Os termômetros marcam 26ºC, mas a sensação de calor é ainda maior perto do asfalto. O sábado, em pleno inverno paulista, parecia um dia de verão, apesar do baixo fluxo de carros na Rodovia Imigrantes. No primeiro final de semana na cidade do Guarujá (SP) após a Operação Escudo ter deixado pelo menos 16 pessoas mortas na Baixada Santista, a Agência Pública percorreu as ruas e becos que serviram de palco para uma das maiores chacinas do estado.
A reportagem ouviu moradores das comunidades da Prainha, Parque Estuário, Jardim Enguaguassu e Sítio Conceiçãozinha, que relataram mortes sob circunstâncias diferentes do que consta nos Boletins de Ocorrência policiais. Até imagens de um sistema de câmeras de segurança de uma residência teria sido apagadas por policiais militares, segundo uma das denúncias.
Outro morador relatou que agentes teriam mandado um homem correr e, depois, efetuado disparos. A reportagem também ouviu um relato de uma execução, que teria acontecido em um campo de futebol, além de enquadros violentos de policiais em moradores da comunidade.
A Operação Escudo começou após o soldado Patrick Bastos Reis, do grupo da Polícia Militar de Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), ser baleado e morto, no último dia 27 de julho. Depois de oito dias de operação das polícias Civil e Militar, além das 16 mortes, há 147 pessoas presas.
Morador denuncia que imagens de câmera de segurança teriam sido apagadas
Apesar do governador Tarcísio de Freitas assegurar que seus policiais tiveram uma “atuação profissional” e que “não houve excessos”, um morador, que tem medo de se expor, declarou que as imagens gravadas pelas câmeras externas de sua casa foram apagadas pela polícia. A casa fica na rua onde um homem teria sido morto por policiais. A localização não será revelada na reportagem por questões de segurança.
“Eu abri o portão e já chegaram pedindo (as imagens). Só que como que eu tô vendo que é a lei, que o policial fardado, que ele precisava… Eles tiraram o HD lá de casa, foram lá e apagaram. Ontem, a Corregedoria veio, pediu para ver, eu dei o acesso para eles. Aí, eles viram que não tinha nada e nem levaram”, disse.
Para o ouvidor das Polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva, é “muito grave” a denúncia sobre imagens que teriam sido apagadas por policiais militares de um sistema de câmeras de segurança de uma casa.
“A Polícia deveria determinar que a Corregedoria faça todos os esforços necessários para poder apurar o que de fato ocorreu. Se, realmente, houve essa ação e a gente vai solicitar que, se possível, essa pessoa se apresente para a Ouvidoria, com todas as garantias de proteção da sua identidade, para que a gente possa contribuir para que essa apuração seja feita. E se, de fato, isso ocorreu essas pessoas respondam pelo ato praticado. Se a ação deles, foi uma ação legal, eles não deveriam ter receio do que a câmera captou.”, diz o ouvidor.
Operação na baixada Santista já contabiliza 16 mortes
Procurada pela Pública, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) se manifestou por nota enviada à reportagem.
“A Secretaria de Segurança Pública esclarece que as forças de segurança atuam em absoluta observância à legislação vigente. Em nove dias de Operação Escudo, a polícia prendeu 160 suspeitos e apreendeu 479,8 kg de drogas. Por determinação da SSP, todos os casos são investigados pela DEIC de Santos e pela PM por meio de IPM. Além disso, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa mobilizou policiais civis e técnico-científicos para dar apoio às investigações. As imagens das câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM. Até o momento, nenhuma denúncia foi formalizada quanto à ação policial na região. Qualquer queixa pode ser formalmente realizada na Corregedoria da Instituição que apura com rigor todas as notificações recebidas.”
A secretaria não respondeu sobre a denúncia de apagamento das imagens das câmeras de segurança.
Na avaliação do ouvidor, a Operação Escudo não deu conta de garantir segurança para as pessoas e com base nas denúncias dos moradores das regiões onde houve mortes já estão pedindo providências à Corregedoria da Polícia Militar.
“Especialmente no caso das mortes, estamos pedindo as câmeras corporais que os policiais devem estar usando, estamos pedindo todos os laudos balísticos, necroscópicos, residuográfico e de local, para que a gente possa, a partir dos laudos, entender um pouco da dinâmica do local dos fatos”, conta.
Testemunha diz ter visto policiais da Rota mandando homem correr — para depois atirarem
À reportagem da Pública, um dos moradores da comunidade da Prainha relatou o que viu dois dias após a morte do soldado Patrick. Ele garante que não houve troca de tiros como motivo para uma das mortes. Ele não soube dizer quem era a vítima, porque não era morador da comunidade.
