Vegetarianismo, terceira idade, Caatinga e COP30

Eu ia estrear nesse espaço escrevendo sobre um homem maravilhoso: seu Raimundo, agricultor familiar, sindicalista e genro do poeta Patativa do Assaré, que conheci mês passado, no Cariri cearense. Mas aconteceu uma coisa lá em casa que eu preciso compartilhar aqui, porque talvez essa história auxilie uma pessoa ou outra, passando por algo semelhante. Lá vai.

Algumas semanas atrás, minha mãe, uma mulher de 70 anos, foi fazer xixi e bum, desmaiou enquanto já estava sentadinha no vaso sanitário, estabacando a testa no chão. Como se não bastasse, ficou sonolenta e vomitou, o que podia indicar aumento da pressão dentro do crânio ou até traumatismo. Fomos para o hospital e, depois de horas de consultas e exames (e o surgimento de um galo do tamanho de um chifre de unicórnio kkk), veio o diagnóstico: a taxa de sódio no sangue dela, que devia ser de 135, estava em 115 (hipertensa, ela quase não come sal e parece que a medicação que estava tomando “sugava” o pouco sal que ela ingere). Resultado: internação na UTI para reposição intravenosa de sódio. 

Juntas, eu e mamãe embarcamos nessa aventura, a primeira internação dela em UTI. Mas bastou a notícia cair no grupo da família, que o veredito foi dado: ela está nesta situação porque não come carne. As recomendações iam desde um discreto “precisamos conversar sobre a alimentação da sua mãe” ao hilário “dá uma buchada a ela que passa”, chegando nos absurdos “sua mãe está passando fome” e “vegetarianismo causa desnutrição”.

Num primeiro momento, fiquei apenas encaralhada, pensando “meu Deus, quanta desinformação”. Mas depois dei um desconto para minha família, afinal eles estão apenas preocupados com minha mãe. Além disso, sei que uma parte da própria comunidade vegetariana-vegana é moralista e pouco pedagógica, o que só faz afastar as pessoas do tema. Por último, como diriam Marx e Engels, “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” – e pode-se dizer com tranquilidade que a consciência do nosso tempo é uma moldada pelo agronegócio brasileiro. Então, depois de respirar fundo (e tomar litros de chá de mulungu para me acalmar), fui fazer meu letramento sobre dieta ovolactovegetariana e terceira idade, para poder dialogar com minha família, em vez de arengar. Vamo lá. 

A primeira coisa que fiz foi ligar para uma amiga nutricionista de Recife, que preferiu não ser identificada. Ela me disse que esse tema não é só uma questão da medicina, é sobretudo uma questão política: existe uma ideia preconcebida na sociedade, que relaciona consumo de carne à virilidade – e que, por sua vez, relaciona virilidade à vitalidade. Assim, numa sociedade predominantemente machista, comer carne vira equivalente à saúde, e não comer carne vira sinônimo de fraqueza, adoecimento. Daí a correlação, provavelmente inconsciente, que minha família fez entre vegetarianismo e a hiponatremia da minha mãe. 

Sobre isso, minha amiga nutricionista cita o fato de que, enquanto vários estudos demonstram que consumo de carne vermelha processada (embutidos) ou até mesmo in natura pode aumentar os níveis de sódio no sangue, não existe nenhum estudo que comprove que a ausência de carne seja responsável, sozinha, por hiponatremia. Quando ela disse isso, me lembrei de minha vó, que passou pela mesma situação (desmaio por baixa de sódio) em 2011, mesmo tendo comido carne a vida toda.

Com essa moldura política em mente, mergulhei no site do Conselho Federal de Nutricionistas, para saber se o órgão determina algo sobre vegetarianismo na terceira idade. E encontrei um parecer técnico de 2022, que estabelece para a categoria que uma dieta vegetariana pode ser seguida em todas as fases da vida, idealmente com orientação médica e eventual suplementação. De acordo com o documento, a alimentação vegetariana não somente é viável para idosos, como o nutricionista deve garantir assistência nutricional que respeite os hábitos regionais, culturais e éticos do paciente. Além disso, o Código de Ética do Conselho estabelece que o profissional deve, obviamente, respeitar a privacidade, mantendo confidencialidade a respeito das escolhas pessoais do paciente, resultados de seus exames e detalhes da dieta prescrita.

Por último encontrei, nos sites da Organização Mundial de Saúde, da Fiocruz, e de várias universidades brasileiras, inúmeros artigos sobre dieta vegetariana como auxiliar eficaz no controle da hipertensão. Em resumo, é comprovado que uma dieta vegetariana – desde que rica em frutas, vegetais e grãos integrais e não apenas pão com requeijão kkk – ajuda a reduzir a pressão arterial – além de ser a opção mais benéfica para o meio-ambiente, de acordo com Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesu, diregor-geral da OMS.

No fim das contas, todas essas informações acabaram sendo corroboradas pelo simples fato que a nutricionista do hospital manteve a dieta vegetariana da minha mãe durante seu internamento, tanto na UTI quanto na enfermaria!

Tudo isso aconteceu em Caruaru, cidade inserida no bioma Caatinga – o único 100% brasileiro e que, apesar de ser o mais eficaz no sequestro de carbono e um do que mais sofre com desmatamento causado pelo agronegócio, é invisibilizado no debate sobre financiamento climático durante a COP30 que, por sua vez, acontecia concomitantemente à internação da minha mãe. 

No decorrer da conferência, muito se falou sobre a devastação causada pelo agronegócio nos nossos biomas, e sobre a necessidade não somente de regular esse setor, mas também de reduzir o consumo de carne no mundo todo. Por isso, posso dizer com toda segurança: minha mãe, em seus quase 71 anos de vida, tomou várias decisões que não foram benéficas pra ela mesma, durante sua animada vida. O vegetarianismo certamente não foi uma delas!

Ps: ah, e prometo que ainda vou escrever sobre Seu Raimundo!

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