O lançamento da operação Rising Lion por Israel, em 13 de junho deste ano, trouxe mais desafios ao movimento feminista do Irã, que tem se fortalecido desde 2022. A operação militar gerou uma série de ataques a instalações nucleares no país. O conflito durou 12 dias e deixou centenas de mortos, incluindo crianças. “As pessoas não conseguem dormir, estão esperando os novos ataques, e isso realmente afeta a vida diária”, diz a pesquisadora, professora e escritora iraniana Firoozeh Farvardin.
Ela é a convidada de Andrea DiP no Pauta Pública desta semana, e reflete sobre as lutas sociais e políticas em desenvolvimento no Irã. Farvardin ainda relata como o cenário de guerra ainda gera instabilidade entre a população e como ele interfere nas disputas internas. “É como se o regime encontrasse uma desculpa para aumentar a repressão contra a dissidência e a oposição política [iniciada em 2022]”, afirma.
Em setembro de 2022, a morte de Jina Mahsa Amini, jovem curda de 22 anos presa e agredida pela Polícia da Moralidade no Irã, gerou uma onda de protestos no país. As autoridades alegaram que a jovem, em viagem com a família, na região do Teerã, usava o hijab (véu), obrigatório para todas as mulheres, de forma incorreta.
Este acontecimento foi o estopim para um levante popular que ecoou pelo mundo, dando visibilidade à luta das mulheres iranianas contra a opressão e o autoritarismo. No funeral de Amini, a família fez um apelo: “não nos deixem sozinhos”.
Segundo Farvardin, para essa revolta conhecida como Women’s Life Freedom Uprising ou Jina Uprising, a questão sobre o uso do hijab “não é apenas sobre a aparência, sobre a roupa, que também é um tipo de imposição no corpo, mas é sobre a organização espacial e corporal de uma sociedade”.
Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
EP 182
Revolução feminista no Irã
22 de agosto de 2025
·
Pesquisadora iraniana avalia como a luta das mulheres contra a opressão na Irã ecoa em meio aos conflitos na região
Você pode falar um pouco sobre o ataque de Israel e Estados Unidos ao Irã em junho? Qual é a situação agora?
A Operation Rising Lion, que tinha como alvo tanto as instalações nucleares do Irã, locais de mísseis e figuras militares importantes, quanto civis, foi, na verdade, um ataque que matou centenas, incluindo civis e até crianças, e desencadeou uma feroz guerra de 12 dias […] Israel [ainda] ocupa o espaço aéreo do Irã, ou seja, a qualquer momento pode atacar qualquer voo no Irã. O risco de mais ataques existe, mas a situação é frágil em outro nível. Todos os iranianos, dentro e fora do Irã, estão muito céticos quanto ao fato de que este é um cessar-fogo real e estão esperando por uma nova rodada de ataques.
A condição de guerra também é mental. A condição mental das pessoas em constante alerta é algo que eu gostaria de mencionar, porque as pessoas não conseguem dormir, estão esperando os novos ataques, e isso realmente afeta a vida diária. Também em termos de condições materiais, podemos ver que isso afetou a vida das pessoas, com o aumento dos preços e a inflação crescendo. Muitos fundos e serviços públicos foram cortados ou canalizados para a segurança e para a defesa.
A República Islâmica está, mais do que nunca, determinada a reviver o projeto nuclear, que aparentemente foi destruído pelos EUA e Israel. Não importa o quão caro isso seja, e se mais sanções internacionais podem ser impostas aos iranianos. Não, eles estão determinados a continuar com isso. Essa securitização e militarização também têm outras consequências políticas.
É como se o regime encontrasse uma desculpa para aumentar a repressão contra a dissidência e a oposição política. Após a revolta de 2022, conhecida como Women’s Life Freedom Uprising ou Jina Uprising, a República Islâmica estava perdendo a confiança do povo e sofria, significativamente, com a falta de legitimidade interna e internacional.
Mas esta guerra, surpreendentemente, permitiu que eles mudassem sua imagem de opressores para os defensores contra ameaças estrangeiras, tanto para muitos dentro do Irã, quanto para observadores internacionais. Também posso acrescentar outras questões relacionadas ao cessar-fogo. A República Islâmica encontrou um bode expiatório para [sua] incapacidade militar, [incapacidade] de defender seu próprio povo, e os cientistas de alta patente.
