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O governo federal bem que tentou passar uma mensagem não apenas de harmonia interna, mas de bandeira branca ao Congresso durante a entrevista coletiva em que foram anunciados os vetos do presidente Lula ao projeto que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental.
Dos quase 400 dispositivos previstos na lei, Lula vetou 63 dos mais problemáticos – reduzindo de modo significativo o impacto do projeto que fragilizava tanto o licenciamento ambiental no país que, não à toa, tinha sido apelidado de “PL da devastação”. O apelo era pelo veto integral, mas há que se reconhecer o esforço para tirar alguns dos pontos mais nefastos da proposta, que ameaçavam não só o meio ambiente, mas a segurança e a saúde humana.
É o caso, por exemplo, da limitação da Licença por Adesão e Compromisso, a tal da LAC – na prática, uma espécie de auto-licenciamento, porque não conta com nenhuma avaliação prévia por parte do órgão regulador –, a empreendimentos de pequeno potencial poluidor. O texto aprovado no Congresso contemplava também os de médio potencial poluidor na LAC, o que era visto como um dos maiores riscos do PL.
Trechos que permitiam que estados e municípios estabelecessem as próprias regras para definir, por exemplo, o porte de um empreendimento e definir se ele poderia ou não entrar na LAC também caíram. Essa definição caberá ao governo federal. Na justificativa do governo, isso evita “uma descentralização que poderia estimular uma competição anti-ambiental entre os entes federativos”.
No anúncio à imprensa – conduzido pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, ao lado de Sidônio Palmeira, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, e de Miriam Belchior, que estava na função de ministra-substituta da Casa Civil –, além das informações específicas sobre a decisão, foram reforçadas algumas mensagens:
– De que se trata de uma decisão de governo, e não de um ministério;
– De que se buscou garantir a integridade do processo de licenciamento e assegurar os direitos de povos indígenas e comunidades quilombolas, mas também em dar segurança jurídica para os empreendimentos que precisam ser licenciados e para os investidores e também e, eu friso essa parte, “incorporar inovações que tornem o licenciamento mais ágil, sem comprometer a sua qualidade”;
– De que o Planalto respeita o esforço do Congresso em promover “avanços relevantes para a celeridade do licenciamento” e que o objetivo é que a lei alterada pelo governo entre em vigor em diálogo com o parlamento.
Destaco esses pontos porque a aprovação do PL por deputados e senadores se deu com ampla maioria nas duas casas e teve forte apoio da bancada ruralista – que já ameaça derrubar alguns dos vetos.
Por outro lado, o rápido avanço do PL no parlamento nos últimos meses, depois de 20 anos em tramitação e de ser contido no governo Bolsonaro, foi diversas vezes interpretado como uma derrota exclusiva para Marina.
Apesar de, no Senado e na Câmara, o PT ter votado contra o projeto e, na Câmara, o governo ter feito essa orientação para sua bancada (no Senado ela foi liberada), colegas jornalistas mostraram que, na prática, a gestão Lula acabou se omitindo e deixando a “boiada passar”. Em parte por negociações políticas, em parte porque vários ministros concordaram com a flexibilização.
Mas diante da forte pressão da sociedade civil e alertas da ciência sobre o risco, além do fato óbvio de que não dá para querer ser líder climático e passar uma legislação que atropela a proteção ambiental bem quando o governo recebe a COP30, o juízo prevaleceu.
Não sem uma concessão bem relevante. Um dos dispositivos mais polêmicos do PL do Congresso, a Licença Ambiental Especial (LAE), inserida como emenda pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, minutos antes de o texto ir à votação no plenário da Casa, não só permaneceu, como ainda foi incluída por Lula em uma Medida Provisória para entrar em vigor imediatamente.
A medida estabelece que empreendimentos considerados estratégicos pelo Conselho do Governo passem por um processo de licenciamento prioritário e mais rápido, em até 12 meses. Na forma proposta por Alcolumbre, a análise seria em apenas uma fase, ao contrário das três aplicadas atualmente.
Obras de grande impacto – como normalmente são as mais relevantes para o governo – contam com três fases: licença prévia (LP), licença de instalação (LI) e licença de operação (LO). Em um processo às vezes realmente longo, em que o Ibama analisa os estudos fornecidos pelo empreendedor e vai pedindo mais informações, esclarecimentos, ajustes e correções.
Logo que foi proposta por Alcolumbre, a interpretação de ambientalistas foi que a medida cria uma licença por “pressão política” e entendeu-se que a proposta visava a acelerar, por exemplo, a exploração de petróleo na foz do Amazonas, uma das bandeiras do senador do Amapá, estado que, em teoria, poderia ser beneficiado com os lucros do combustível fóssil.
Lula gostou da ideia, mas tirou a expressão “monofásico”. Na coletiva, Marina afirmou que o conceito é novo, mas que, na prática, já é dada essa prioridade para as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Segundo ela, as equipes serão “destinadas para dar celeridade, mas isso não permitirá que se faça simplificado”. E reforçou: “Não vai ser monofásico. Todas as fases serão cumpridas”.
Ela ainda disse que o prazo de 12 meses é para dizer se a obra é ou não viável e que ele só começa a correr depois de todos os estudos serem apresentados pelo empreendedor.