“Eu tava em cima da minha casa. Eu ouvi um barulho de mandando correr: ‘Corre! Corre!’. Aí os ‘cara’ mandou o cara correr, o moleque foi correr dentro da favela, deu pra ver os disparos, tá ligado? E o que eu vi ali foi os caras subindo em cima dele. Tava tudo de preto, que é ‘os cara’ da Rota. Nenhum confronto. Eles já chegaram mandando o cara correr, o cara correu, eles mataram. Não era morador daqui não.”, diz.
A versão diverge da que consta no Boletim de Ocorrência a que a Pública teve acesso. Os policiais militares informaram que durante uma incursão na comunidade, após desembarcarem da viatura e atravessarem a pé a linha férrea, avistaram três indivíduos. Dois deles portariam pistolas e um terceiro estaria carregando uma mochila com papelotes e pinos de drogas.
“Nesse momento um dos indivíduos apontou a arma em direção a guarnição e ante a injusta agressão o depoente realizou cinco disparos com seu fuzil. Aquele grupo criminoso evadiu-se sendo que dois deles em uma direção e o alvejado em outra”, diz o documento, que teve os PMs como únicas testemunhas.
“Eles trouxeram o rapaz de fora e fizeram a execução aqui no campo”, denuncia morador
A menos de 2 km dali, o campo de futebol do Coruja ainda possui as marcas de pneus de carro no barro seco e no gramado. Segundo um morador, que não quis se identificar por medo, são rastros de uma viatura policial.
“Aconteceu uma verdadeira chacina aqui. Como é um bairro militar, residencial, não tem ponto de tráfico de droga, não tem assalto. Eles trouxeram o rapaz de fora e fizeram a execução aqui no campo do Coruja, como é um local bastante escuro. Os moradores escutaram: ‘Socorro! Socorro! Não faz isso!’. No momento ouviu só os disparos, aí não se ouviu mais nada.”, conta.
Na comunidade do Sítio Conceiçãozinha — também com mortes registradas pela polícia — , outro morador foi abordado pela reportagem, enquanto usava um carrinho de mão para transportar materiais de construção. Ele disse que, na manhã do sábado 28 de julho, ele estava lavando o banheiro de casa, quando foi buscar água no quintal. Com um rodo nas mãos, ele diz ter sido enquadrado por policiais militares, e teve uma arma apontada para a cara de forma agressiva.
“Eu nunca vi uma cena daquela ali. Eu moro há 30 anos em favela. A policial apareceu com tudo assim, apontando a pistola para mim e com maior carão: ‘Levanta a camisa!’. A coisa que me chateou foi isso… Quando eu falei que era uma residência, aí soltaram: ‘Aqui é invasão!’. Se ela tivesse me informado, eu tinha pegado o nosso título de concessão de moradia, que foi feita a regulação fundiária em 2002.”, diz.
Imagens de marcas de pneus no campo de futebol do Coruja – segundo morador, policiais teriam executado uma pessoa no campo
Grupos de direitos humanos questionam legitimidade da ação
Para o advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (Condepe-SP), Dimitri Sales, a ação policial extrapola seus objetivos quando passa a praticar atos ilegais, conforme coletados em denúncias.
“Pelo o que nós pudemos levantar de testemunhos e depoimentos, a Operação Escudo revela-se um fracasso, do ponto de vista, da proteção à vida e aos Direitos Humanos, em um estado que não admite pena de morte e não autoriza que agentes do Estado, como policiais militares, possam determinar entre a vida e a morte de qualquer pessoa, independente dos atos que tenham praticado”, diz
Segundo Dimitri, o Condepe acionará várias autoridades essa semana, como a Ouvidoria das Polícias, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e entidades do movimento social, para acompanharem de perto a apuração da chacina no Guarujá.
“Nós estamos planejando reuniões com o defensor público geral, procurador geral de Justiça, com o delegado do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) de Santos que é responsável por essa apuração e outros diálogos nesse sentido de efetuar uma apuração adequada, de modo a evitar a impunidade e garantir que aqueles que agiram contra a lei, agiram com abuso de autoridade cometendo crimes, possam ser devidamente punidos.”, conta.
As denúncias de execução e violência foram tratadas como “narrativas” pelo secretário de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas, Guilherme Derrite, que disse “depois que esse assassino, ele foi preso, ele vira um bonzinho, um coitadinho. Na verdade, ele é o maior causador dessa tragédia que aconteceu na vida do soldado Reis”.