Muitos iranianos, dentro do país, criticaram a República Islâmica por esse motivo. Durante a guerra, eles se sentiram vulneráveis e não receberam nenhuma proteção ou apoio do Estado. Por exemplo, quando o ataque aconteceu, não havia abrigo, não havia alertas de sirenes e não havia orientação sobre como lidar com os ataques aéreos.
E devemos considerar que há mais de dois anos esse tipo de ameaça existe, a possibilidade de guerra entre o Irã e Israel. Mas não havia nenhum tipo de apoio do Estado e foram as próprias pessoas que tentaram ajudar umas às outras em condições muito severas.
Essa incapacidade da República Islâmica de proteger seus próprios cidadãos levou o regime a conduzir essa campanha de “bodes expiatórios” para mudar, ou pelo menos reparar, essa imagem de figura masculina impotente. E o melhor jeito foi mirar nas minorias, como parte do nacionalismo bélico.
Em 2022, a morte de Jina Mahsa Amini provocou uma série de protestos que foram considerados os maiores na história iraniana e também uma revolução feminista. Como você avalia essa revolução?
O espírito desse levante, dessa revolução, ainda existe de alguma forma na sociedade. Para dar um contexto, como vocês devem saber, no Irã, de acordo com os regulamentos da República Islâmica, mulheres com mais de nove anos precisam usar o hijab (véu). Isso significa que elas têm que cobrir seus cabelos e seus corpos, exceto pés, mãos e rosto. E, claro, não é apenas sobre a aparência, sobre a roupa, que também é um tipo de imposição no corpo, mas, o mais importante, é sobre a organização espacial e corporal da sociedade.
É um jeito complexo de ordenar e disciplinar a sociedade. Não importa se são mulheres ou homens, porque quando há essa espécie de segregação espacial, também há lugares que os homens não podem frequentar ou entrar. Não é apenas sobre os corpos das mulheres, mas sobre usar gênero como um mecanismo de controle da sociedade. Houve diferentes formas de lutas individuais ou coletivas nos últimos 45 anos. O movimento feminista pelos direitos das mulheres sempre se manifestou em relação a essas situações.
Claro, sempre houve altos e baixos. Mas o evento disparador foi em 13 de setembro, [quando] Jina Mahsa Amini, uma jovem curda que viajava para Teerã, a capital do Irã, foi presa pela Polícia da Moralidade. Nós temos uma espécie de polícia especial para controlar o hijab, que eles chamam de Polícia de Moralidade. Ela estava usando o hijab de maneira imprópria, inadequada, em público, de acordo com eles. Poucas horas após sua prisão, ela foi levada ao hospital em estado crítico. Algumas testemunhas disseram que ela havia sido insultada e espancada violentamente enquanto estava na Van da polícia a caminho da prisão. Ela morreu no hospital em 16 de setembro.
Isso se tornou um problema e gerou um grande movimento. Foi no funeral dela, em sua cidade natal, Saqqez, na província do Curdistão, que sua família pediu às pessoas ou às famílias que estavam lá para “não deixá-los sozinhos”. Então, as mulheres que estavam presentes neste funeral retiraram seus véus. Foi uma espécie de ato de protesto performático: tiraram seus véus e cantaram Jin, Jiyan, Azadi, que é um slogan curdo muito conhecido. Traduzimos como “Mulheres, Vida, Liberdade” em inglês e, em farsi, “Zan, Zendegi, Azadi”.
Esse chamado “não nos deixem sozinhos” e também o Jin, Jiyan, Azadi se espalharam e foram respondidos no que seria o maior protesto da história do Irã, como você também mencionou, que se expandiu por todos os cantos do país e até mesmo pela diáspora. Grandes protestos aconteceram na Europa e também na América do Norte.
Também houve algum movimento de apoio na América Latina. Sei, por exemplo, do caso do Chile e da Argentina, em que as pessoas se manifestaram em apoio ao movimento feminista do Irã. O mais interessante é que esse slogan também foi traduzido para diferentes línguas faladas no Irã. Não apenas para o persa ou para o farsi, como língua principal ou dominante do país, mas também para outras línguas, como o balúchi, o árabe e o turco.
Foi uma forma, ou gesto, de dizer que todas essas minorias étnicas e nacionais também estavam juntas nessa situação. Não se trata apenas da questão do hijab ou de gênero. Desde o início, é sobre minorias nacionais e as questões de marginalização no Irã.