Apesar dos esforços de Marina em tentar assegurar que o rigor será mantido – seu protagonismo na coletiva certamente também foi para referendar as decisões do governo e acalmar um pouco os críticos –, especialistas que vêm já há anos acompanhando o vai-e-vem do PL do licenciamento não viram com bons olhos a novidade.
Eu conversei com Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, e ex-presidente do Ibama – que sabe bem o que é lidar com a pressão para licenciar uma obra e foi, inclusive, quem primeiro vetou a prospecção de petróleo no famigerado bloco 59 da foz do Amazonas – e ela disse que não vê como a LAE possa dar certo.
Segundo ela, considerando que, em geral, as obras prioritárias pelo governo, como as do PAC, costumam ser empreendimentos de grande impacto, é “inexequível”, nas palavras dela, fazer todas as análises no intervalo de um ano.
Isso porque o processo do licenciamento começa com a análise do Estudo de Impacto Ambiental, o famoso EIA. É de onde sai primeiro a licença prévia. Depois ele vai ganhando maturidade e detalhamento, muito em função das respostas do órgão ambiental.
É isso que dá as diretrizes para estabelecer o projeto executivo. E isso tudo, diz ela, não sai em 12 meses. “Não dá tempo nem do empreendedor fazer todos os estudos necessários que terão que ser entregues para o licenciador para ele poder analisar. Em um ano o projeto nem ganhou a maturidade necessária”, afirma.
“O licenciador começa avaliando só o projeto básico. Depois o empreendedor tem que ir detalhando, e essa evolução natural do projeto é acompanhada pelas três fases do licenciamento, a LP, a LI e a LO. Tem processo de licenciamento com EIA que até é monofásico, como a perfuração do Bloco 59 na foz do Amazonas. Porque não tem uma evolução numa perfuração. Vai lá e perfura. Mas numa hidrelétrica, numa estrada, numa linha de transmissão, numa mineração, há uma evolução do projeto, acompanhando as respectivas fases do licenciamento, isso não dá para fazer em um ano”, explica.
Segundo ela, em geral os estudos são entregues com muitos problemas, muitas deficiências. E é isso, na avaliação de Suely, que faz com que muitas obras demorem tanto para serem licenciadas. Porque os estudos voltam para o empreendedor para serem ajustados, mas há demora na resposta e, não raro, eles continuam incompletos.
Por outro lado, não é de se esperar que o empreendedor já chegue com o projeto executivo pronto antes do início da análise, porque isso seria muito caro.
Para Suely, com a LAE “vai haver uma pressão política enorme para ser feito a toque de caixa”. E ela opina que a tendência é diminuir a qualidade do que equivaleria às fases de licença de instalação e de operação. “Porque um ano é impossível. E, para mim, do ponto de vista jurídico, é inconstitucional. Porque vai dar um rito simplificado. E o rito normal para um grande empreendimento, com as raras exceções, é seguindo a lógica da evolução do projeto”, diz.
O Observatório do Clima divulgou uma nota técnica nesta quarta-feira (13) analisando a decisão do governo em que reconhece que houve “importantes esforços governamentais na modificação positiva do texto aprovado no Congresso”, mas defendeu que a LAE “não deve ser introduzida na legislação brasileira”.
Segundo a nota, a LAE fragiliza o processo de licenciamento ambiental no país, sem resolver ou mesmo trazer alternativas para os problemas nesse campo. “O que tende a ocorrer com a LAE é um acúmulo de demandas e de responsabilização, inclusive judicial, dos servidores públicos”, afirmam os autores, que complementam: “na prática, institui-se um ‘licenciamento por pressão política’ a partir do Conselho de Governo.”
Claramente houve uma tentativa, com a decisão de manter e acelerar a LAE, de sinalizar positivamente a Alcolumbre a fim de ganhar apoio no Senado para a manutenção dos vetos. Marina terminou a entrevista coletiva reforçando a mensagem de que os esforços feitos pelo governo foram no sentido de manter o diálogo com o Congresso: “Fazendo com que a gente assegure a integridade do licenciamento ambiental, que consiga fazer com que os processos que ganhem celeridade, sem a perda de qualidade do licenciamento”.
Mas a bancada ruralista já mostrou que isso não vai ser tão simples e vai agir para derrubá-los. Nesta quarta, o grupo se reuniu e manifestou descontentamento com vetos que atingem especificamente o setor. É o caso do item que dispensava produtores rurais de licenciamento ambiental, desde que eles tivessem feito o Cadastro Ambiental Rural – mesmo que esse não tivesse sido validado pelos órgãos ambientais estaduais. Isso foi vetado pelo governo. A dispensa fica só para quem teve o CAR analisado.
Ainda não está claro como eles vão agir em relação a LAE nem qual papel Alcolumbre vai desempenhar.
E eles ainda aproveitaram para resmungar do Plano Clima – crítica que eu antecipei que aconteceria aqui.
Ao se dirigir ao grupo, o deputado Zé Vitor (PL-MG), que foi relator do PL na Câmara, ainda deu uma alfinetada: “Uma pequena parte do governo quer que esses vetos sejam mantidos, mas o governo como um todo torce e precisa que nós façamos o trabalho que na cabeça deles é o trabalho sujo. Mas é o trabalho certo, que tem de ser feito”. Declaração sob medida para tentar abalar a ideia de que os vetos são unânimes dentro do governo.
É uma novela que está longe de acabar. Aguardemos os próximos capítulos.