dessa parceria, surgiu a dupla conhecida como Didi e Zaca.
“A responsável pelo DV na Trilha pediu para que fizéssemos uma autodescrição com o objetivo de ajudar aos demais a imaginar nossa fisionomia. Eu disse ao Genival que algumas pessoas já falaram que eu pareço com o Didi, dos Trapalhões, pois era alguém que ele sabia da aparência. Então ele ficou me chamando de ‘Didi’ e eu disse ‘se eu vou ser o Didi, então você, que é menorzinho, vai ser o Zaca, de Zacarias. E assim nasceu a dupla Didi e Zaca”, conta Silomar.
Desde o final de 2023, Genival e Silomar se encontram quatro vezes por semana para percorrer cerca de 70 km, enquanto empurram uma bicicleta de ferro adaptada de 30kg. O trajeto começa na região Santa Maria e segue até o Park Way pelo acostamento das rodovias.
Juntos, já participaram de provas e desafios, tanto com diferenciação para pessoas com deficiência (PcD), quanto competindo com todo tipo de ciclistas.
Alguns destaques são a Trilha Rota 60 em Abadiânia, o Brevet Vale Perdido, o 7º Desafio do Engenheiro de Mountain Bike, Desafio do Pelotão da Fé e a competição entre DVs no Bike Camp 2024 da Torre de TV, na qual ficaram com o segundo lugar. Segundo a dupla, as paradas durante as provas são apenas para beber água e ir ao banheiro.
“É uma responsabilidade muito grande. Eu sou os olhos dele, ele precisa confiar em mim. Por isso, também a importância de estarmos seguros com os equipamentos e a bicicleta. Muita gente pensa que, por eu ser o guia, estou apenas ajudando uma pessoa que é cega. Mas não imaginam o tanto que ele me ajuda e me motiva também. Tem momentos em que estamos tão sincronizados, que parece que somos só um pedalando”, conta Silomar.
A dupla, agora, se prepara para participar do Pedal Sem Fronteira, em 26 de outubro. A prova consiste em um percurso de 100km, em Luziânia, Entorno do DF.
Calanguinha do Cerrado
A bicicleta que a dupla utiliza, a Tandem aro 26, carinhosamente apelidada de Calanguinha do Cerrado, foi cedida pelo projeto DV na Trilha, como forma de estimular a participação da dupla no projeto e nas competições.
A participação nos desafios e provas acaba sendo comprometida pela questão financeira. Como PcD, Genival volta e meia recebe isenção de taxas para participar de competições, benefício que não costuma se estender a Silomar.
Contudo, o peso do equipamento e as rodas aro 26 dificultam a performance da dupla e é incompatível com a adição de componentes mais modernos, o que resulta em constantes manutenções.
Em busca de maior performance, desempenho e competitividade, Didi e Zaca sonham com uma nova bicicleta, mais leve e com rodas aro 29, que aceite componentes mais modernos e reduza o peso total do equipamento para, pelo menos, 17kg.
“Sonho em termos uma bicicleta competitiva para a gente disputar os campeonatos, equipamentos melhores para que a gente possa se superar e bater recordes. Quem sabe, um dia chegamos nas Paraolimpíadas”, almeja Genival.
Além disso, almejam adquirir alguns equipamentos de proteção e segurança, como capacetes, óculos, roupas adequadas ao ciclismo, sapatilhas, mochilas de hidratação, luzes de sinalização traseira e dianteira, GPS para localização, câmaras de ar reservas, entre outros itens.
A dupla estima que o investimento necessário, ao menos para adquirir uma bicicleta mais propícia para a atividade, esteja em R$ 20 mil. Por isso, iniciaram uma vaquinha para que aqueles que se solidarizem com a iniciativa possam doar. A chave Pix para doações é o e-mail silomatos33@gmail.com (Silomar Rodrigues de Matos – Banco do Brasil), por meio do qual são aceitas doações de quaisquer valores.
Os dois disponibilizam, ainda, a página do Instagram @olhospra2, por meio da qual é possível acompanhar as aventuras dos ciclistas.