Para te dar uma ideia da escala dos protestos, no auge, no final de setembro e início de outubro, cerca de 164 cidades, junto com muitas vilas e aldeias, se tornaram centros de protestos de vários tipos. Outra característica muito específica desse movimento é que ele se prolongou por muitos meses, continuou apesar da repressão. E foi liderado por mulheres. É por isso que muitos o chamam de Revolução Feminista, porque as questões que desencadearam o evento são feministas.
Para a pesquisadora Firoozeh Farvardin, a questão sobre o uso do hijab não é apenas sobre a aparência, mas um tipo de imposição no corpo e sobre a organização espacial e corporal de uma sociedade.
Nos seus relatos sobre o Women’s Life Freedom Uprising você afirma que essa forma de protesto representa uma ruptura com o passado. Você defende essa ideia por ser um tipo de protesto descentralizado, ou há outro componente que você adicionaria a essa quebra com o passado?
Em muitos sentidos, foi uma ruptura, é por isso que também a chamo de revolução. Talvez, no sentido clássico de revolução, seja necessário algum tipo de mudança de regime ou transferência de poder para outro grupo de pessoas — e isso nunca aconteceu. Nessa compreensão clássica de revolução, não foi. [Porém], às vezes, eu uso intencionalmente “revolução” para afirmar esse tipo de vontade e desejo de mudança radical.
Às vezes, podemos dizer que o corpo é algo em formação. Mas o que está claro, e isso tornou o movimento em revolução, na minha opinião, é que, em primeiro lugar, as pessoas, pela primeira vez, após a revolução de 1979, chamam esse episódio de revolução. Elas têm essa memória coletiva do passado, do que poderia ser uma revolução. E houve muitas coisas grandiosas, protestos nacionais acontecendo no Irã, mas nenhuma delas foi chamada de revolução pelas pessoas.
É isso que considero importante mencionar: as pessoas chamam isso de revolução. Não cabe a mim, como acadêmica, chamá-la de revolução ou não. Mas, no sentido de entender o que isso significa, acho que devemos saber que tipo de ruptura ela trouxe até agora. E é possível traçar as enormes mudanças que essa revolução impulsiona na vida cotidiana das pessoas, especialmente das mulheres.
Existem muitas histórias que explicam que, quando as pessoas saíram para rejeitar a autoridade do regime, aprenderam umas com as outras a também rejeitar outra forma de autoridade. Existem muitas mulheres que saíram de seus casamentos forçados. Elas deixaram de aceitar as normas de gênero e se assumiram abertamente como queer, como trans. Essas coisas, na nossa sociedade, ou no Irã, não eram aceitáveis.
Portanto, o nível de conscientização sobre dinâmicas de gênero específicas e desigualdade de gênero no Irã é enormemente diferente do período anterior à Revolução Jina. Mas, é claro, não quero só idealizar o que está acontecendo. Havia a principal oposição organizada ao regime fora do Irã, por causa de muitos anos de repressão, e todas as pessoas que realmente resistem no Irã estão na prisão, ou são forçadas a [deixar] a atividade política.
Há uma continuação do espírito da Revolução de Jina que, na minha opinião, ainda se mantém. Essa é a minha esperança. Não apenas porque as precursoras eram mulheres, ou a questão sobre o hijab obrigatório, ou por causa das formas figurativas ou performáticas com que as pessoas protestam. Tudo isso é muito importante. Mas, eu diria que o cerne, a marca registrada desta revolução, e deste impulso que aconteceu entre 160 cidades sem liderança, é a política do cuidado.
E essas são as coisas que, eu diria, em tempos de revolução e impulso, tornam possível esse grande protesto, essa iniciativa de assistência. [Ela] cresceu rapidamente nos últimos 10 anos no Irã, por causa das necessidades de sobrevivência. O Estado os abandonou por causa da neoliberalização. Todos os cortes nos serviços públicos fizeram com que as pessoas precisassem se unir para ajudar umas às outras, para apoiar financeiramente e politicamente.
Esse espírito da Revolução de Jina ainda está vivo e funcionando. E, claro, feminista não necessariamente significa aqueles que leem ou conhecem os livros e discursos feministas, mas sim aqueles que praticam ativamente a ética feminista, como a política do cuidado. São eles que estão conduzindo todas essas iniciativas no momento que estamos discutindo. E, nesse sentido, o movimento feminista ainda está vivo.